14/06/2010

Das feridas que não cicatrizam



Recebi hoje uma mensagem de uma amiga de um tempo longe e de um lugar também longe, a que não respondi. Quer saber de mim, a Helena, há anos que não sabemos nada uma da outra, e ela me conta que a última vez que me rastreou pelos amigos do passado estava eu em meio à dor de assistir à morte de um filho. Eu não sei como consigo dormir sem lhe responder, sem lhe dizer que ela tem razão quando com seu email elimina o espaço entre o dia em que enterrei a minha filha e o dia de hoje, tantos anos depois. Mas não consigo dizer nada, a lembrança mergulhou-me num silêncio inquebrantável. Vou dormir com a resposta pendurada na soleira que se levantou entre o dia de hoje e o dia de amanhã.
A resposta é feita da aguda certeza de existirem feridas que não fecham nem cicatrizam. Parecem fazê-lo, acomodam-se serenas à nossa volta, enganam-nos na sua quase invisibilidade, fugindo aos nossos olhos e às nossas mãos. Protegem-se do mundo para que sobrevivamos, e criam uma pele, que quase nos parece verdadeira proteção, mas é feita só de brumas.
De tempos em tempos, essas feridas sangram. Doem como se fossem novas, talvez até mais, porque o tempo que passa se lhes junta a cada ano. Vivem depositadas nas dobras mais profundas dos nossos desertos, rasgam-se com facilidade se atingidas. Reaparecem à superfície, reacendendo sem piedade as antigas dúvidas, as mesmas culpas, a falta de ar, a inspiração que queima o pulmão como ferro ardente.
Fazem-se inexistentes aos olhos alheios, porque sabem que devem sê-lo, porque é preciso que não sejam presentes, para que os outros sobrevivam à nossa dor. Dor alheia aflige porque não se lhe conhece tamanho nem fim. Dói mais a quem não a sente na pele, porque quem a sofre nasce e se faz para tê-la dormindo ao seu lado sempre.
Por isso essas dores confundem. Porque não há como falar delas, às vezes sequer olhá-las. O máximo que se consegue é sussurrar-lhes que sosseguem, que toda noite chega ao fim e todo horizonte amanhece, escondendo a escuridão da noite que se seguirá.
Talvez pudessem ser todas elas óbvias e evidentes, as dores, se a vida lhes garantisse a visibilidade do que é considerado e respeitado. Se em noites longas como esta, em que o sol demora demais e o adjetivo tenebroso vem a calhar, houvesse tempo suficiente para que todos os fantasmas passeassem com tempo e espaço pela nossa porta. Se houvesse uma voz que soubesse e nos fizesse saber que sabe.

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