05/01/2014

As coisas simples

Alcaparras, limão e sal. Grelha e manteiga. O peixe, filés quase rosados. Ela gostava de coisas simples. Ele também. As coisas simples são as que permanecem. Comida simples que não se mascara, assumida na leveza direta de dois ou três sabores, uns dentro dos outros como pertencimentos e não encontros. Ela gostava de pertencimentos. De entradas e saídas sem precisar pensar em desocupação. As coisas simples e as coisas perfeitas. Comida inclusive.

Perdera a conta das vezes da receita. Mas lembrança não se gasta, ganha vida em baixo relevo na parede da memória. A parede da memória era a pele da sua vida. O órgão mais extenso. O de maior e inescapável memória.

Ele não soube. Não da pele, matéria virgem diante de si mesmo, mas das mãos na carícia dos limões antes de arrancá-los do pé; dos olhos entreabertos filtrando o verde das alcaparras contra-luz; dos dedos na lavagem escorregadia e fria dos filés, do deixá-los escorregar por entre os dedos e depois sossegá-los na tigela. Em cada ação, o pensamento tornado metáfora. Era ele, e não o mundo, no transcorrer do dia.

Ele não soube do tempo de repouso na mesa, dos minutos de rede no espiar das nuvens, a sua mesma pressa. Faltou-lhe saber do calor dos olhos no derretimento da manteiga. Da hora à porta. Do cabelo molhado a secar no sereno. Da lua, da noite. Dos braços apoiados na cerca primitiva de arame, o olhar nas estrelas em assombro espalhado. Do mundo todo preparado para recebê-lo, num compasso de antecipação. Podia ter sido um dia como tantos.

Mas não. Porque o tempo inaugura espaços próprios, diminui os vãos e alimenta o que circula abaixo da superfície do lugar comum da vida. E esse é o lugar tão pouco comum das coisas, ela pensou.

Isso foi momentos antes de se permitir o sonho. E amá-lo.



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