22/01/2013

Do simbólico

Dia desses,  fiquei com vontade de comprar lã para tricotar. Há tempos que uma vontade dessas não aparecia. Comprei. Gosto de tricô desde pequena. Vivi a infância cheia de peças por acabar, casacos e coletes e meias começados e nunca terminados - a vida tinha a peculiaridade de me perseguir com novos brilhos e insistências, desviando-me dos meus reais e bem intencionados propósitos. Minha avó, observadora, tentou inutilmente ensinar-me crochê, achando que talvez me fosse mais fácil e rápido, mas desde o começo desgostei-me com aquela pobre agulha solitária; mesmo que não chegasse ao fim da peça, preferia o par de agulhas conversando entre si através do fio em transformação. Eram bonitas, as peças de crochê que ela fazia e com as quais me tentava, mas no fundo também ela preferia tricotar casacos e mantas e xales para toda a sua grande família. Também ela ouvia o diálogo silencioso entre as agulhas, como se fossem pessoas construindo afetos, e o fio entre elas a matéria prima da troca.

Tenho agora um par de agulhas em mãos. Iguais, do mesmo tamanho e espessura, e do mesmo material e cor. Tenho também um fio, lã que quis macia ao toque, duas cores entrelaçadas que quase se escondem uma na outra, porque querem desejar-se, talvez, invisíveis. Não creio que vá desmanchar nada do que tecer com estas duas agulhas, mesmo que estranhamente me apeteça a paciência e a espera de uma Penélope que trocasse o tear pelo tricô, mas presto-lhes atenção: por serem da mesma grossura, oferecem-me um tecido harmonioso, sem falhas nem inconsistências. São congruentes, estas agulhas. Interpretam o fio que se lhes oferece, trabalham-no sem esforço mas com constância e firmeza; não o largam, nem o quebram; não o apertam, nem o deixam frouxo. Minha avó dizia-me que nem uma coisa nem outra fazem bem, um ponto firme e solto ao mesmo tempo é o que se quer no tricô e na vida.

E o fio estende-se, uma metamorfose tecida sob o movimento articulado das agulhas. Cresce em comprimento e largura, deixando-se entrelaçar nesse diálogo sem palavras que ouço tilintar entre os meus dedos. Minha avó tricotava à noite, assim como rezava após o almoço. Terço entre os dedos, parecia dormitar, mas meditava. Em um e outro momento, eu invariavelmente mergulhava ao seu lado num livro, atividade que preferia a qualquer outra. Mas de vez em quando levantava os olhos e observava-a, demorava-me nos movimentos de seus lábios e de seus dedos, como se soubesse que ambos momentos eram semelhantes e eu precisaria da lembrança mais tarde, para mergulhar dentro de mim mesma de uma ou outra forma.

Nesse universo palpável que nos rodeia, onde tudo é símbolo de realidades mais profundas e internas, que acessamos ou não dependendo do quanto olhamos para as coisas com olhos de ver, são-me oferecidas estas agulhas, este fio, este tecido terminado. São chaves, capacidades dormentes em minhas mãos. Uso a mesma estratégia de menina: levanto os olhos e observo, em silêncio. A peça pronta que, dias depois, seguro nas mãos, porque não sou mais criança e aprendi a terminar o que começo, é a resposta à pergunta que faço.




9 comentários:

  1. Nossa, sensacional. Bom dia pra vc! e obrigada pelo texto!

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  2. Deu vontade de tricotar com você Querida... Saudade!

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  3. Bom dia Ana, amei o texto. Pra variar. Minha relação com o trico é essa tb..enquanto a linha se desenrola, o pensamento e as vezse até alguma angústia, se desenrola junto. E novas peças e situações se forma à nossa frente. Mil beijos. Acho que vo ali comprar agulha....mas hj vou no crochet mesmo.
    Bia.

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  4. Me encantó! ...hacia días que me preguntaba donde estarías.... Muy inspirada.

    Cuando podemos hablar? tengo ganas de oir mas de tus aventuras internas y yo puedo contarte de mis externas mientras hago media, claro.
    Abrazos
    Carme

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