07/09/2009

Finis terrae

Temo que existam algumas coisas que, no processo de se metamorfosearem antiguidades, se tornem obsoletas e venham a fazer falta no futuro. Por exemplo: caixas e gavetas cheias de fotografias que todos pretendemos organizar um dia em metódicos álbuns, para poder folheá-los velhice afora. Num futuro não mais longínquo do que esse da minha provável velhice, imagino que as pessoas se dediquem a esse tipo de arqueologia de forma digital, o que, convenhamos, tirará à atividade, além do pó, doses consideráveis de um recuperar da memória perpetuado pelo tato. Isso, sem levar em conta a vantagem de que os vírus das minhas caixas não conseguem deletar por completo as fotos, e os virtuais o farão.

Hoje de manhã, obedecendo ao efeito costumeiro de, ao ter muito o que fazer, decidir-me pela atividade mais inócua e desnecessária (à primeira e descuidada vista), alcei-me até o que se pretendeu um dia ser mezanino e se transformou em depósito de coisas como molduras quebradas, papel que algum dia a gráfica usará, xícaras e bules desirmanados, roupas de bebês que um dia já ocuparam o sótão da minha avó, livros e livros que não encontram seu espaço nas já entulhadas prateleiras, coisinhas que não me decido a jogar fora porque “acho que um dia ainda vou usar isso...”. Foi relativamente fácil achar as caixas das fotos, e mais ainda despender horas e horas em espalhar as tais pelo chão, para depois recolocá-las a todas de novo dentro das mesmas caixas, em ordem diferente, é claro.

Esse projeto de mezanino é na verdade um básico sótão a quem alguém um dia quis batizar de maneira pomposa, e como passei importantes horas da minha infância e adolescência refugiada nesses altos lugares, acho bem agradável que o da minha atual casa possa um dia propiciar a alguém o mesmo tipo de descobertas. Deve ser por isso que se encontre de tudo nesse lugar sombrio e empoeirado (o da minha avó era também úmido), dividido sem maiores problemas com alguns morcegos. Entre as fotos, havia algumas justamente do sótão da minha avó, caretas do meu primo Luís ao encontrar a coleção de chapéus de uma das nossas tias avós.

Lugares assim têm uma colossal capacidade de me resgatarem de mim mesma quando me afundo no que não posso resolver, às vezes sequer entender. Afinal de contas (pus-me a pensar ao desfolhar fotos e fotos de pessoas e horas submersas no passado), tudo passa mesmo, pena que nem sempre existam máquinas fotográficas por perto para estarmos mais tarde garantidos da finitude das coisas. Foi nessa hora que me veio parar às mãos esta foto aqui do Finisterra – o ponto mais ocidental da Europa, onde tantas vezes estive acampada. O ponto onde a terra acaba – finis terrae.

Assim que encontro essa foto, lembro-me do dia que não deixou de ser alegre por ser bordado de despedidas; reparo que a muitos que estão imobilizados na imagem nunca mais os vi, e de repente é essa foto, que encontrei porque nem me lembrava da sua existência, e que veio esgueirando-se por entre as outras até encontrar as pontas dos meus dedos, que me desperta essa cálida sensação de fim de tudo, quer queiramos, quer não. Basta-me agora encaixotar as coisas passadas para me perceber reimaginada, porque o que me incendiava, descubro, terminou, ainda que eu não tenha me preparado para os tons de cinza que se desacostumaram das minhas retinas nos últimos meses.

Os sentimentos que se despedem seguram a escada por onde desço desse sótão cheio de imagens e pessoas que deixo no passado. Guardadas onde só se vai muito de vez em quando, estão a salvo do meu próprio fim, e eu sei que hoje, dentro daquelas caixas, há mais coisas guardadas do que havia quando amanheceu, ainda que não sejam feitas de coisas visíveis, porque nem sempre o que nos atinge é feito de gestos que possam suportar-se a si mesmos em instantâneas fotografias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário