08/05/2018

Dia de feira

Eu nem fui, mas estou aqui lendo os testemunhos de quem foi. Por exemplo:

“É o primeiro ano que eu venho aqui. Eu não sabia. Estou encantada. Eu abraço todo mundo, porque eu voltei lá na minha origem. Eu sou do Maranhão, moro aqui desde 94. Eu estou emocionada com o rosto de cada um desse povo, feliz. Eu vi neles a imagem das pessoas que eu perdi, que eu amava, que são meus avós. Porque eu plantei, eu colhi, eu comi, eu vivi, eu sorri. Meu avô cedia terra para as pessoas plantarem. Eu estou muito emocionada”.

Essa é Alcione França, do Maranhão, migrada desde 1994 em São Paulo. Vou guardar só o depoimento dela, e não mais esquecer, e desejar que ela, que agora sabe, não esqueça. Não esqueça dessa riqueza que todos nós podemos ver nos outros, inclusive as pessoas que perdemos, inclusive aquelas que fomos nós mesmos na infância, esse tempo em que se resiste bem melhor a pautar a vida pelas diferenças que se encontram, e se brinca e se constroem mundos onde todos têm espaço, tempo, lugar e afeto. Estou tão emocionada quanto ela, por ela, e com ela.

Alcione foi visitar a feira do MST neste fim de semana no Parque da Água Branca. Com ela, milhares de pessoas, encantadas com a variedade, a simpatia, o astral, a alegria desses assentados de todos e cada um dos 24 estados brasileiros, trazendo pra São Paulo, sob a grande bandeira vermelha do MST, a sua produção orgânica, verdadeira e suada. A feira causou um reboliço também nas redes sociais, inimizades acendidas pela crescente incapacidade de lidar com o que é diferente de si próprio. Parece o reino da obnubilação. Não há o que se diga, nem evidências que se mostrem. A pessoa é contra, e contra quer ser. Quase parece que abdicou da sua humana capacidade de pensar para além do que já pensou.

Eu nem fui na feira, mas meu filho Cândido foi. E também o amigo dele, Pedro. Entrou hoje na kombi, carona pra escola, de boné MST na cabeça, camiseta vermelho vivo por baixo da camisa xadrez e um sorriso no rosto que me capturou o trajeto todo. Eu olhava pra ele pelo retrovisor, e ele sorria. Nem sei (pensei) se já voltou da feira, acho que o coração dele ficou por lá. Acho que o coração dele se encantou com um país que é tão raro poder se ver, de gente bonita e alegre, sorridente dentro de tudo o que lhe falta, comprometida com o prato de comida que é preciso pôr na mesa de todos. Um país que é raro poder se ver neste sudeste tão rico de tudo e às vezes tão carente do afeto simples que brota de um abraço calejado. Um país que sofre mas não calado, que luta mas não esfaqueia pelas costas, que grita mas não se torna surdo.

Volto para casa e recebo a entrevista de Leonardo Boff, sobre a hora e meia que (finalmente) passou com Lula. Vejo a emoção que não o deixa prosseguir. Abaixa a cabeça e imagino-o na luta para deixar a lágrima para depois. Diz que encontrou seu velho amigo, que é difícil essa vida numa solitária, podendo trocar palavras apenas com quem lhe traz a comida, "uma pessoa muito simpática", completa. Penso em toda a sua luta pelos que mais sofrem, penso no que seus olhos já viram, nas mãos que já apertou, nos corações que já consolou e na luta terrível que deve existir dentro dele para criar na Terra a mesma justiça que Jesus pediu no templo, todos os dias, amanhecendo amanhã parecendo que o ontem nem criou raiz.

Chego por acaso a uma citação do discurso do deputado federal João Amazonas, já lá se vão 70 anos, quando se discutia a questão terra na Assembleia Nacional. Dizia ele: "Resolver o problema da terra é resolver o problema da fome no Brasil, é abrir novas perspectivas para o desenvolvimento industrial do país, porque só com a terra entregue ao povo, em poder dos que trabalham, poderá aumentar o nível de vida das grandes massas e crescer, como se torna necessário, o mercado interno". Setenta anos atrás.

E penso. Não chego a grandes lugares, mas os olhos de Pedro lá no banco de trás da kombi, e o brilho que trazem, recolhido por entre tudo o que viram neste fim de semana, me dão certeza, como se as mãos me dessem, de que nem a luta termina nem a iniquidade passa.



Onde está o depoimento de Alcione: https://www.brasildefato.com.br/2018/05/06/paulistanos-se-encontram-com-os-frutos-da-reforma-agraria/
E a entrevista de Leonardo Boff: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-leonardo-boff-conta-como-foi-sua-visita-a-lula-na-prisao/
Fonte da foto, e do trecho de João Amazonas: http://ujs.org.br/index.php/noticias/mst-historia-de-luta-e-resistencia-por-rafaela-elisiario/

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