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05/09/2013

A luz do trabalho

Tudo começou com um Ê do lado de dentro, hoje, logo ao acordar. Atrás desse Ê vibrátil, desdobraram-se a partir da nuca, num lugar que vou chamar de "atrás da garganta", dois emaranhados de letras: elaborar e elucubrar. A alma em processo de retorno à matéria procura seu espaço, nessa povoação de outros seres que encontra ao voltar, e atravessa-me como forma de imaginar. Tenho trabalho pela frente, sei que penso um segundo antes de levantar. Ê permeia o dia inteiro, suave canto de alguém que se aproxima.

Esse trabalho que sei ter pela frente, porque estou disposta a perceber onde se origina e qual é o combustível que o faz avançar, produz uma espécie de agitação interna que só vou chamar de criativa porque não tenho outra palavra melhor, e também porque o I-Ching me ofereceu, de bandeja, o seu primeiro hexagrama: Chi'en, O Criativo. O céu em cima, o céu embaixo. A certeza da duração do tempo em cima; a atitude do homem sábio embaixo. Essa agitação que chamo de criativa não incomoda, não altera o rumo nem fere o prumo. Produz-me, no mais das vezes, isto: escrita.

Volto a meio do dia em busca do Ê. Do que o explique. Sinto-o em formação dentro da boca, batendo-se como um barco contra os dentes e logo a seguir contra as paredes de carne; reflui pela longa caverna que é a boca. Um eco de som dentro dessa gruta, um cruzamento abaixo do céu da boca. Deve haver um homem sábio dentro dela, penso, talvez seja através dele que esse Ê se prolongue e me alcance. Os nervos que se cruzam por todo o corpo, os trançados de músculos quase encruzilhadas, todos a um só tempo respondem: Ê-ê. O coração vibra vida, o pensamento perde a neblina, a ação dirige-se certeira. Os índios Tubuguaçu diziam que é aqui, na altura da garganta onde este meu Ê vibra, que a alma se torna livre. A mesma garganta que se contrai, se abre, deixa o outro passar, acolhe-o numa doçura de nuvem prestes a chover. No Ê vibrante desse lugar tão interno e sensório e primitivo, nasce a parte de mim mesma que me faz mais humana. Como encontrar o amante do mundo do espírito.

Em seu desdobrar-se ao longo da tarde, Ê torna-se elaborar. Aquilo que, de laborare - o trabalho, a labuta, o esforço, a luta -, só por causa desse Ê que vibra em mim, se transforma em tomar cuidado, em atender o chamado. Elaborar, essa coisa que pensamos fazer quando pensamos em algo e lhe conferimos significado, é antes de mais nada ter e tomar cuidado. Tudo o que é frágil, tudo o que é forte, demanda cuidado. Ê vibra em mim demandando cuidado.

Começo de noite, Ê migra para as terras do elucubrar. Penso que derive de locus, o lugar. E até me divirto pensando "eureka!: o lugar do trabalho!". Mas não, longe disso. Elucubrare é (apenas) compor à noite, queimar até o óleo da meia noite acabar. Como fazem meus olhos quando não querem fechar-se, nem os de fora, nem os dentro. Até o óleo da meia noite queimar. Leuk, essa palavra tão antiga, mãe de lux, é a luz branca que brilha onde moram as trevas, e é de lá que nasce a palavra elucubrar. É preciso, à noite, trabalhar sob luz. É preciso imaginar o contorno da sombra, o seu preencher, os seus pontos de toque e contato.

Ê, como bisturi preciso, atravessa-me o sentimento. Distancia-me. Objetiva-me. É forte, paixão em estado primitivo. Não se permite recusas, não admite meios termos. Elaboro o lugar em que estou, sob a luz que me acendo. Como se essa antipatia do Ê cruzado em meu peito fosse recurso válido de salvação. Feixes de força dançando ao meu redor. Já é madrugada, e eu durmo de olhos fechados.




Os índios Tubuguaçu, e outras coisas, estão citados em http://www.ouvirativo.com.br/mp7/pdf/tx_am2_anadenise.pdf
A imagem representa Iansã