27/12/2009

A propósito de um verso de um poema

Termino o ano lendo Ana Cristina César - daqueles poetas que, por incomodarem, se relem. Ana Cristina transborda desespero e angústia por tantos lados, é impossível ser-lhe indiferente. Dependendo do dia, parece que se nos cola, um grude que não desiste e se infiltra até não conseguirmos mais - e precisarmos ler. Gosto dessa impressão, mesmo podendo chamá-la de desagradável. É tão poderosa e potente que nos abalroa e subleva, e eu gosto de me sentir abalroada às vezes, sem perceber de onde mesmo foi que veio isso que me atingiu. Muita coisa provoca esse sentimento - poemas fazem-no com frequência, mas também sorrisos, especialmente aqueles que não sei se são exatamente sorrisos, se são olhares materializados em forma de lábios. Levo horas e por vezes dias para processá-los, mas aprendi ao menos a fazer tudo isso em silêncio e sozinha, dando tempo ao tempo, e duvido que alguém me perceba nesse movimento.

Enfim: amanheci lembrando-me de um trecho de um poema de Ana Cristina (sentir separado dentre os dentes/um filete de sangue/nas gengivas) e fui à procura do início, porque esse é apenas seu fim. Não tenho nenhum de seus livros, mas tenho uma profusão de cópias de muitos de seus poemas, de curso aqui, curso acolá. Deu-me certo trabalho encontrar essa poesia em mente, e quando a encontro na verdade já a relembrei inteira. Descubro que essa procura fez com que achasse o que realmente preciso: outro poema, exatamente a pista que me conduz ao que quero fazer antes que chegue o novo ano. É um de seus raros sonetos (vou transcrevê-lo ali embaixo, é claro), e fala não de um ano novo, mas do sono e daquilo que devemos se o queremos. É preciso que nos dispamos, diz ela, ali, logo no primeiro verso, e eu só preciso mesmo é disso, o resto é pra me devolver a poeta, a quem amo e agradeço, mas peço licença. Do que eu preciso é só desse verbo, despir, na sua forma reflexiva: um poderoso despir-se que nos inverte o sentido natural do movimento, levando-o para dentro quando é originalmente para fora.

Descubro o que eu quero (e luto com um “preciso” que queria desajeitadamente infiltrar-se por entre estas linhas): quero despir-me do cansaço deste ano. Das suas sombras. Das suas luzes. Do que conquistei. Do que não fui capaz. De quem esteve. De quem partiu. Abrir-me em duas ou três ou quantas forem de mim necessárias para deixar sair tudo o que entrou durante este ano, e me construiu e desconstruiu por 12 meses. Talvez devesse despir-me das minhas letras. Quero esquecê-las. Meu bom amigo Llardent, editor de profissão, dizia que esquecer é publicar, e por isso aposento-as no papel, tarefa que não dói. A escrita cauteriza dores, faz escorrer destiladas, por entre os meus dedos, as letras que passearam por todos os meus órgãos, coração ao fim da lista, muitos mais ventrículos e átrios do que a anatomia física acusa. Vou preparar-me, neste tempo que resta, para as letras e as dores que virão, e para aqueles que as hão de inspirar.

Com o ato de despir-me, encontro camadas que são do começo do ano, camadas que ficaram até do ano anterior a este que se acaba, quem sabe se do outro ainda mais longe, e se amalgamaram à minha forma que quase pensei original. Retiro-as uma a uma, e antes de guardá-las, dobradas e bem seguras, nas caixas que arrumei para esse fim, olho-as por todos os lados, porque algo afinal devo aprender com cada uma delas que se fez tão frequente, para que não precise vestir-me de novo com nuvens do passado. Há algumas muito tênues. Se não estivesse tão focada nessa atividade no dia de hoje, provavelmente atravessariam o dia 31 despercebidas. Digo-lhes adeus.

Há algumas que me dizem baixinho que espere, que ainda não é hora, que nem tudo é regido por esse calendário gregoriano que nos ordena o tempo. Muda o ano, sim, mas nem tudo depende só do meu movimento, então haja calma. Há o que não posso despir, porque não posso ser deixada sem pele, em carne viva; não quero as dores do meu sangue do lado de fora do meu corpo. Mantenho essas camadas e esperarei que amadureçam, esperarei que me ajudem a retirá-las, porque sozinha é provável que doa demais.

E eu não devo, neste ano que está à porta, fazer-me doer a vida. Não devo dificultar as entradas e as saídas; enquanto me permaneça ao lado dos outros, não devo fazer doer as peles que não tenham sido retiradas. Há carne viva por baixo de nós todos, e nós todos somos feitos da mesma carne. Todos precisamos de descanso, e de sono, como Ana Cristina precisou, antes de se atirar do alto do seu prédio, porque todas as suas camadas foram-se-lhe arrancadas, ela própria repuxando uma a uma as suas dores, até não aguentar mais que tanta dor fosse só sua.


Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

Um comentário:

  1. Ana,

    Você me fez procurar coisas da Ana C. na internet (viva o google!)e ler o que tinha lido há 25 anos, no primeiro ano de faculdade, quando o meu curso ainda era o de história (que nunca deveria ter trocado pelo direito), na efervecência da PUC no primeiro ano da década em que todos que retornavam dos respectivos exílios eu escutava em palestras no TUCA (teatro da PUC, incendiado pelas forças da repressão alguns anos antes).

    Voltei a me impressionar com o poema abaixo, desde o título até a ideia de "nunca bastar" que a poeta me passa, da força e do cansaço do modo imperativo, "escreva, meça, imponha, imprima, peça". Resolvi dividir com você:

    FLORES DO MAIS

    devagar escreva
    uma primeira letra
    escreva
    na imediações construídas
    pelos furacões;
    devagar meça
    a primeira pássara
    bisonha que
    riscar
    o pano de boca
    aberto
    sobre os vendavais;
    devagar imponha
    o pulso
    que melhor
    souber sangrar
    sobre a faca
    das marés;
    devagar imprima
    o primeiro
    olhar
    sobre o galope molhado
    dos animais; devagar
    peça mais
    e mais e
    mais

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