26/09/2009

Tajine

Finalmente inaugurei a mais nova panela de casa – uma tajine grande e brilhante, presente pesado de uma viagem a Marrocos, daquele tipo que só carrega na mala quem nos quer muito bem e por isso se presta a tal incumbência incômoda. Demorei a estreá-la, e fico contente que assim tenha sido, porque desta forma tive mais uma desculpa perfeita para escapar à tortuosidade do meu atual cotidiano, e dedicar-me ao que, nas palavras de Gauguin, demanda cabeça leve, espírito generoso e coração grande – cozinhar.

É interessante pensar dessa maneira, sobretudo porque, como tudo o que tem ida, tem volta, essa dedicação propicia justamente que a cabeça se torne mais leve, o espírito mais generoso e o coração adquira o tamanho que melhor lhe cai: o da ampla imensidão. Fico bem feliz, pra falar a verdade, e o princípio dessa felicidade é aquela sensação de pensar e estar com outros, sabendo que depois lhes vou entrar pela boca e passear-lhes as entranhas. Poderia soar escatológico, eu sei, mas está obviamente longe disso – esse passeio é feito de aromas e possibilidades até terapêuticas do encontro entre temperos e enzimas.

Pra missão desta noite, e como a cabeça não estava tão leve nem o espírito tão generoso, e o coração ao lado de ambos lutava por fazer-se grande, achei por bem resgatar tudo o que pudesse remeter-me às terras de origem dessa tajine. Escolhê-la a ela tem seus motivos, e certamente o das terras marroquinas serem leves, generosas e grandes é um dos principais. Por isso a música puxando pro árabe, o tempo à procura das pulseiras e dos castiçais que vieram de lá (buscas infrutíferas, no segundo caso, infelizmente), e até mesmo o lembrar-me da jelaba que era do meu pai e jazia no sótão, coitada, à espera deste meu dia de panela nova. (É por dias como estes que eu me alegro dessa atividade um tanto inconsequente de guardar coisas sem pensar nos porquês. Às vezes, carregam em si a salvação.)

Tenho a sorte de poder abrir (enfim!) os pacotes de especiarias que vieram dentro da tajine, recomendação expressa quando sugeri tal presente. Perco-me pelo olfato assim que solto as amarras dos pequenos saquinhos com cada um dos sabores que demanda o prato. O ar enche-se desses aromas fortes e marcados, a mágica completa-se e eu estou livre do meu peso, minha sovinice, minha pequenez. Ainda bem que a minha casa é cheia, e há quem chegue e espreite, e me encha de perguntas: o que é mesmo que está acontecendo, que cheiro novo é esse, qual é a invenção de hoje, quem é que você convidou pra jantar? Rio-me e respondo: ora, uns amigos, é claro, metade da razão da existência destas paredes serem do tamanho que são. Meus dias cinzentos são aqueles em que me esqueço de que me basta cozinhar para eles para aliviar toda a soturna e monocromática dor desse cotidiano que hoje, de repente, me atacou.

E, assim, cá estou à cozinha, feliz e realizada em meio a legumes, cúrcuma, canela, gengibre, alcaravia, cominho e harissa, tudo branco e liso e limpo como uma casa à beira-mar, quase que sinto a brisa oceânica dos meus primeiros anos a entrar-me pela janela. Em toda casa que habito, tenho uma espécie de fixação por lavar a louça podendo olhar o que está lá fora, como naquela primeira. Hoje, agora, enquanto lavo tudo o que usei, brinco de lembrar-me de outras janelas, e é por isso que a planta que cresce à minha frente, de repente se levanta numa onda do azul da cor do mar do meio do Atlântico. O azul avança em minha direção, e percebo que é o mesmo onde uma das minhas avós se perdeu um dia, esquecida do mundo em volta pelo tanto que a feria. Cor de horizonte infinito, talvez lhe tenha preenchido o espírito de algo que, para nós que a olhávamos de fora, não parecia nada, a não ser um vazio imenso dentro dela mesma. Talvez, apesar de tudo, aquela janela tenha sido o seu encontrar.

Essa minha avó, mais do que cozinhar, gostava de preparar a casa para a chegada dos outros, a melhor louça, as velas que queimavam devagar e sem cheiro, a toalha engomada com alfazema para acalmar os convivas, os talheres de prata rebrilhando e gastos de tão polidos, porque já eram da sua avó. Talvez por causa dela, eu me afaste decididamente dessa janela que quer me engolir, certa de que a sua maior e melhor herança é a que me faz dedicar toda a minha energia às flores que ainda jazem sob o mármore, antes da mão que as coloque no jarro, movimento que faço agora, ao lado da tajine borbulhante, ao mesmo tempo em que uma parte de mim se senta, do outro lado, à espera.

Um comentário:

  1. Querida Ana,

    De todos os seus textos que já li este me impressionou pela sutileza e naturalidade das associações de ideias que fez. Tornou-se dos meus preferidos por tal razão.

    Como em várias de suas crônicas, apesar de por vezes veladas demais, é belíssima a música das palavras que combina para registrar sensações/sentimentos/lembranças os quais, me parece, podemos não ser exatamente agradáveis ou alegres.

    Não me canso de ler o que você escreve.

    Ivan

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