12/04/2014

Bala de canela

Para a minha xará tão querida

Virgílio fez ontem 54 anos. Viúvo, grisalho, envelhecido, olhos encovados pelo peso das contas da mercearia. Vende de tudo. Ou vendia. Caixinha de fósforo, batata, Tubaína, pão francês fresquinho que o menino vai buscar ao forno antigo de dona Bastiana. Na prateleira mais lustrada, dentro de vidros leitosos, sonhos de valsa a granel para os gulosos e balas de canela, vermelhas e redondas. Como os calos novos nas mãos antigas de Virgílio.

Ciça vinha só de férias. Tinha a vida noutro canto, mas de vez em quando aparecia, e Virgílio espreitava pelo canto da porta. O carro cor de rosa em que todos reparavam. Ciça vinha à janela, o cabelo escuro ao vento, os olhos curiosos à procura dos olhos morenos na esquina da mercearia tosca. O rapaz descia os dois degraus com a pressa de quem sabia que o tempo é justiceiro cruel, e corria atrás do carro, a mão agarrada ao pacotinho marrom recheado do que Ciça mais gosta. São as balas de canela, e o punhado de sonhos de valsa.

Os vidros grossos de tampas de latão estão lá, com as balas e os sonhos de valsa sem envelhecer. Não mudaram de lugar, e nem Ciça e Virgílio se casaram. Virgílio acertou-se com a filha de dona Bastiana, e a mercearia fundiu-se com a padaria. Ciça ficou na cidade grande, onde a família lhe desenhava o futuro. A alegria de encontrar os olhos de Virgílio sucumbiu diante das luzes do longe. E Ciça não voltou mais, e nem Virgílio a foi procurar. Nem quando Bastiana morreu, e o sonho do carro virando a esquina lhe atravessava os dias, o cabelo ao vento, os olhos úmidos de saudades.

Hoje cedo, ao café com que a surpreendem na cama ao acordar, um pacotinho marrom faz o coração de Ciça parar de valsar dentro do peito: os sonhos estão ali dentro, agarrados às balas de canela que existem só pra disfarçar. Ciça tem os olhos cheios de água, esse amor que atravessa o tempo, e ele, ali, tão fresco e recente, sequer deve ter reparado.

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