15/07/2009

Meu primo Luís

Meu primo Luís tinha (e tem) cinco ou seis anos a menos do que eu. Isso costumava dar-me um ar sério de “sou mais velha, porta-te bem”, que hoje até me parece ter se invertido, tão sério e compenetrado é meu primo, a quem vi há alguns meses, no batizado da filha da Inês, outra prima de quem falarei em futura ocasião.

O Luís morava, quando pequeno, em outra cidade, e apenas passava as férias conosco, ou os feriados mais prolongados, às vezes. De qualquer forma, divertia-me quando ele estava, porque eu não precisava mais andar por aí sozinha ou acompanhada de amigos imaginários que só a mim respondiam. Luís apreciava todas as minhas brincadeiras e encarava todas as ideias que eu tinha. Ambos gostávamos de plantar – ou eu gostava, e ele, por gostar de mim, gostava também. E gostávamos de cães – ou a mesma coisa: eu gostava, e ele idem, por gostar de gostar do que eu gostasse.

Num dos invernos da nossa vida juntos, eu decidi, antes das férias, plantar batatas. Escolhi um trecho bastante grande do terreno da casa de meus avós e dispus-me a cavar e revolver a terra com afinco, pois ouvira dizer que boas batatas precisam de solo bem macio. Chovia, e logo passou a chover mais. Minha avó, que apreciava toda disposição que significasse trabalho, e a incentivava mais do que qualquer outra coisa, chamou-me para por as botas e a capa de chuva e ainda me disse que, “com esta chuva, melhores as batatas te sairão!”.

O Luís chegaria logo, pensava eu enquanto cavava, gotas e mais gotas a escorrerem do meu nariz em direção ao chão, cada vez mais encharcado e revolvido. Com a teimosia que minha mãe admirava em mim (chamando-lhe “persistência”), permaneci à chuva até quase escurecer. Decidi então voltar, um tanto decepcionada por estar ainda longe de terminar – talvez, afinal, o talhão das batatas pudesse diminuir com a manhã...

E o Luís chegou, nessa mesma noite, ainda a cheirar “a capital”, como ele gostava de dizer que era onde vivia. Foi tomar banho (pareceu-me que) animado com a grande plantação de batatas quer faríamos no dia seguinte. Antes de dormir, lá fomos ao “oito maluco”: jogo pouco razoável de cartas, daquele tipo em que nos divertimos mandando ao próximo aquela carta que o fará comprar quatro ou oito cartas do monte – sendo que o objetivo do jogo é ficar sem nenhuma. As cartas ficavam guardadas em uma das nossas latas secretas (nossos outros primos, todos mais novos e anos mais tarde, divertiam-se trocando as mesmas de lugar, de tão secretas que eram...). Esta era uma lata de cerelac, o neston da época. De alumínio, beiradas bem apontadas.

O Luís, além de mais novo, tinha pouca sorte no jogo (o mesmo não se verificaria mais tarde no amor, confirmando o ditado) e um temperamento pouco fácil (que, por outro lado, se manteve, parece, no quesito amoroso). Custava-lhe perder e mais ainda lhe custava, nesse ano, perder para uma menina – prima, ainda por cima, e com a capacidade de amolar seu humor como faca de açougueiro.

Lá estávamos, nessa noite, à lareira, no velho tapete surrado com arabescos que era preciso adivinhar, o cheiro da lenha de abeto a arder nas nossas narinas, as luzes iluminando pouco de nós mesmos. Uma boa rodada garantiu-me dois quatros e um oito – e eu ri-me por dentro, certamente sinalizando o riso por fora, porque foi nessa hora que o Luís começou a ficar vermelho (hoje ele fica vermelho por outras razões, que não vêm ao caso). O Luís vermelho era realmente engraçado – as suas grandes e salientes maçãs do rosto pareciam explodir em vários tons, e os olhos injetavam-se de um jeito que me fazia dar graças a Deus por ser a mais velha e não ao contrário. Isso só me fez, de fato, rir, como me disseram mais tarde meus tios, que pareciam ter assistido a tudo de camarote, imobilizados na ação.

Mas então lá estava o Luís já vermelho só com a minha risada interna, e eu com os dois quatros e o oito na mão... antecipando as gargalhadas de despejar uma, duas, três cartas assassinantes em cima do monte entre nós. E lá foram: uma, duas e três. O vermelho tornou-se escarlate, e num ápice o Luís jogou em mim a única coisa que tinha à mão - a lata do antigo cerelac, hoje neston, a tal bem apontada. Com tanta vontade o fez, e com uma pontaria tão certeira (que sempre teve e manteve nas caçadas que o divertiriam anos depois), que a lata me acertou em plena testa, bem ao meio, e de quina. O corte jorrou uma quantidade de sangue tão descomunal (lembra-me a minha memória de menina, que talvez exagere as coisas que em pequenos nos parecem grandes) que o Luís, pouco afeito a histórias que envolvessem hemoglobina, de escarlate passou-se a cera e de cera a desmaiado. Ninguém sabia a quem acudir. Eu gritava que ele acordasse, que não adiantava nada fazer-se de desmaiado porque amanhã ia apanhar era com a enxada das batatas, e por aí fui, perdoada por todos porque afinal a vítima ainda era eu.

Quem me levou ao hospital foi o meu tio Zé, meu modelo de homem à altura (ele não sabe disto, e vai rir quando ler, com certeza). Hoje eu acho que lhe perceberia a preocupação porque, mesmo com a memória infantil, era sangue bastante. Mas naquele tempo ele só queria era fazer-me rir, e eu duvidava que ele entendesse que era sério e que eu queria mesmo era chorar – mas a possibilidade do Luís vir a saber que eu chorara, secava-me os olhos instantaneamente.

O Zé desfiou uma quantidade de piadas com pouca graça, que poderiam ofender-me, mas vindo dele não o faziam. Referindo a alcunha que me dera (”imperatriz do Biafra”, alusão politicamente incorreta ao resultado semanal da minha pesagem, acontecimento familiar de extrema importância), estranhava que tivesse eu tanto sangue. Ao chegar ao hospital (meu avô à porta, batendo o pé imaginando o que teria eu conseguido arrumar àquela hora), levou-me num piscar de olhos até o banco de sangue, pedindo à desnorteada enfermeira de plantão que me desse logo uns litros, porque se metade do meu peso era líquido, com certeza já tinha chegado ao fim.

Foi meu tio Zé quem segurou a minha mão quando o médico (nem lembro qual, seria meu avô?) abriu e fechou o corte com uma mão, enquanto empunhava com a outra uma seringa de vidro de antigamente, com ar pensativo e demorado. E foi meu tio Zé quem deu a primeira gargalhada quando eu me aborreci seriamente porque o médico decidiu que não valeria a pena a sutura, porque ficaria mais aparente e o melhor era mesmo um ponto falso. Não gostei da palavra falso – “Como assim um ponto falso? Eu quero um ponto de verdade, que eu não gosto de falsidades!”. Foi o suficiente para afinal chorar – de raiva do tal ponto falso, que ainda por cima me custaria (como custou) anos de gozação do Luís.

As batatas? Foram plantadas, na chuva do dia seguinte, num reduzido talhão graças à minha testa. Não me lembro se nasceram ou não, mas cada vez que, agora adulta, encontro o Luís, franzo-lhe a testa, e ele olha-me desaprovador – homem sério, com certeza não se lembra de todas as risadas que demos quando éramos pequenos, ou então lembra-se e acha que são coisas que não lhe pertencem mais. Os anos passaram-se e as nossas vidas distanciaram-se, transformaram-se em abismos inesgotáveis de não existirmos mais um para o outro.

É pena que criemos tanta distância de nós mesmos, através do espaço que inventamos para os outros, e que os outros inauguram em nós. Vejo pouco o Luís, mas quando o vejo parece-me que foge das minhas mãos um pouco de mim mesma, que fica à procura dos olhos dele para refletir aquilo que foi, como se sem o seu reflexo o universo da minha vida soasse falso, tão falso como aquele ponto que afinal deixou sim sua cicatriz na minha testa. Além da cicatriz, que me garante ser tudo isto verdade, ficaram-me as palavras, para esse exercício constante de devolução do que fomos ao que somos, para que preservemos a possibilidade de virmos a ser um dia.

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