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10/08/2014

Dragões

"Quando olhei para ele, eu vi a mim mesmo".

É assim que Soluço explica o seu encantamento pelo dragão banguela. Não esperava encontrar muita coisa em "Como treinar seu dragão". Mas a história me cativa, e muito. Essa frase em particular ficou ressoando em mim, acordando memórias e associando-se ao resto das coisas da vida de hoje.

Banguela não é um dragão diferente dos outros. E nem Soluço um garoto diferente dos outros, apesar de herdeiro do trono de seu pai viking. O que é diferente é a sua disposição, esse lugar da alma que significa pôr (do latim ponere) à parte (dis-). Quando existe disposição é porque algo se arrumou, se colocou a um lado, o que vem a significar que se lhe deu atenção diferenciada.  Soluço parece ter uma disposição interna imensa de observar as coisas, de colocá-las a um lado e olhá-las com atenção, sem misturá-las a si próprio e nem àquilo que já está dado e consentido como "normal".

Essa disposição observadora permite-lhe ver o que outros não enxergam. Percebe que os dragões que seu povo combate e insiste em exterminar, são seres tão presos e cativos de outros quanto os próprios vikings. Atacam porque são atacados. Matam porque receiam a morte que pesa sobre suas próprias cabeças. Curvam-se à ameaça de quem os domina, e os vikings curvam-se também. Com disposição, Soluço põe-se à escuta e percebe caminhos de encontro com esses seres. Transforma o paradigma porque descortina possibilidades. E descortina possibilidades porque não alimenta medo. Já se sabe que o medo é o mais perfeito imobilizador que existe.

A meio do filme, lembrei-me do quadro de Paolo Uccello, pintor italiano do Quattrocento - "São Jorge e o dragão", pintado por volta de 1460. Dragões são representações fortes desde os primórdios da humanidade, e essa obra de Uccello está presente em "O homem e seus símbolos", de Jung. É a imagem que ilustra este texto: vale a pena olhá-la com disposição. Perceber as sutilezas para as quais nossos olhos foram educados a ser cegos. As sutilezas que envolvem a relação da moça à esquerda com o dragão, e as sutilezas da relação do cavaleiro à direita do mesmo. As mãos de uma, e o que seguram, e as mãos do outro, e o que seguram. Forças humanas a um lado e a outro da figura mitológica: o que cada uma delas representa? Para onde seu olhar se dirige em primeiro lugar? O que evocam em você os mundos representados atrás dessas figuras? Só a disposição observadora, aberta e atenta, pode trazer-nos respostas - quando olhamos para ele, vemo-nos a nós mesmos.

"Quando olhei para ele, vi a mim mesmo" poderia ser também a fala de Carl Hart, autor de "Um preço muito alto". Acabo de ler quase que num fôlego só. Hart é neurocientista e o seu campo de pesquisa é a ação que as drogas têm sobre o cérebro. O seu livro, porém, vai muito além disso. É um relato pessoal de percurso humano, de história de vida e de reflexão sobre ela. Um relato do perceber o fio que a vida tece para chegarmos onde chegamos. Hart derruba sistematicamente por terra vários dos mitos que envolvem o tema das drogas na nossa sociedade, e derruba-os a partir de uma premissa que foi construindo em si ao longo da vida: o questionamento de tudo o que achava que sabia sobre as drogas e a disposição de olhar além daquilo que assumia como verdade para si mesmo e para o mundo. O percurso que Hart nos oferece, recheado de dados estatísticos oriundos de bem fundamentadas pesquisas, toca-nos não só naquilo que achamos que sabemos e pensamos sobre o universo da droga. Toca-nos também naquilo que achamos que sabemos sobre as nossas vidas e sobre o mundo ao nosso redor. Toca-nos também naquilo que nos aflige, que nos desnorteia, e que é a busca de todo ser humano sobre a terra.

A disposição empática permeia o desenho animado, o livro de Hart e o quadro de Uccello. Todos são ofertas generosas de ver além das aparências, janelas para esse nós-mesmos que ainda não conhecemos. Não sei se existirá algo mais transformador e revolucionário do que encontrar-se no outro. Do que perceber que no outro vive uma parte de nós, e que dentro de nós vive o outro refletido. Encontros são janelas para esse novo olhar, e dar o passo que nos tire das certezas não é fácil, mas é o caminho. O caminho para situar em terreno seguro as nossas andanças, de fazer as escolhas corretas, de tomar os rumos acertados. Sejam eles sensatos e lógicos, sejam eles apaixonados e desconhecidos. Sem a disposição de um novo olhar sobre o outro e sobre si mesmo, sem abrir mão das certezas e daquilo que achamos saber, qualquer encontro se torna um acidente de percurso, e não um desbravador de mundos.


02/10/2013

O justo lugar do outro

Acabo de ler um artigo no The New York Times sobre crack e metanfetamina. Um estudo de Carl Hart, onde se constata que, ao se apresentar uma alternativa econômica a usuários de crack, muitos adictos tendem a preferir a alternativa, derrubando por terra a teoria de que o dependente de crack faria qualquer coisa pela próxima pedra.

Hart conclui que o desenvolvimento da dependência é uma questão fortemente ambiental, uma questão do lugar e da situação social do indivíduo. Mais uma voz que engrossa o discurso de que o que se precisa, em termos também políticos, são profundas remodelações na estrutura da sociedade, na maneira como nos organizamos e compartilhamos entre nós bens e serviços, e não medidas punitivas ou repressoras.

O que me chamou a atenção, e posso expandir em outras direções, é essa constatação da necessidade de serem oferecidas/existirem alternativas.

Alternativa é uma palavra curiosa. Desmembra-se sem demoras, separando o alter do nativa. Há anos que gosto da palavra alter - esse outro que não sou eu, esse conhecimento que me chega através da existência do outro, a corrente que migra entre dois lugares/seres: sempre há um outro além de mim quando o mundo se veste de alter. A solução (se pensarmos que são necessárias alternativas ao que aí está) está, portanto, ligada a um outro que não sou eu, e a a mim mesma quando estou no lugar de "outro" de alguém.

Nativa chega-nos, diretamente e pra variar, do latim: é o original, inato e natural, é o nascido, o ser que começa a existir. Só posso concluir que alternativa seja algo que nasce e é original e inato de um outro. Quando se nos é oferecido/existe, é uma bênção, uma dádiva, um presente sublime. Não vamos sozinhos a lugar algum. Precisamos de mãos que nos façam crescer, e quando o outro as estende, nasce a alternativa. Como é uma via de mão dupla, também o outro precisa da nossa mão estendida, para que possa crescer. Nós somos a alternativa do outro, e o outro é a nossa alternativa.

Porém, para que a alternativa possa cumprir esse seu objetivo (de mudar o rumo, o foco, a atividade, o vínculo, a direção das coisas) é preciso que três qualidades se manifestem (além da do interesse, que é básica e sem ela não há nem começo). Sem essas três qualidades, ou os movimentos são inócuos ou, pior, danosos. A primeira dessas três qualidades é a justiça; a segunda, a fraternidade; e a terceira, o altruísmo.

Se a justiça não rege o movimento que fazemos na direção do outro, levando-lhe o que nasce dentro de nós com clareza, precisão e verdade, criamos uma teia silenciosa e invisível à sua volta, uma teia ardilosa e insidiosa, que oprime, que queima, que magoa. A justiça demanda olho claro e ouvido acordado; demanda que nos ouçamos e àquilo que nos move; demanda que estejamos atentos ao que isso que nasce em nós poderá vir a provocar no outro, e o quanto é justo provocar no outro alguma coisa, se depois não a sustentarmos quando, quanto e como for necessário ao outro. A justiça está ligada a responsabilidade, e a um senso de respeito que ultrapassa quaisquer outras questões.

Esse respeito básico existe se quem vemos no outro é igual a quem vemos em nós: ou seja, nosso irmão. Quando não é a fraternidade que rege esse movimento do estender a mão, o outro distancia-se porque não alcança essa estatura que o torna nosso frater. Sem a luz e a percepção de irmandade, o outro é pouco, e nós somos pouco também, presos a esse pesado solo ilusório que nos faz julgar, supor e determinar sem de fato sabermos do que falamos. Se a fraternidade está presente, há uma doçura e uma sensibilidade nos movimentos que nos impedem de estraçalharmos o outro no que ele tem de mais primordial, que é o ser igual a nós mesmos. Mesmo inconscientes, é a nós mesmos que estraçalhamos.

Nessa troca entre dois iguais, o altruísmo ergue-se como faca de dois gumes. A sua contraparte, o egoísmo, vem-lhe colada e amalgamada. Toda ação comporta o olho no outro e o olho em nós mesmos. As alternativas, quando oferecidas com os olhos mais postos nos outros do que em nós mesmos, lançam-se desenvoltas, naturais, porque antes de pensarem/sentirem em si mesmas, nas suas tranquilidades, nas suas salvaguardas, nos seus confortos, nas suas prioridades, pensam/sentem com o sentimento do outro. Aí, sim, são alternativas a esse mundo que tanto dizemos querer ver transformado, enquanto o reeditamos igualmente duro e distante dentro de nós mesmos e do que vive ao nosso redor.


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