19/07/2013

Macular

Em meio à revisão de um romance sobre livros, descubro várias coisas interessantes. Por causa disso, a revisão demora mais tempo do que deveria, enquanto eu me divirto vagando por universos que se descobrem diante dos meus olhos, paralelos e cada vez mais distantes da questão que me levou até eles.

Descubro a existência de uma expressão específica para os livros publicados entre 1450 e 1500, os alvores da imprensa. Em tipos móveis, essas publicações são chamadas de incunabulas - as provenientes do berço. Não deixa de causar-me assombro a quantidade de coisas que se desconhecem, e a sua capacidade de aparecerem quando menos se espera. Sempre me pareceu que berços e livros tivessem uma relação muito particular, mas não sabia que tinha nome.

Descubro também o que são máculas. Coisas bem mais interessantes e abrangentes do que a sua falta na Virgem Maria, que por ser Imaculada (supunha eu) não carregava em si nenhum pecado. Algo assim ficou em minha memória dos tempos de catecismo. Máculas, achava eu, eram manchas, sujeiras agarradas à nossa alma, às quais o padre N. dava o nome de pecado, com um olhar enviesado que me fazia olhar também de esguelha para a porta atrás de mim, preocupada que me agarrassem e me condenassem ao fogo eterno. Mas são muito mais interessantes do que isso: nos livros, são pequenas manchas amarronzadas provocadas por umidade ou falta de ventilação adequada, e constituem importantes sinais para qualquer colecionador de antiguidades livrescas.

São evidências da passagem do tempo.

E o tempo esvai-se enquanto penso nessa Virgem nova que me aparece sem essas novas máculas. Sem evidências de que o tempo passe por ela, e por isso não a manche. Esta é a Virgem que se renova a cada instante, porque o tempo para ela não passa nem existe nem causa sombra. Porque Ela é para além dele, como nossa essência. Prefiro-a bem mais do que à outra,  e parece-me fazer bem mais sentido.

Como os livros, também a pele tem as suas máculas. As causas são várias. A concentração de melanina produz máculas com excesso ou deficiência de pigmento; percebem-se a olho nu, como manchas mais escuras ou claras. Defeitos na microcirculação da pele também causam manchas (como o eritema, que desaparece sobre compressão e depois retorna, como me informa sisudamente o texto médico que leio), assim como as máculas hemorrágicas, as equimoses, que podem ser pontos, ou linhas, ou placas. Mudam de cor conforme a concentração de hemoglobina do sangue diminui, e por isso vão do arroxeado ao amarelado em alguns dias - e nelas se percebe a passagem do tempo, o envelhecimento das dores, o esquecimento cutâneo dos danos.

Dos livros à pele, e dela de volta aos livros: é preciso que a revisão termine, para que eu possa dedicar-me a ler a pilha de livros que guardo ao meu lado, sem prestar muita atenção ao tempo que terei (ou não) para acariciar cada uma das páginas-pele à minha espera. Poderia continuar perdida em pensamentos sobre o que faremos sem a pele dos livros quando a hecatombe virtual nos dominar por completo, e sucumbirmos à praticidade óbvia dos ebooks e aparentados. Mas não devo - porque o tempo começará a passar veloz entre os meus dedos e o fim da revisão, e é preciso terminá-la.


Um comentário:

  1. Me faz bem, saber dessa Virgem renovada a cada momento novo. Acalenta-me a alma.

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