30/11/2009

Das coisas fáceis e digressivas

Estou aqui há horas, com tanto a escrever, presa à releitura de um livro que aparentemente nada tem a ver com o que preciso fazer. Há manhãs em que se acorda com imensa facilidade para encarar o dia, e nesses dias livros assim caem-me nas mãos e há uma inércia dentro de mim que não lhes resiste. Aliás, esses dias na verdade não se encaram, desfrutam-se. Podem ser as mesmas tarefas iguais, pesadas, da véspera, quando só de nelas pensar cansava, mas de repente, mal amanhece, tudo parece mais fácil e leve, e essa sensação atravessa o dia e invade as horas da noite. Até fazer o oposto do que se devia é tarefa fácil e que não pesa na consciência.

Foi isso (que há dias que se desfrutam, não pesam), mais ou menos, que um de meus filhos me disse hoje de manhã, ao acordar, cedo como sempre, mas sem o franzir de testa que às vezes precisa para assumir mais um amanhecer. Fiquei de longe observando os planos do dia, e achei melhor começar pelas tarefas mais ativas, pela limpeza que invariavelmente depois conduz à reflexão, quem sabe se porque varrer e lavar as ruínas do passado recente, que ainda doem, abra as portas às mais distantes, que se converteram em memórias da parte boa.

Convidei esse meu filho, já que estava tão bem disposto, a que me acompanhasse, mas ele, bem disposto como estava, rapidamente conseguiu arranjar um parceiro de futebol, e essa imagino que seja a tarefa que considere prioritária. Nem sempre coincidimos, obviamente. Os demais nas suas próprias coisas, decidi não estragar o dia a ninguém - mesmo que as teias de aranha invadam o teto, hoje a minha vontade é encerar. Pode a pia ficar cheia de louça e o tanque de roupa: o chão rebrilhará a tarde inteira. Tenho motivos pra isso, descobertos numa gaveta da lavanderia.

Viajando com pouco dinheiro, muitas vezes acabo por trazer presentes e lembranças que custam pouco mas representam muito. Cera de chão, por exemplo, portuguesa e com cheiro de alfazema. Tem quem me diga que não, que não era essa a que minha avó usava, mas as minhas narinas atestam-me o contrário, e, graças a essa bisnaga lilás, estou transportada para um universo de coisas simples, que só o são porque estão longe e no passado e, como disse, delas guardo só as coisas boas, porque as doloridas já foram lavadas. Ainda por cima, coisas simples assim têm um poder mágico de se regenerarem – logo entra outro filho, cheira o ar e diz “olha, você usou a cera da casa da sua avó!”, mesmo nunca tendo posto os pés nessa casa, nem conhecido sua bisavó, nem sentido o cheiro da cera que ela efetivamente usava – mas, ainda assim, incrível, ele reconhece!

Surpreende-se porque só muito raramente o faço - por muitas bisnagas que contrabandeie no meio de camisetas e saias, um dia acabam, e eu fico a ver navios. Por isso, economizo-as e só as uso quando tenho muito bons motivos. Imagino que a minha memória das coisas boas e simples precisasse de ativação urgente, porque esse parece-me o único motivo para que hoje, especialmente, tenha eu desengavetado uma das últimas bisnagas. Essa história da memória tem me acompanhado nos últimos dias e fez-me, além de querer esfolar os joelhos no chão (porque a cera é em pasta, dura, daquelas de antigamente), resgatar um livro que li há anos - “Memória e sociedade”, chama-se, de autoria de uma professora querida, Eclea Bosi, numa daquelas preciosas e raras junções entre academia e poesia: histórias de velhos que recolheu para seu trabalho, entrelaçadas com as teorias psicológicas sobre a memória, seu campo de pesquisa e estudo.

Acho que o inferno astral está de fato me afetando, porque me pus a ler pensando nas coisas que, deste ano, ficarão gravadas na memória futura. Sei quais ficaram na memória de curto prazo, mas as interrogações me chegam quando penso no que lembrarei depois de ter esquecido.

Deve ser por isso que resgatei o livro (ou ele a mim, não fui à sua procura, ele de fato caiu-me nas mãos), já que sei que ele me dirá que ficarão impressas as coisas que se liguem ao que virá e o resignifiquem, sem obedecer a qualquer pensamento lógico do que é bom guardar ou esquecer. Por isso não valem a pena as minhas interrogações. É provável, também, que só eu lembre daquilo que lembrar, e que só eu saiba (ou nem saiba) porque um fato minúsculo me fará recordar tantos outros, detonando uma crise de lágrimas quando, velha como os velhos que Eclea entrevistou, alguém me perguntar sobre os eventos da minha própria vida, e eu me lembrar de um que ninguém perceba à primeira vista porque tão triste, porque tão evocativo, porque lembrá-lo afinal.

Fiquei tentando imaginar quem me fará chorar quando, como o rei Psâmenito chorou ao ver o mais velho de seus servos feito prisioneiro, vir passar à minha frente todas as lembranças da minha vida. Heródoto, que conta a história do rei egípcio, está presente no livro de Ecléa, e ela, que conta a história da memória, está presente nesta escrita desta madrugada, e fiquei com vontade de lhe telefonar e perguntar-lhe do que mesmo ela lembra dos momentos que eu lembro. Ecléa é um ser especial e sensível, que de vez em quando se lembra de mim; manda-me coisas as mais variadas, um dia um artigo sobre aquecimento global e transgênicos, outro uma poesia em francês, escrita à mão - no tamanho exato que cabe na parede da cozinha, de onde me acompanha dias e dias, permeando a minha lembrança de caligrafias miúdas, tintas azuis, papéis que de tão comuns reluzem naquilo que alguém já chamou de “as fímbrias da memória”.

Enquanto não me esqueço, é muito bom lembrar-me.

Um comentário:

  1. Querida Ana,

    Que inspirações as suas nessas últimas crônicas!

    Cêras em pasta com perfume de avó, filhos que nos devolvem o que neles imprimimos ainda que sem perceber, ou seja, as nossas próprias memórias, perguntas sobre o que ficará em nós do mundo, do outro e de nós mesmos, e deles em nós, quando os anos se forem sem pedir licenças, como sempre o fazem.

    Espero que seja bom ficar velho.

    Ivan

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