18/07/2009

Da música que povoa de gente a vida

Tenho uma amiga paulistana, melhor professora de teoria literária que já tive, que me disse um dia que eu tendo a circunavegar-me quando escrevo, tentando chegar ao meu mesmo ponto de onde saí, como se buscasse sempre uma solução existencial para todos os meus dilemas. Às vezes acho que tem razão, outras nem tanto, que eu não sou tão previsível assim. Espero.

Mas o fato é que as coisas se juntam e agregam, à minha revelia. Senão, vejam.

Ontem mesmo, depois de terminar uma infinita tradução de comandos HTML (atividade que, se não fosse lucrativa, eu certamente deletaria das minhas madrugadas), decidi dar uma volta e olhar para o céu. Já o tinha espiado numa das incursões à cozinha em busca de chá, e essas horas noturnas em frente à tela do computador são eficazmente equilibradas com passeios às escuras, quando todos dormem e eu tenho certeza de que as ruas estão vazias e as casas adormecidas.

Mas, então, lá estava eu ontem andando e olhando pra cima, a imensa via láctea que cruza o Verbena de lado a lado a servir-me de teto. Quase nova, depois dessa cheia de dia 7 de cortar a respiração, a lua recolheu-se e as estrelas são mais que muitas. Voltei pra casa e adormeci muito rápido, para acordar no dia seguinte, hoje, pensando no quanto é fundamental apagarmos as luzes pra conseguir ver o brilho da nossa escuridão interna (é por causa de coisas assim, acho eu, que aquela minha amiga pensa aquilo de mim).

Entre as coisas que tinha pra fazer nesta manhã, o correio estava entre elas, e dentro da minha caixa postal, que nestes tempos internáuticos não me dá grandes alegrias, um pacotinho quadradinho, bem simpático, com carimbo de correio estrangeiro. Como me descobriu aqui esse remetente de outros tempos, tantos anos passados, eu não sei – mas depois do céu de ontem, cai-me hoje nas mãos outro, um Missouri Sky, da dupla Charlie Haden e Pat Metheny – sem lua nem estrelas, somente um céu que parece de chumbo, um cd que vem lembrar-me mudanças de casa e trazer-me associações inevitáveis entre coisas e pessoas e músicas. Assim, quando como hoje ganho de presente sons do passado, volta-me a vida (cheiros, toques, olhares, corpos, mutações do tempo, naftalinas a evaporarem-se de baús cheios de frestas), e volta-me também uma vontade de ter certeza de que as coisas talvez não precisassem ser da maneira como são.

Graças a esse cd, circunavego-me pensando que há nas trilhas sonoras da vida acordes que podem sugerir lembranças de coisas que nunca aconteceram, mas poderiam. Esse tipo de associação talvez seja coisa de mentes pontualmente esquizofrênicas, que se comprazem em se re-fazer dia a dia vivendo situações que poderiam, mas não foram. Demanda um tanto das virtudes da infância, porque ninguém em sã consciência quer ser flagrado na sala de casa dançando animadamente com quem não está lá à vista de todos – só à vista da imaginação do dançarino.

Nessa linha, a minha trilha sonora favorita é Nina Simone, tão versátil que além de me inspirar passos de dança, também me ajuda a escrever tarde da noite, embalando gentilmente essas horas que se arrastam pela madrugada – horas em que, além de traduzir, em outros momentos do ano desfolho cadernos cheios das preciosidades desses seres tão especiais que respondem pelo nome genérico (às vezes pouco apropriado justamente porque genérico) de “alunos”. A mesma Nina Simone resolve meus impasses poéticos – gosto de ler em voz alta, enquanto a ouço, o que me transborda de poesia. Dá certo, às vezes - é a maneira que encontro para descobrir o tom que faltava ao penúltimo verso. E tampouco nesses momentos me agradaria uma plateia surpreendida pelo sarau improvisado, que por isso mesmo também acontece protegido pela madrugada!

Este cd vem juntar-se às minhas últimas semanas, carregadas que têm estado do tom nostálgico que nada mais é do que o pulsar lusitano que eu cubro com alguma maestria - nem sei se é grande a vantagem: para que cobrir uma coisa dessas, afinal?...Tenho perambulado pelas pastas de música do meu computador em busca da evocação dos passados reais, distantes e recentes. Porque ontem já é passado, se formos ver bem.

Redescubro, nesse passeio que agora tem o céu de Missouri a colorir de chumbo o meu dia, a dificuldade de viver transplantada, com recordações e lembranças de vida que habitam vários continentes, países e cidades, fazendo com que nunca uma pessoa possa ser inteira num único lugar. Resolver recordações a dois, ou em grupo, torna-se às vezes impossível, se elas se perdem no passado distante, porque as referências são tão outras que nem há do que falar. E assim a música é às vezes a solução; descobrimos que a mesma evoca algo do passado de todos, ainda que coisas diferentes. No silêncio para ouvi-la, resolve-se aquilo que não é possível dizer, porque a rigor no fundo nem existe. Mas temos a sensação de termos mais alguma coisa em comum, com a vantagem (essa, sim, real) de construir a partir daí uma ponte para o futuro, pelo fato de ter escutado junto.

Há anos atrás, pena que tantos, visitou-me um amigo querido de muito tempo. De repente, houve um passado gigantesco que povoou a minha casa, chegando a deixar seus habitantes desconfortáveis, pelo tanto que não cabia no presente e vivia décadas atrás no passado. Mudou-se a língua de uso, porque eu queria aproveitar cada instante e cada molécula dessa presença para re-vivenciar e re-significar tudo o que me construíra junto a ela. Os dias pareciam voar alucinados, distanciando-me, pela falta de tempo, da possibilidade de revisitar todas as músicas que diziam o mesmo aos dois, coisa tão rara, descoberta tão simples e tão poderosa, que nem sempre tenho como gozar. E foi assim que nos descobrimos relembrando letras de músicas que nem existiam mais, trauteando pequenos pedaços e morrendo de rir, em duo, submersos dentro daquilo que lembrávamos.

Músicas do passado são como levantar o véu do tempo e espreitar para trás – pode ser que dê medo, porque todos temos no passado mais de muitas sensações, momentos, palavras ditas ou não resolvidas, gestos esboçados ou reprimidos que não gostaríamos de resgatar, mas fazê-lo purifica-nos do que nos polui, do que nos impede de ser melhores amanhã, de abrir a janela no fim desta madrugada e perceber o quanto a vida é generosa. Inevitavelmente junto às músicas estendem-se as relações de amizade, esticam-se os dias como elásticos, e podemos tocá-los, aos amigos, mais uma vez, antes de, com suavidade, deixar que voltem ao seu lugar de origem e nos deixem a nós mais tranquilos e seguros de que, no fundo, nada acaba.

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