09/01/2014

Liturgia das horas 2

Lia eu outro dia, num artigo sobre não sei bem o que, que o fotógrafo que não sai às ruas não tem assunto sobre o que fotografar. Acho que o mesmo, muitas vezes, se aplica à escrita. Depende do dia, porque depende da disposição interna, mas há dias em que os olhos estão mais abertos para as coisas que não se veem. Esses dias são a glória, e andar pelas ruas formigadas de gente do centro de São Paulo é quase uma dádiva. Hoje, foi um desses, regado a surpresas.

A liturgia das horas, que me acompanhou desde manhã e desde o post anterior, é a oração pública comunitária da igreja católica. Consiste numa série de orações para serem feitas ao longo do dia, um ritmo de oito momentos que Bento estabeleceu lá no século quinto da era cristã e se tornou um pilar na formação da cultura ocidental, ganhando o nome de "Regra de São Bento". Efetivamente, criou pausas estratégicas dentro da agitação mundana para que nos lembremos de que o mundo do espírito vive dentro da matéria. Assim sinto, ao menos: acho que não há nada mais espiritual do que a matéria encarnada, por dentro da qual e através da qual o espírito se fez tão presente que se tornou visível. As horas, e a sua passagem, parecem-me provas irrefutáveis.

Deve ter sido por isso que pouco antes do meio dia, muito mas muito por acaso, entrei na igreja do mosteiro de São Bento. A tempo do ofício da Hora Média: as doze horas, momento de agradecer a manhã que se teve, o almoço que logo chega e a tarde que antecederá a noite. Os monges vestidos de escuro contra o fundo também escuro da igreja, a penumbra e o suave canto gregoriano sobrepuseram-se à azáfama lá de fora. Silenciaram todas as perguntas. Fecharam os olhos. Diminuíram as batidas do coração. E eu deixei-me ficar, sem pensar em quase nada, até que as doze badaladas anunciaram o começo da tarde e me catapultaram de volta ao mundo mortal.

Foi bom ter tido a pausa de agradecer a manhã. Bom e mais do que apropriado, porque esta babilônia paulicéica que é São Paulo oferece motivos de agradecimento a cada esquina. É tanta variedade, tanta cor, tanto brilho, tanta diferença, tanta semelhança, tanto som, tanto movimento que seriam precisos oito pares de olhos para conseguir ver tudo. Como só tenho dois, dou testemunho da parcela do que vi.


Emerson é pernambucano, e por isso aguenta 7 horas seguidas de prestidigitação ao sol de rachar destes dias. É ele quem diz. E é cobra dentro da mochila, é ovo e pinto dentro do saco, é óculos que desaparece e reaparece na cabeça da moça bonita, é brincadeira com um, brincadeira com outro, malícia de um lado, ingenuidade de outro. A roda forma-se em torno desse homem ágil, alto, sorriso falhado. Um respiro em forma de roda no meio do mar de sacolas da 25 de março. Emerson pede um aplauso para Jesus Cristo, sem ele não somos nada, povo de deus!, e depois volta com a mesma brincadeira, misturando macumba com evangelismo e mágica com safadeza. A hora que pede uns trocados e se vira pra um dos lados com a sacolinha na mão, o outro lado desaparece no meio do povo. E Emerson ri, e diz "ê povo... se eu fosse precisar de vocês pra comer não tava aqui pegando sol! Eu quero é divertir vocês!". E logo aparece uma nota de cinco reais e ele corre pra pegar e graceja de novo: "ainda bem que tu não acreditou, negão!". Quando passa por mim, dou-lhe um punhado de moedas que tenho na bolsa e ele pisca um olho e diz: "menina, assim eu vou é ficar rico!. Eu pisco meio sem graça de volta, a roda inteira racha o bico, e eu não sei, mas vou embora com a impressão de que tenho um segredo guardado.

Victor é ator. E Tânia também. E a companhia que formaram faz tudo a mesma coisa: gente estátua parada nas esquinas. Victor é um anjo barroco, de sorriso beatífico que faz sorrir de volta. Dá vontade de ficar ali, sentadinha debaixo do guarda-sol dele, esperando a hora de subir pra casa, quer dizer, pro céu. 

Ponho uma moeda na caixinha, acho que já estou há tanto tempo ali, tirando fotos. Ele dá-me um papelzinho desses com mensagens genéricas sobre ser melhor e tranquilo na vida, esperar as agruras passarem e etc. Quando vai retirar o papel da caixinha, deixa um outro cair. Eu pego do chão e proponho-lhe uma troca com aquele que ele me estende. Ele sorri diferente e quase sem querer pisca-me um olho, aceitando a troca. Eu pisco-lhe outro de volta, e lá vou, certa agora de que tenho não um, mas dois segredos a mais na bagagem.

E Vanessa vende pedrarias. Entro na loja dela, 4º andar do prédio da esquina da Ladeira Porto Geral, indicação certeira do amigo Ivan. Espreito pela porta e só entro, mas só entro mesmo, por causa do sorriso que ela abre, uma boca cheia de dentes brancos que parecem doidos pra conversar. E vou perguntando, puxando assunto, tem cascalho de granada, tem conta de cristal, tem firma de vidro, tem conta de quartzo rosa, tem pedra disso, tem pedra daquilo... E ela vem atrás de mim, enquanto eu vou passando a mão pelas cestinhas de contas, um tilintar quase inaudível entre o céu e a algazarra lá de baixo. Vanessa vai me mostrando as coisas e de repente pára. Ah, eu vou te mostrar o que vale a pena mesmo. E lá de baixo tira umas caixinhas com outras contas, mais transparentes e mais brilhantes, mais pesadas e mais de verdade. Segredos. E eu sorrio e ela sorri, e ela pisca-me o olho e eu pisco de volta. No elevador pra descer solto uma gargalhada. Ninguém entende: eu tenho mais um segredo na bagagem.

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