18/10/2009

Queimada galega

Tenho um amigo galego que um dia me deu um pote de barro, que guardo desde então (sendo esse “então” muitos e muitos anos atrás) dentro de um armário difícil de abrir de tão entulhado. Desencantei-o hoje do fundo desse armário. É um pote bastante peculiar, mais parece uma tigela com pés, e a sua lembrança fez com que me pusesse hoje à procura de elementos que me transformassem essa lembrança em algo tão palpável que quase me permitisse roçar os dedos da mão pelas sombras do passado. De quebra, ainda descobri umas informações que me ajudarão a compor esta crônica, até porque está provado que quanto mais se sabe sobre um assunto, melhor e mais facilmente se escreve sobre ele.

Esse amigo que me ofereceu o dito pote faz parte daquele grupo de amigos que já se foi para outro plano. Conhecemo-nos, eu e o César, que era na altura radialista perto da cidade espanhola de Pontevedra, num encontro de praticantes de yoga, e logo descobrimos várias afinidades, que fizeram com que nos frequentássemos assiduamente. A frequência entre as pessoas, expressão que ele usava e que me encantou pelo tanto que tem de abertura e franqueza na disposição de quem faz isso mesmo - se frequentar -, constrói sólidas paredes de amizade. Assim foi o movimento entre César e eu, durante o curto tempo em que durou. Devo-lhe, além do pote e da solidez da sua amizade, o ter podido conhecer um pouco da Galícia pelos olhos de um galego, melhor maneira de se conhecer qualquer lugar.

A peculiaridade desse pote que me trouxe o César à lembrança reside, primeiro, naquilo que o compõe – uma tigela de barro munida de três pés; várias xícaras com alça, também de barro, que se acomodam em volta desse pote, penduradas; e uma concha, feita da mesma matéria, redonda e agradável de pegar. A bebida medieval que se prepara nesse instrumento, a queimada galega, é um exorcismo das energias maléficas que nos rondam, uma espécie de parente próximo do caldeirão dos druidas celtas, sua polêmica mas talvez mais antiga inspiração. A preparação da queimada está envolta em segredos que prometi, a quem veio frequentar-me hoje à noite, não revelar neste texto que por sua vez também prometi escrever. Acho que fez parte desta nossa frequência de hoje o mantermos segredos que levem outros a, quem sabe, se frequentarem. Um dos segredos é o “conxuro” – palavras escritas em idos de mil cento e alguma coisa (data, descobri, também polêmica) que se pronunciam durante a feitura da queimada.

Foi por causa de um ritual assim que eu ganhei o pote de presente.

O César convidou-me a esse ritual por querer que eu vivenciasse o clima celta que ainda se vive nos pequenos pueblos galegos, tomados de silêncio e reverência nas noites de preparação de queimada, mesmo que hoje catedráticos tenham colossais dúvidas sobre a maioria das lendas que correm a respeito da origem da bebida. Na minha lembrança, entrelaçam-se o mar da Galícia, o dia de sol radiante, o frio da noite sem estrelas e a súbita e quase insuportável alegria e felicidade que se apossou dos participantes, libertos de si mesmos e dos caminhos estreitos. É claro que a base material com que se produz uma queimada (augardente, como dizem os galegos) deva ter ajudado, mas isso não explica tudo.

No caso deste dia de hoje, creio que deve ter sido essa frequência de quem veio frequentar a nossa casa. A construção de mais um pouco de uma parede de amizade, muito mais do que separar um cômodo de outro, permite que a casa se amplie e ganhe mais e mais espaços, para as pessoas que chegam e circulam por entre salas, quartos e cozinhas, frequentando os espaços com a leveza e o à vontade que apenas as amizades em processo permitem.

Um comentário:

  1. Querida Ana,

    Obrigado pelo convite!

    Foi uma legítimia queimada galega ibérico-brasileira, já que feita com Ypióca!

    De certo que o melhor de tudo nessa estória são as paredes das amizades que se erguem (e concordo que não para separarar cômodos, mas para consolidar vínculos)e você nem pode imaginar o quanto vivo, especialmente agora, sedento por esses momentos de estar com pessoas e construir amizades, única maneira que sempre tive para manter a minha vitalidade e que, considerando-se minha atual rotina, são muito raros.

    Você e o Ricardo são anfitriões animados, generosos e honestamente queridos. Eu, particularmente, sinto-me muito bem em vossa casa pois é claro que vocês tem prazer em nos receber, em estar conosco.

    Sinto-me feliz por fazer parte dessas amizades que se constroem.

    Não se esqueça de mim na próxima queimada!

    Ivan

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