01/06/2013

O último dia

Aos que falavam de Heráclito e Parmênides

É uma paisagem de rugas, o centro da cidade. Nas esquinas, nas paredes das velhas casas decadentes que abrigam sem variar bordéis ou cortiços, cravam-se marcas do que nem se lembra mais de ter sido. A decrepitude está por todos os lados, colada ao barulho e ao movimento sem nexo de pessoas que vão sem irem e que chegam sem terem vindo. E eu gosto. Nessa impressão de fim há vidas no mesmo processo de perda. Olhos que viram, mãos que tocaram. Uma desesperança sem cor por todos os lados, e a vida de repente escorrendo pelas sarjetas sem que ninguém lhe dê atenção. Eu gosto de sentar-me nos bares desses centros. E de olhar em volta, em busca dessas rugas que não entendo nem me consolam de nada, mas me fazem pensar.

Nem sempre carrego os pensamentos corretos. Ou ordenados. Ontem, na mesma hora em que Helena tombou, ocupava-me com Heráclito. Não conhecia dona Helena, mas fiquei em meio à multidão que se foi juntando, ouvindo retalhos de verdade da boca de todos. Doze facadas.  Tentaram reanimar, mas não teve jeito. E o homem lavando com calma a faca assassina na pia de casa, como se não lhe pertencesse. Ali mesmo, a polícia pegou, o sujeito era vizinho. A faca foi aumentando nas bocas dos que nada viram mas tudo sabem, desenham-lhe o tamanho com as mãos estendidas. E o tamanho de Helena diminuindo nas lembranças que todos já confundem. Acendem-se cigarros nervosos nas bocas desdentadas dos velhos que vivem essas esquinas todos os dias. Mulheres com filhos a tiracolo olham de lado e atravessam rápido, antes das perguntas. Motoboys descansam as motos e discutem todas as hipóteses da traição. Um diz que foi o marido. O outro, que foi o amante. O terceiro investigou: foi um cliente. E eles se entreolham, perguntando-se com os olhos cliente de qual mercadoria. E riem-se, mas sem desaforo, porque há silêncio por entre os corpos, e todos se sentem um pouco estendidos ao lado da mulher morta. Está calor, são ainda cinco horas da tarde. Quem tinha pressa, esqueceu-se dela, guarda o que vê para contar à mesa do jantar. Deve ter sido causa de droga. Foi não: foi mulher mesmo. Ou dívida. Diz que não pagou a cerveja de de manhã, e Helena cobrou. Foi lá e buscou a faca. E gostou do som da lâmina entrando na carne macia da Helena, não conseguiu mais parar. Coitada da Helena. Arrastada pelos cabelos, não teve tempo de pegar a arma dela debaixo do balcão. Ali mesmo, na calçada, as doze facadas. O garoto de olho ressecado diz que o povo gritou, mas ele nem ligou. E foi pra casa lavar a faca, o malandro. Bandido. Drogado.

Dona Helena, dona do bar menos afamado do centro, não ouve mais nada. Está dentro do rio que a conduz ao outro lado da vida. Deixa escapar a mão por baixo do sudário prateado com que a polícia a embrulhou sem cuidado. Há um anel nessa mão, num dedo curto e gordo que acaricia inerte a pedra da sarjeta, e uma tira espessa de sangue coagulado que se agarra com determinação às pedrinhas da calçada. Para tornar-se marca, que nenhuma água consiga lavar ou esquecer.

Enquanto Helena era esfaqueada, eu pensava no nada que sei de Heráclito e por consequência em Parmênides. No rio que ambos atravessaram, cada um a seu tempo e com uma impressão diferente sobre a verdade da água, e ao qual Helena se congrega, nesta tarde de sexta feira. Uma senhora ao meu lado, com uma imagem grande de Nossa Senhora das Graças, diz-me que agora sim ela está livre. Livre do pecado e livre do sofrimento de seus 47 anos, que acabam hoje em meio a esse tumulto de interessados no fim das coisas. Coitada, diz um rapaz ao meu lado, ninguém a defendeu. A mulher que tropeça na falta de dentes deixa escorrer as piores palavras que conhece: teve o que mereceu, essa puta da Helena.

E eu penso em Heráclito e em Parmênides, e nessas oposições contraditórias que a vida oferece como forma de encontrarmos sentido, e penso mais ainda quando a multidão se embaralha em volta dos cordões de isolamento nessa esquina dessa rua desse centro decrépito, e a polícia quer desfazer o novelo, e liga as sirenes, e em seus olhos brilha a intenção de passar por cima de quem não respeite as luzes que giram e a buzina que não dá sossego, e a turba é um rebanho que obedece sem perceber e tudo isso é uma coisa só e agora faz parte de mim porque aqui estou. Insisto em retirar os véus que Maya persiste em sobrepor diante dos meus olhos. E de repente vejo as lágrimas de duas mulheres, e os braços amparadores de um homem que aparece como consolo. Um estalar de afeto sem ruído. Difícil sair desse cenário, esse reconhecimento coletivo de destino na mulher caída, o pescoço aberto na facada fatal, a roupa ensaguentada, o sapato que escorrega de seu pé e cai sem que o enfermeiro da ambulância possa fazer qualquer coisa, porque se esqueceu de olhar para trás e ver. Como às vezes se faz com a vida, que escorrega para fora do pé, e não se tem nada a receber a não ser o choque duro e cru do asfalto esburacado de um centro qualquer de cidade.


Imagem: recorte de "Hombres leyendo", uma das "Pinturas Negras", de Goya.

Um comentário:

  1. Triste, sombrio... faz fio entre as linhas, como entre as frestas das memórias de quem amava Helena!
    A Helena que conheço era doce, boa,amorosa, minha tia Helena, saudade!
    Neca Terra

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