06/11/2012

Exercício: "Como anzóis"

Tenho quase certeza de que, nas primeiras horas da manhã, os amantes procuram-se com o reluzir de anzóis dentro dos olhos, numa estonteante linha de leveza e velocidade visível no instante do lançar-se ao rio. Precisam saber se ainda se pertencem, ou se as sombras os transformaram em outra coisa que não seu encontro de amor.

Isaura não saberia dizer. Os olhos de Armindo ainda estavam fechados quando ela abriu os seus, e assim permaneceram por horas. Essa extensão de tempo fez com que as retinas de Isaura se acostumassem com as fímbrias de luz filtrada pela persiana, uma luz de dia ainda não nascido mas já grávido de si mesmo. Por isso, quando os de Armindo se despregaram e ainda a olharam cobertos pela poeira dos seus sonhos, repararam na mulher que o fitava, mas não lhe perceberam o despertencimento; ou, se o perceberam, o que é bem possível também, se formos observar os fatos, guardou-o por dentro das pálpebras, naquele único lugar em que os olhos escolhem não ver.  Não por mal, mas por não poder ver. Talvez não tenha havido nenhuma linha lançada, nessa manhã. E talvez o mundo se tenha quebrado em dois, a linha inexistente cindindo a realidade.

É Isaura quem me conta esse acordar. Transformou-o num símbolo que a persegue uma e outra noite, quando acorda num susto e abre os olhos e a imagem de Armindo de olhos fechados a atinge imensa. Como se ela fosse uma ilha, e ele a rodeasse por todos os lados, menos mansa e amorosamente do que gostaria, claro, mas ainda assim rodeando. Seus olhos encharcam-se enquanto me conta. Espera (seus soluços não me deixam ouvir-lhe todas as palavras) que esta saudade aguda se transforme em crônica, e logo mais em névoa, e logo mais numa substância de nada que a permita respirar sem ansiar pelo que se foi. As suas mãos desenham no espaço entre nós o vazio que quer tanto encontrar.

Mas seus olhos desmentem as suas palavras, coisa que não ouso dizer-lhe, para não afundá-la mais nesse poço que ocupa. Há uma distância que a ajudo a estabelecer desse amanhecer de noite de amor sem olhos; consigo-lhe perspectiva e duração ao longo de horas, mas a sombra aproxima-se com lentidão e arrebata-me Isaura, e eu perco-a novamente. Só consigo, antes de que nos separemos, marcar um novo encontro, para amanhã ao meio dia. Espero que ela não me falte. Espero que eu não lhe falte.

Um comentário:

  1. Ah, Armindo, essa me doeu por dentro! Me tolheu a respiração, na expectativa de ver o anzol lançado no mar das emoções de Isaura.

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