04/12/2013

homens com minúscula

Eu devia ter uns 13 ou 14 anos de idade. Fim de outono em Madrid, saio para uma festa com o filho de um amigo de meu pai. Boa família, esclarecida e culta, diplomacia não lembro mais de que país progressista. Vamos a casa de um outro amigo e depois de outro e ainda de outro. Em todas, a empatia entre nós é escassa, pouquíssimo reconhecimento de gostos ou de interesses. "Minha tribo é outra", devo provavelmente ter pensado, mas agora era ir até o final e impedir novos incentivos de meu pai para alargamento de meu campo social.

Na última casa, de onde se sairia finalmente para a tal festa, encontramos um tanto de garotos se divertindo na sala vendo revistas. Sou a única menina desse grupo que já contava com mais de 10 integrantes, e as revistas são todas as mesmas. Playboy. Os meninos me olham com cara de "essa não tem nada do que estas têm" (o que de certa forma era um fato), mas mesmo assim os olhares enviesam e os corpos ameaçam se aproximar. Algo dentro de mim se movimentou, incomodou e explodiu num segundo. Não sei bem de onde, mas uma onda de raiva (provavelmente amparada por uma outra de medo) me fez arrancar as revistas das mãos que passavam perto e sair rua afora, já noite, bairro desconhecido e isolado, numa sensação de impotência imensa diante de um mundo que começava e terminava na falta de respeito e na tocaia do perigo. Foram horas até conseguir chegar a espaços e pessoas reconhecíveis.

Há anos não lembrava dessa cena. Hoje, ao abrir o noticiário e me deparar com a nova campanha da Playboy, recupero o mesmo gosto amargo na boca. Porque tem coisas que não passam, e coisas que não acabam. A estupidez humana, e especialmente a estupidez masculina, é uma delas.

A matéria intitula-se "Playboy sai em defesa dos homens acuados". Tadinhos. São os homens que assinam embaixo de um documento, a "Constituição do homem livre" (sic), da qual constam artigos bem elucidativos, como "sim, adoramos ver uma bela bunda passar" ou "como casamento dá trabalho, deveríamos receber um mês de férias por ano". Valdir Leite, o gênio idealizador da campanha, preocupa-se com os homens que não sabem mais o que fazer no novo mundo dos relacionamentos, onde perderam o protagonismo. É para eles essa revista, porque, ainda segundo Leite, "a Playboy sempre teve um estilo editorial muito forte por conseguir dialogar com o homem inteligente". Passemos adiante sem comentar o paradoxo entre as coisas.

Poderíamos só rir - de desgosto, mas rir, e deixar a caravana passar. Porque, de fato, podemos olhar em volta e reconhecer uma porção de Homens que se comportam como seres humanos e constatar que essa não é a situação total. Mas, e esse é um Mas muito grande, não há como escapar do reconhecimento dos pequenos detalhes que um a um constroem a vida inteira. Não há como escapar nem de um Vinícius que todos amamos mas que teve a petulância de escrever, entre outras coisas, "as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental". Nem dessa enxurrada moderna de homens bacanas que têm tanta vontade e se sentem tão capacitados a nos dizerem (mandarem?) como sermos livres, haja visto o texto do auto-denominado libertário Vinícius Cardoso sobre Francisca que poderia ter nascido arquiteta mas era puta. Apesar do texto bem escrito de Cardoso, talvez tendendo ao choque pelo choque mas ainda assim, não há como não sentir que de boas intenções está aquele lugar cheio. Não há como escapar de tantos indícios que resvalam por dentro da ridicularização da "volubilidade do sentimento feminino" ao longo de um dia. Dos homens que prefeririam, lá no fundo, que suas mulheres falassem menos e não "enchessem tanto o saco" com suas cabeças pensantes. Que não se desequilibrassem por não aceitarem as "prerrogativas" da liberdade masculina. Que soubessem ser mais ativas, quando passivas, ou mais passivas, quanto ativas. E daqui já vejo os narizes que se torcem e os pensamentos que se alinham como se em campo de batalha: "ah pronto: tudo pelo politicamente correto, não dá mais nem pra fazer uma piadinha que já caem em cima".

Pois é. Não dá.

Não que não haja salvação: claro que há, porque estamos vivos. Prova disso é que todos os comentários, sejam femininos sejam masculinos, nos vários sites que publicaram a matéria, são taxativos na condenação e, no caso dos comentários masculinos, nem um sequer se reconhece nessa tal de campanha pela "masculinidade sufocada". O problema é sermos todas e todos engolidas  e engolidos por essa atmosfera geral tão antiga e tão presente. Um breve passeio pelos facebooks da vida nos enche de exemplos disso mesmo que nos indigna na campanha da Playboy - e de repente nos flagramos curtindo o comentário imbecil, a foto degradante, a musiquinha preconceituosa, o videozinho malicioso. E depois, não contentes, saímos em rodinhas pra comentar, bem masculina e estupidamente, o quanto aquele cara ali no balcão do bar é bom de cama. Não muito diferente da mesa do lado, em que um homem se compraz em compartilhar com os amigos detalhes da gostosa que ele anda comendo.

Entre uma coisa e a outra, fico me perguntando sobre os filhos e as filhas da gente, e sobre os filhos e as filhas desses homens minúsculos. O quanto, de dentro desse sentimento machista que gesta o pátrio poder, esses homens se reconhecerão nos "cafajestes" que se aproximam de suas meninas com "más intenções". A menos que, claro, olhem para suas filhas com os mesmos olhos enviesados e reclamem das saias que usam e que "depois não se queixe se forem mexer com você".

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