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29/07/2021

Ser equânime


Uma Gira é um lugar de aprendizado, tanto quanto qualquer outro. Se não se está atento, perde-se muito. O tipo de atenção pode acontecer de várias formas, não há receita - a Umbanda pede a nossa entrega - nossa, de cada um, de acordo com seu jeito, forma, maneira. 

Há uma coisa, no entanto, que ouvimos com frequência: "firma a cabeça, filha". Firmar a cabeça é estar presente no agora, é exercitar o estar concentrado e com os pés bem assentados no chão; e, ao mesmo tempo, aberto ao inusitado, ao imponderável, à surpresa. Temos auxiliares para firmar a cabeça, e é Vó Chica que nos ensina: quem firma a cabeça é o fazer das mãos. Inativos, divagamos. Em atividade, laboriosos, as nossas mãos ensinam-nos através do tato, que é justamente um atributo que necessitamos praticar ao extremo: ter tato. O das mãos, que nos conduz também ao tato com o outro. Começa com aquela máxima batida: falar quando é para falar, calar quando é para calar.

Algumas vezes, sem dizer nada, os Guias nos mostram necessidades. Porém, se não houver atenção ao que nos deixam quando partem, e reflexão sobre isso, deixamos de aproveitar a sabedoria que nos trazem, sabedoria que inclui como viver os dias que nos toca viver.

O ritmo do trabalho grupal, por exemplo. A maneira como trabalhamos em nossa própria qualidade de presença. O quanto seguimos orientações sem discuti-las, o quanto aceitamos uma direção sem lhe procurar variantes. O quanto somos capazes de compreender uma coisa por detrás da sua aparência. O quanto treinamos essas qualidades, essas atitudes. Tudo isso, diz Vó Chica, prepara-nos para agir de forma imediata. Aquilo de que necessitamos quando somos chamados a ações imediatas. É preciso preparar-se.

Sr. Pena Vermelha pediu-me, há dias, que aprendesse sobre equanimidade. Disse ele ser qualidade indispensável ao trato com o outro. "Você precisa ser equânime". Deixo essa palavra guardada, alegre pelo tesouro que com certeza reveste. Costumam ser isso, essas palavras oferecidas sem pedir nada em retorno, a não ser entrega, presença e confiança plenas. Coisas que, afinal, beneficiam sobretudo a mim mesma, creio.

O ser de qualidade equânime é um ser benevolente, de espírito moderado - moderado porque tem medida. Deriva do latim aeques animus. Animus-animi, bem declinado, responde por um sem fim de qualidades - energia, coragem, audácia, vontade, desejo, inclinação, intenção, paixão, espírito. Resvalamos aqui sem dificuldade para  Anima-animae - as qualidades de sopro, psique, vida, animação, vento, respiração, alma. A sua derivação mais antiga alcança o indo-europeu, como -ane, o passo para respirar. Pneuma, em grego, que significa alma, tem relação estreita com nossos pulmões, e o mesmo se dá com a palavra hebraica para alma, neshmáh, que deriva de linshom, que por sua vez significa respirar. O sopro e a respiração, animam a alma. E a coragem e a audácia incendeiam o espírito. É preciso respirar, e se deixar incendiar.

E é deste último que a ação com o outro deve estar permeada. Com animo praesenti (presença de espírito) e ex animo (de coração). Equânime é o espírito que se dirige ao outro com a mesma igualdade de ânimo: reto, justo, e sem alteração.

A alma respira, o espírito permeia. Cada Gira, cada Guia, búzios desabrochados cheios de sabedoria. Abertos, inspiram. Fechados, expiram. Vó Chica sopra os búzios antes de jogá-los (acho até que lhes segreda algumas palavras, mas tão baixo que não escuto, dá-lhes alma talvez) e o Espírito manifesta-se através deles, fazendo o ar circular em volta, trazendo mensagens, levando pedidos. Há muito Mistério envolvido, e só a equanimidade traz respostas. A firmeza dos nossos pensamentos nos coloca em equilíbrio, de forma ativa e aberta. Alma e espírito conversam, ao lado desses banquinhos onde os Guias se sentam e impregnam nossos seres com sua atmosfera pacífica e sábia.

24/05/2021

Uru'ku

São muitas as experiências que a vida de Terreiro nos oferece. O Caboclo Pena Vermelha, por exemplo, ao chegar em terra, assinala seus filhos com a tinta do urucum. Como um velho hábito, torce os pequenos casulos e deixa cair na palma da mão esquerda um punhado de sementes. Separa as mais secas das tenras, úmidas e bem vermelhas, e usa estas últimas. Esmaga-as com a outra mão, até esquentar, e com dois dedos ativa o centro da testa de cada um dos presentes. Há uma força que apenas se entrevê, e um significado que apenas se imagina.

Uru'ku, em tupi-guarani, significa vermelho, e essa é a cor deste Caboclo altivo, Caboclo de Xangô. Não costuma demorar-se em explicações, este amigo, mas está atento aos sinais do que deve fazer e raramente hesita ou suspende um passo iniciado. Com ele, a cada dia, aprende-se algo a mais sobre a própria e verdadeira estatura, o que nos diminui e o que nos faz crescer. Paciente no meio da mata, parece esperar há décadas. Não sorri nem entristece, o seu olhar sereno não se altera, nem no perto, nem no longe. O urucum, sempre a seu lado, confere a força e também o poder de limpeza, de aquecimento e de queima abrupta e ardente. 

Vermelho é a cor do dia de ontem, dia do Divino, dia de festa nas terras açorianas dos meus avós e da minha mãe. Fartura e fraternidade nas mesas postas ao longo das ruas, cada Império coroado, todas as barrigas saciadas. Uma das coisas que mais aquece a minha alma umbandista é poder viver quem fui e quem sou num mesmo tempo, sem precisar deixar pedaços meus para trás. O fogo de Xangô brilha nas fogueiras dos meus avós que jamais ouviram esse seu nome e, quando o acendo, como ontem cedo antes que o Sol do dia de Pentecostes nascesse, saúdo todos os dons que Deus faz brilhar na Terra, em cada um de nós, em cada criatura, cada canto, cada planta, cada forma de vida.

Há gestos dos Guias Espirituais que foram feitos para reverberar ao longo de anos. Eu demoro-me em muitos deles, e me surpreendo, ano a ano, com a forma multifacetada com que permitem que olhemos para o mundo e para nós mesmos. Não sei se ando devagar nessas observações, se me demoro tempo demais, se me perco entre tantas coisas. Talvez pudesse tudo ser mais rápido. Mas Vó Chica, que é quem me coloca o urucum diante dos olhos para que o escreva, balança a cabeça achando graça. Ela já me disse, e eu já entendi, mas esqueço: o Divino, esse Ser de Elevado Espírito que desce em nossa direção, dá-nos uma certeza: a de que existem dons que não pertencem ao mundo terreno, mas ao mundo espiritual. Dons do Espírito que nos auxiliam, nessa caminhada aqui na Terra, a não termos a pretensão de que tudo podemos, somos e fazemos - basicamente porque (assim entendo eu) não conseguimos ter completa percepção do que seja de fato a nossa essência. Teríamos menos liberdade para ir e vir, errar e acertar, se assim fosse.

Por isso, ao nascer deste lado, esquecemos o lado de lá. E às vezes, quando em terra, o Caboclo Pena Vermelha tinge-nos o centro da testa de vermelho, esse vermelho do urucum que na árvore diante da janela, num determinado horário do outono, brilha como se tivesse brilho dentro. O brilho é esse mesmo da foto ali acima - não tem retoque nem filtro, é desse jeito mesmo que se mostra, por pequenos minutos a cada dia - um milagre que custo a acreditar, a cada dia que vejo.

Urucum é uma erva de limpeza e regeneração. Não é apenas Xangô que a impregna: Oxumaré e Egunitá também, seus mil frutos em cada casulo, sua cor vermelho fogo. Não deve ser coincidência que logo hoje, dia 24 de maio, seja dia de Santa Sara Kali, que vem a ser a forma sincretizada de Egunitá, Orixá de Umbanda, que é fogo também - fogo abrasador que arde, faz tremer, sacode, purifica. Como em tudo, é preciso haver fundamento, para que existam bases sobre as quais possamos avançar em segurança. Nos banhos, é bom saber o que invocamos em nosso benefício ou benefício de outros. Urucum, além de fazer arder e sacudir, também fortalece, endurece e mantém, e aqui vemos Xangô assomar por trás da matéria vegetal. E ainda liga, dissolve e derrete, sob o olhar e cuidados de Oxumaré. As ervas são um mundo sem fim de aprendizado e possibilidades. Nelas, o Divino torna-se cor, cheiro, umidade, secura, calor, frio, e se abrirmos bem os olhos da alma, veremos mais do que as aparências nos mostram, e nem sempre enganam.



19/01/2021

Divino amargo

 


    Vó Chica combina com o silêncio da mata nas manhãs de chuva. A meio da alvorada, aponta-me as hastes da carqueja por trás das árvores. Vê como crescem como fatias de luz por entre os troncos, diz-me ao ouvido. Vó Chica gosta de carqueja, e estas terras também. Como se houvesse se levantado um véu, vejo-as brilhar por todo lado. Amarga, a carqueja, só se em excesso, e, mesmo quando amarga, é preciso bebê-la. O fígado agradece, o intestino e os rins também. A carqueja dissolve o que de mais profundo se agarra à nossa alma: o medo.

    Sigo Vó Chica até o lugar onde quer sua pequena casa. Posso andar de olhos fechados, de tão devagar que avança. Não sei se olha tudo para que nada se perca, ou se anda devagar para que eu não corra e veja o que na velocidade não poderia (não costumo) perceber. Como aquele pé de guiné, que sobrevive a duras penas, ainda à espera de lhe ser permitido o costume da sombra. Ou ali ao lado, quase imperceptível, a alfazema fazendo milagre, rodeada de coquinhos pelos quatro lados. Fico contente de sentar-me aqui, perto da sua futura casa. Vó Chica ganhou mais do que um banquinho - assim posso sentar-me em um e com os olhos fechados chamar essa amiga querida de tantos e tantos anos, e ela quem sabe, se eu tiver sorte e motivos, se sentar também.

    Vó Chica tem o cheiro e o gesto daqueles que dissolvem, transmutam e reestruturam o que precisa ser transformado. Está de um lado e do outro da vida, encantada guardiã das passagens, e por isso nos leva de um lado para o outro, e desse outro para mais um. Ensina, acalma, compreende, protege e sorri, sempre doce, mas também, nestes últimos dias, urgente, incisiva e prática.

    "Filha, o tempo já está correndo, você percebe? Se ainda não foi, é preciso aprender a soltar tudo, aprender a encontrar a força da vida em qualquer pedaço de chão, em qualquer lugar de coração, em qualquer forma, espaço, tempo. Se há perdão a pedir, é preciso ser pedido agora, se há agradecimento a fazer, é preciso que seja feito agora, neste instante. E não é na sua cabeça, filha - é usando o sopro divino que nasce na palavra pronunciada, que chega até o ouvido do outro e de lá é carregada até o coração. Não há outro caminho, não se engane. Não diminua, filha, o que tem tamanho. Aceite o que é, e ande, em passos retos evitando as curvas e os rodeios. Não perca tempo, e ajude a quem puder a que também não o perca". Vó Chica quer muito ser escutada, estes últimos tempos.    

    A carqueja em minhas mãos já nasce retorcida, abrindo-se em dimensões de busca de luz, barbatanas nadando no ar líquido. Pouco se importa de não ser folha, nem flor, nem caule, nem nada. Busca imperiosa a força da luz solar, alarga-se no espaço, sobe através dos troncos, entrelaça-se entre eles, diferente de suas irmãs que nascem nos pastos e à beira dos caminhos. Estas hastes, que Vó Chica coloca em minhas mãos, e semeia nos alegres jardins de flores, precisa de esforço.

    Oxóssi, Iansã e Ogum irradiam com suas forças a carqueja, e com ela as nossas forças vitais, dissolvendo o desgaste psíquico. Aprendo isso nos livros, enquanto sinto Vó Chica me estimulando a curiosidade, folheando através do meus dedos, guiando meu tato, meus olhos, meu amor pelas coisas. Nos confins de tudo, quando me sento perdida à mesa que me traz respostas, Vó Chica está diante de mim. Lê meus pensamentos, sabe meus desejos, conduz-me pelos férteis campos da nossa relação, com uma rapidez inusitada que contrasta com o peso da maioria dos seus passos. Bom humor e alegria - estímulos que a carqueja inspira dentro de nós, com as suas flores de outono, o seu amargor de acordo com a vida. Acorda, parece dizer, e vai viver - essa vida não programada, não desejada, não colorida pelas cores que imaginaste, mas ainda assim a vida, e vida será enquanto for preciso.

    Tomo um banho de carqueja (preciso experimentar sua força), e porque não quero sucumbir a medo algum, misturo fedegoso e folhas de laranjeira, faço gargarejos e bebo o chá. Limpa a garganta e acomoda os sentimentos num lugar correto e renovado. Vó Chica desaparece por entre as volutas de vapor. Como que a desejar-me boa noite - "dorme bem e acorda com os olhos limpos e a alma corajosa".

11/09/2020

As coisas morredouras

Vó Chica pede-me silêncio ao chegar. Leva-me pela mão ao seu próprio silêncio, enquanto segue o caminho. Um bálsamo.

Há muitas energias ao redor neste momento, penso em voz baixa, nem todas compatíveis umas com as outras. Discriminar, e perceber o que são umas e o que são outras, e quais convêm a cada um, parece-me nunca ter sido tão importante. Vó Chica olha-me com os olhos apertados, querendo perceber se falo sério ou se brinco. Digo-lhe que é sério. E ela desfaz-se em risos. 

"Mas quando é que, filha, quando é que uma coisa dessas não foi importante? Quando foi que resistir aos acontecimentos e aceitar tudo aquilo que se mostra já não foi um portal que aumentasse a visão vossa?

Lembra, filha, que tudo o que se tem é esta vida, este dia, esta hora, este tempinho aqui mesmo que eu estou aqui e você também. E mesmo neste minuto agora tudo é novidade e permanência. E da mesma forma há dois lados em tudo: no corpo, na moeda, na noite, no dia. Quando está escuro você sabe que não está claro, e quando está claro você sabe que não está escuro. E você precisa saber escolher. É só assim a vida, não é?"

Rio, e agora é ela quem me olha séria. Espreme delicada uma folha de bálsamo entre seus dedos, e eu me concentro, para tentar entender o que as suas palavras simples querem me ensinar. "É preciso, filha", continua ela, "que você entenda que quando o rio é descido você não está subindo, e que se quiser subir vai precisar virar a direção. De outra forma, em vez de chegar à nascente, você vai é alcançar a foz. É da decisão interna de cada um, o rio que vai percorrer. E é dessa decisão que vai nascer a paisagem e o ensinamento que está à espera.

E tem mais uma coisa, filha. Não se perca no lamento do perdido, porque lamuriar o passado só cria confusão em seu pensamento, ele não vai mais saber o que é de ontem e o que é de hoje. E você é hoje, filha, você não é ontem. É isso que tem de discriminar. Depois da confusão, logo chegam a tristeza, o desânimo e a depressão, que é como vocês chamam a tudo isso junto. Tudo companhia da confusão do pensamento, que é quem semeia a escuridão, nascida da esperança e da compaixão quando são cegas. Só lamenta o passado e o mal feito quem se arrepende; e quem lamenta a falta que lhe faz o bem feito e tem saudade é porque não consegue se desinteressar por aquilo que fez.

E filha, tem mais uma coisa. Não é pra se dar tanta importância a si mesmo. Se você não fez, foi porque não pôde, porque foi incapaz, talvez fraca, talvez teimosa, talvez incompetente mesmo. Mas veja como o dia de hoje já está grávido de amanhã, veja como já tem as águas prontas pra despejar o novo dia nas mãos de quem faz nascer. O que você vai fazer, filha? Correr atrás das águas que já estão debaixo das pedras ou correr pra colher essas que estão prestes quase quase a escorrer?

Eu vou voltar, filha, uma e outra vez pra dizer a mesma coisa para vocês todos. De uma vez é de um jeito, de outra é de outra maneira, para que os ouvidos de vocês escutem e contem pro resto do ser de vocês. Veja você a importância que tem seu ouvido, que é o que faz tudo isso que eu digo caminhar para dentro do seu coração. Se você não escutar, não vai ouvir, e se não ouvir, não vai escutar. Porque é de dois movimentos que o entendimento do ouvido se faz, entende? Por isso que é difícil entender de primeira. E é melhor fechar os olhos, mesmo que dificulte a sua escritura, filha, porque com os olhos fechados você pode abrir melhor os olhos dos ouvidos, que são os que vão lhe mostrar os universos escondidos para dentro das estrelas."

Eu sorrio, pensando nas vezes sem conta que ela me pediu, nesses últimos tempos, para olhar as estrelas, assim que anoitece, antes de amanhecer, a meio da noite. Como se me ouvisse, logo me responde. "Você sabe porque falo pra você olhar as estrelas, filha? Para ver o tamanho do infinito e ter certeza que nunca, mas nunca mesmo, vai poder entender tudo isso, porque o que a filha tem de fazer, e todos os filhos têm de fazer igual, é perceber a sua desimportância, e esquecer-se de si mesmos, e entregar as suas almas para seu próprio espírito, que é uma coisa sem nome e sem explicação que não se interessa por nada, porque é todas as coisas ao mesmo tempo.

E assim é preciso que se respeitem os ciclos. Que se deitem e durmam para morrer um pouco todo dia e saber aos poucos o que é morrer quando for a hora. Igual o dia, igual a noite. Todos os universos estão escutando. Melhor parar de achar que as coisas estão nas mãos de vocês. Melhor que entreguem os frutos e o seu conduzir a quem guia e norteia os seus espíritos. O resto, filha, é coisa morredoura.

09/09/2020

Desinteresse


Quase sem pensar, ergo os olhos para ver a constelação de Escorpião. Vó Chica gosta quando olho o céu. Sei tão pouco, digo-lhe dentro de mim, e consigo aprender tão lentamente estas coisas das estrelas. Ela ri, e me aponta com seus olhos sempre úmidos a caneta e o papel. 

Demoro-me ainda, porque esse olhar cheio de água me intriga e me conforta. Por que tanta água, minha mãe?, pergunto-lhe. Ela ri-se, como sempre faz: “Preferias que tivesse olhos secos e duros, filha? Não precisa interessar pelas águas que limpam meus olhos, eu mesma prefiro assim, desse jeito, os olhos molhados para a terra do coração não secar também”.

Vó Chica tem nos falado do desinteresse. Pensamos que é bom o interesse pelas coisas, pelos outros, mas ela diz que não. Diz que o interesse é quem desenvolve em nós a posse, o ciúme, o desejo, a ânsia, a querência das coisas que não são precisas. Interesse é “estar entre”. Podemos nos sentir importantes, ou que estamos “fazendo a diferença”, quando nos interessamos por alguma coisa ou por alguém, mas não estamos em nós, “estamos entre”. Já quando nos movemos nas trilhas da ação desinteressada, aprendemos as lições da neutralidade, da imparcialidade e do afeto genuíno, que deixa cada coisa e cada pessoa ser aquilo que deve, quando deve, como deve.

Desinteresse, na voz de Vó Chica, é trilhar o nosso caminho fazendo aquilo que podemos fazer, sendo úteis, que é a bênção maior que podemos ter, abertos a qualquer tarefa.

Eu sei porque Vó Chica quer que olhe o céu. Porque os tempos de Urano estão sendo chegados, como ela diz, e nesses tempos o futuro, a coletividade, o conhecimento intuitivo, a sensação de pertencimento à Humanidade vão ser as mais preciosas qualidades.

E como esse é um tempo acelerado, Vó Chica pede calma e tranquilidade. Pede que estejamos atentos aos nossos movimentos, e que não nos angustiemos nem nos deixemos levar de imediato e sem controle por nada que possa nos suceder. Pede que estejamos conscientes de com quem dividimos o espaço que ocupamos. Que nos coliguemos com a Natureza à nossa volta, a reconheçamos e nos tornemos seus observadores. Não são necessárias técnicas ou teorias. Para a ligação que devemos cultivar não há regras nem caminhos prontos. É a ligação que nos ensinará e para ela precisamos apenas silenciar a nós mesmos e entrar em contato. Ouvir o vento, os pássaros, os barulhos das folhas e dos galhos; observarmos uma árvore, uma flor, um pequeno inseto. Um cão. Um gato. Um pássaro no afã de seu ninho. Perceber e deixar ir, sem cultivar interesse.

Vó Chica pede que desenvolvamos por tudo amor sem julgamento, sem dedução, sem a lógica do nosso pensamento usual. Não importa, ao Sol, o que pensemos dele, mas sim como nos comunicamos com ele, que luz ele desperta em nós. Não importa o que possamos dizer - diminuiríamos aquilo que recebemos, e que não cabe em nossas palavras. Até se perde. Transmutemos o que recebemos e ofereçamos onde quer que estejamos.

Vó Chica pede que nos nutramos de silêncio para podermos escutar melhor. Que controlemos a palavra, que não a desperdicemos e tenhamos cuidado com o que colocamos dentro do ouvido do outro. Ouvidos são seres desprotegidos, não têm portas que se fechem nem pálpebras que os cubram.

Vó Chica pede que cessemos as discussões conosco mesmos, e que cultivemos o silêncio interno. Será mais fácil diminuirmos o que dizemos ao outro, e assim não contribuiremos para a sua angústia e a sua ansiedade. Na maior parte das vezes, diz baixinho Vó Chica antes de se ir embora, o que cada um quer é escutar a própria voz, e ter certeza de que existe algo que possa dizer. Não é necessário. Não importa o que você já viveu, as experiências que teve – a sua valia é terem se transformado em aprendizado. A própria experiência, de um tempo gasto e passado, não serve aos desafios do outro neste tempo presente. O silêncio é a melhor oferta. Em silêncio expandimos o nosso interior e ouvimos melhor o  nosso guia interno. As vozes dentro de nós nos distraem de nós mesmos.

Vó Chica fecha os seus e os meus olhos e me converte em sono. Quando os abro, ela já se foi, e todas as velas se apagaram. Ainda assim, está claro.


25/03/2020

Quaresmeiras em flor


Vó Chica espreita por entre as árvores da mata. É um pequeno golpe de luz aqui, uma brisa repentina acolá. Brilham-lhe os olhos miúdos, e eu já sei que preciso fechar os meus para poder vê-la e ouvi-la na sua voz inconfundível. Começo a ficar dormente, quase como se com sono. Deixo-me embalar por esse verde fresco que traz à sua frente. O mesmo sorriso, as mesmas mãos gretadas macerando um galho pequeno de alfazema. Senta-se ao meu lado – eu no meu banquinho baixo, ela no tronco largo esverdeado de musgo.

“Filha, o mundo pára para que vocês possam ouvir. Para que possam decidir qual o reino onde querem entrar. Para poderem silenciar e escutar o outro lado, que equivale a dizer a própria alma.

Não vos desperdiceis em pequenas coisas que não têm qualquer sentido.

Observa a pequena formiga que se prepara e trabalha hoje, com interesse nenhum pelo dia de amanhã. Quando digo observa, quero dizer olha com atenção, com os olhos, e não com a imaginação. Usa para isso o tempo que tens à disposição.

Assim como a pequena quaresmeira em flor na porta do terreiro: vê como brilha sob o céu azul cor de manto. Como ela, todas as outras. Onde estiveres, eleva teus olhos ao céu. Se precisas de algo que permaneça no mesmo lugar, para dar-te ânimo, para dar-te confiança, detém-te nele, de dia e de noite.”

E Vó Chica faz um longo silêncio, quase uma eternidade onde durmo um sono profundo deitada numa esteira, debaixo desse céu que ela contempla.

“Acorda, filha, que estamos na Quaresma. A cada dia, a escolha. É preciso dizer a nós mesmos que é preciso parar, parar de querer o que não é preciso.

Usa o tempo, filha, porque não há, como nunca houve, nenhum a perder. A única diferença entre ontem e hoje é que agora vês o que não vias antes, e agora sabes o que não sabias anteriormente. Em algum momento, o tempo de refletir terá acabado e a tua colheita dependerá da tua semeadura.

Esquece o que plantaste ontem. Essa safra já terminou, pertence ao passado. Semear é todo dia, e a colheita é quando se está maduro. Não apresses as plantas que semeias na tua alma, nem no mundo. Deixa que cada uma cresça conforme o adubo que for recebendo. Ocupa-te, tanto melhor, de adubar as plantas que tens em teu quintal.

E não penses, filha, que a semeadura foi bem feita. Não serás tu a ter os meios de saber a medida correta da semeadura – não é quanto mais, melhor; nem quanto melhor, melhor. É a medida exata, correta, nem a mais nem a menos. Ambos os extremos farão mal a todos, e só Deus poderá dizer-te com certeza, quando o encontrares.”

Vó Chica ri com gosto, imaginando meu encontro com Deus. Penso, já bem acordada, que prefiro que ela esteja ao meu lado como agora quando isso aconteça. E rio também. E ela olha-me com afeto, e sem pena.

“Volta os olhos para dentro, filha, e lida com as sombras que se formaram nas tuas paredes. Agora pode ser o último tempo, e ainda que não seja, não haverá outro igual.

Não desperdices. Não deixes para mais tarde, nem faças pela metade.

Serena teu coração, silencia o teu pensamento e vai passo a passo, degrau a degrau, em silêncio e escutando o que o mundo grita em silêncio.”

E é em silêncio que, assim como chega, se vai. Como golpe de luz, como brisa repentina. Deixa o gosto do destino dentro das minhas narinas e meus dedos cheios de palavras brotadas.






16/09/2019

Comunidade-terreiro

Vó Chica tem formas muito suas de indicar caminhos. Não é bem paciência com os outros, mas antes um respeito imenso pela forma como cada um escolhe viver a própria vida. Isto é: bem antes de pensar em ser paciente, a impressão é de que observa e busca o momento e lugar exatos em que existem olhos e ouvidos abertos.

Viver em comunidade-terreiro demanda esses olhos e ouvidos abertos. Nesse grupo de pessoas que se reúne numa busca espiritual comum, há um lugar a alcançar que não é individual, e nem coletivo. É um lugar onde a harmonia e o fluxo da vida se manifesta pelo encontro de todos com um todo indefinível. Esse todo pode ser indefinível, mas se materializa em ritos, ritmos, preceitos, ordenações. O ritmo ordena a nossa forma no espaço e no tempo, e os preceitos, como bem diz Rudolf Steiner, nos dão as forças necessárias para permanecermos vigilantes. Estar vigilante é estar atento, antes a nós próprios que aos outros. É vigiarmos nossos pensamentos e nossos sentimentos exteriorizados, as emoções. É vigiarmos as nossas palavras, e logo depois nossas ações. É permearmos de consciência cada um pedacinho de nós, sem que com isso precisemos gastar tempo e esforço, porque a disciplina do ritmo abre portões gigantes para que um fluxo se instale. Sem a disposição para aqueles olhos e ouvidos abertos, nem valerá muito a pena pertencer a uma comunidade-terreiro, porque o esforço parecerá excessivo e o fardo pesado demais a carregar.

Vó Chica ri-se quando digo do quanto é importante lembrarmos que vivemos todos sobre o mesmo chão, o mesmo planeta. Diz-me assim: "Filha, é claro que é importante. Mas mais ainda é vocês se lembrarem que aqui é lugar de passagem, e que outros depois virão, e também para eles será uma passagem. Não se esqueçam de que estão aqui, mas não são daqui. O que ficará não se chamará mais "meu corpo", e será casca, casca verdadeira. O ser que pulsa, e que é eterno e impermanente ao mesmo tempo, estará solto, e logo quem sabe se em outro chão. Este chão, como qualquer outro que seja passagem, pode tornar-se prisão ou campo fértil. É preciso conseguir separar, no pensamento, umas coisas das outras, e saber, sem conseguir explicar como, por onde andar e como, a que dar a valor e quando, o que fazer sem que ninguém lhe diga nada. Sem essa disposição, será difícil perceber por onde caminhar.

Viver em comunidade-terreiro significa perceber a flor seca e dar-lhe água, a poeira ao canto e buscar a vassoura, o vaso quebrado e cuidar de que haja outro. Sem que sejam precisas palavras nem ordens. Numa comunidade-terreiro, caminha-se para outros lugares. Busca-se a ordem precisa e a limpeza exata. Não por elas, mas pela necessidade de beleza e ritmo que a própria vida ao mesmo tempo oferece e pede. Numa comunidade-terreiro vive-se a possibilidade de olhar para si mesmo de forma diferente, experimentar formas distintas de lidar com o outro e com a tarefa da vida. Numa comunidade-terreiro, não se está apenas por si, mas pelo outro que acorre em aflição e angústia. Junto aos que nos guiam e a nós se oferecem em trabalho de puro coração, podemos esquecer-nos de nossos pequenos corações e ingressar nesse coração maior que é o coração de Deus.

Numa comunidade-terreiro, existe o silêncio. Assim como a gargalhada e a piada alegre, o momento solene e as lágrimas nos olhos. Mas o silêncio interno, esse que permite que ouçamos "o ressoar das planícies no vazio", como diz Sophia de Mello Breyner Andresen, ou "a consciência atenta que dos confins do universo me decifra e fita", esse silêncio não tem palavras que o descrevam, e vive pleno em cada oração, em cada canto, em cada sintonia de aproximação aos mundos espirituais. Com esse silêncio, vive dentro de nós a entrega, e a possibilidade de deitar-se ao comprido diante de Deus e dizer-lhe aqui estou, toma-me em tuas mãos e ajuda-me a ser uma pessoa melhor.

Vó Chica mergulha em água salgada os potes de louça que cada um preparou, em um desses vários ritos que servem para nos estabelecermos melhor em nosso caminho de autodesenvolvimento. Pede, logo a seguir, que cada um retire o seu, e com esse gesto entrega a cada um de seus filhos e filhas um instrumento para concretizar sua união com o mundo espiritual. Como ela mesma disse, não é Deus ou seus Orixás que precisam da louça, mas nós. E também a intenção precisa ser nossa. Nessas horas, ressoa um infinito amor dentro do meu peito, e os véus se descerram e há uma trilha extensa entre nós e esse lugar do cosmos a que damos o nome de Oxalá, e que responde por todos os caminhos da Fé. 
- Quando ela faltar, diz Vó Chica antes de partir, - essa confiança que tudo contém, entrem no silêncio do coração de Oxalá, o silêncio que vive dentro do pote de louça, vossas intenções guardadas na mais pura intenção do coração.

13/03/2019

Quaresma e Umbanda

A noite no terreiro, quando a cidade dorme e silencia, é permeada pelas velas acesas no congá. Como presenças divinas que são, lembretes tremeluzentes da luz que existe dentro de nós, transmitem a calma e a paz necessária à reflexão profunda. Muletas?, questionam alguns. Vó Chica diz que não: velas são intenções firmadas, tornadas visíveis nesse mundo de matéria em que vivemos, iluminações de nós mesmos fora de nós. Por que negar sermos o que somos?

Neste tempo de Quaresma, o recolhimento do congá parece assumir outro aspecto. Vó Chica sorri quando penso essas coisas: ela sabe da minha formação católica, e não se incomoda nem um pouco com a maneira como transpira em mim o ser do espírito, livre de nomes que eu dê. E diz mais uma vez: para que negar ser o que se é? São Francisco, a seu lado, aspira o primeiro ar da manhã, e de repente os passarinhos cantam lá fora e me acordam de vez. Dia e noite, noite e dia, o mundo avança.

A Quaresma, sai ano entra ano, é questão que divide/incomoda/inquieta a religião umbandista: devem celebrar-se (ou não) os ritos cristãos dentro da Umbanda? Há templos que não atendem durante esse período, linhas de trabalho a quem algumas casas não abrem as portas de atuação, criam-se penitências de vários tipos - como religião congregadora, é natural que a diversidade impere, e assim como há casas que celebram a quaresma de forma bastante católica, também as há que se distanciam das práticas de outras religiões. Com o passar do tempo, essa flor que o Caboclo das Sete Encruzilhadas fez brotar na mesa farta e ampla das religiões do mundo, vai criando espaços próprios, livres e abertos à profissão da fé de cada um. É bom que estejamos atentos à nossa vontade de cartilhas e manuais, que nos apontam caminhos mas que correm o risco de nos aprisionar dentro deles e não conseguirmos mais ver a realidade. O cultivo da consciência, amparado pelo estudo e pelo conhecimento, é quem realmente nos liberta.

A Quaresma vive no ano litúrgico cristão como um tempo de busca da reconexão com o Cristo, de forma mais intensa do que durante o resto do ano, preparando a vivência pascal, da ressurreição e da materialização do Cristo Cósmico como regente da Humanidade. Esse tempo é celebrado em todo o planeta, porque é a todo o planeta que a essência divina do Cristo se liga, ainda que varie de nome.

Dentro dos preceitos católicos vivem várias práticas, mais ou menos antigas, que visam esse reconectar-se; a vivência das cinzas, por exemplo, como purificação, como percepção da transitoriedade, como aceitação da nossa condição humana terrena e finita. As cinzas relembram-nos que somos pó e ao pó voltaremos, e nos convidam a perceber se o que fazemos, pensamos, dizemos e sentimos entre um pó e outro vale a pena e nos aproxima ou não de quem somos em essência.

Há várias maneiras de fazer esse movimento, e a liturgia umbandista, que depende e varia de casa para casa, vale-se de muitas coisas. Seja neste tempo ou em outro, é preciso escolher momentos de recolhimento, de "olhar para dentro" para conferir o caminho trilhado. Por um lado, recolocar  no lugar correto o que tiver se desviado. Por outro, organizar as necessárias correções de rota, à luz dos aprendizados do tempo. A Quaresma presta-se a esse movimento.

Na sua pessoal preparação para a Páscoa, Jesus retirou-se durante quarenta dias para o deserto, sendo tentado diversas vezes por espíritos que se empenhavam em levá-lo para outro destino que não o seu. Podemos imaginá-lo olhando o seu destino, com a coragem que demanda, colocando as coisas em seu devido lugar, dentro e fora dele. As tentações fortalecem-no, como podem fortalecer-nos as nossas, se tivermos coragem suficiente para percebê-las como tais e fazer-lhes frente. Redobrar a vigilância? Fazer penitência? Individualmente, como cada um quiser. Do ponto de vista de uma comunidade de Umbanda, o que se redobra é a necessidade de acolher e ser acolhido, de escutar e ser escutado, de amparar e ser amparado. É nesse lugar, do Amor e do Afeto, que se firma e funda a fé, e é a ele que retornamos, em profunda reverência, gratidão e busca do exercício pessoal necessário. Por isso, hoje, em muitos terreiros,os trabalhos são mantidos, porque talvez seja este um momento de maior necessidade, e por isso mesmo demande mais ação, mais abertura de coração, mais mãos estendidas. Cuidados? Sim, com certeza - com o próprio pensamento, as próprias ações, com as vibrações com as quais nos permeamos, as companhias que escolhemos, as distrações que aceitamos, os caminhos que escolhemos para o nosso dia. Vó Chica, que definitivamente não se prende aos nomes que damos às coisas espirituais, me assegura que estes quarenta dias são um bom período para nos olharmos mais a fundo, mais no cerne, percebendo-nos como seres espirituais sujeitos à temporalidade do corpo físico, necessitados de um campo de disciplina que nos ajude a não perder tempo. Só isso já nos fortalece no cultivo da humildade. da aceitação e da entrega.

Imagem: https://steemit.com/life/@blessme/helping-hand

11/03/2019

O ronco e o raio


Vó Chica, quando olha para dentro dos olhos das pessoas, vê coisas que os nossos olhos comuns não veem. Às vezes, até, mudam a forma externa para que se pareça mais o que se vê com o que se é de verdade, sobretudo quando tentamos a todo custo esconder aquilo e quem somos. Outro dia, a conversa dela dizia mais ou menos assim.


"Filha, você precisa prestar mais atenção nas coisas à sua volta, e olhar para elas da maneira correta. Senão, você acaba não vendo nada por querer ver tudo de uma vez só. É sempre um passo de cada vez - um, e depois o outro. Não ajuda nada andar a dar pulos com os dois pés ao mesmo tempo. É como um rio, que começa é riozinho, e depois é que vai engrossando, engrossando, até chegar ao fim. E no meio desse tempo, o que é que ele faz? Ele corre, ele se deita sossegado parecendo que nem se mexe, ele salta por cima das rochas de nosso pai amado Xangô, ele lambe as beiradas das matas, vai se espreguiçar nas areias das curvas longas que faz, quando já cansou de ser rio e quer ser mar.

Pois então, olhar as coisas tal qual elas são. Igual esse céu aqui por cima de nós (e Vó Chica põe a sua mão calejada de anteparo nos olhos, e eu estranho, porque é de noite, estamos debaixo de teto, mas Chica vê tudo e longe, e eu vejo junto com ela esse telhado que e repente se transformou em amplidão de sidério). Esse céu, olha lá, filha. Tem vez que ronca e vez que relampeia, não é? E você escuta o que, filha? O ronco ou o raio? Se for querer escutar o raio e ver o ronco, não vai conseguir saber de coisa nenhuma.

Para cada coisa da vida é preciso o sentido correto. Se é de ver, é com os olhos. Se é de escutar, é com os ouvidos. E tá um mais certo do que o outro? É claro que não! Cada coisa se percebe com aquilo com que pode ser percebida. E a vida fica mais fácil quando a gente se humilda assim e se curva diante de Nosso Senhor Pai Oxalá, e pede a bênção e a inspiração pra fazer as coisas do jeito que ele mesminho pensou, antes de nós estarmos aqui. Se fez o raio pra ver, pra que é que nós vamos querer escutar? E pois ainda tem pessoa que quer ver, e se tumultua tudo, e à família também, porque quer que as coisas sejam do seu jeito, e não do jeito que são.

E eu falei em humildade, filha, porque não tem coisa melhor. Quem cultiva a humildade, colhe paciência e aceitação. E quem tem paciência e aceita as coisas sabe muito bem quando que é dia de gritar e quando que é dia de calar, e não fica gastando a vida à toa batendo cabeça nas portas que só vão abrir é mais de tarde, quando o sol se põe e a vigilância do povo adormece. Aí sim, filha: aí é hora de agarrar a maçaneta da porta e abrir igual vendaval.

O que eu mais quero, filha, é que você fique bem perto das coisas divinas, porque foram elas que me ensinaram a ser quem eu sou, que é o que eu já era antes de vir pra esse mundo e sair dele. É tudo mais simples do que você às vezes pensa, e o mais é a espera, que pode ser dolorosa, se for combatida, mas pode ser descanso, se for acolhida dentro dos braços como se fosse um recém-nascido, igual esses que a gente colhe assim que escorrega da Mãe."

15/04/2017

Sábado de Aleluia

O sol já nasceu quando Vó Chica passeia pelo quintal. Ainda é cedo, mas ela veio à procura das conchas. Mesmo sendo sábado de Aleluia, ainda é tempo de Paixão, esse momento do ano que ela tanto aprecia, por ser solene, alegre e triste ao mesmo tempo. Por ser o tempo de pensar com o coração, pleno e entregue.

Pensei que Chica gostasse da noite, mas não. O que ela gosta é de luz verdadeira, como as luzes do fogo das velas. É por isso, explica, que ela pede que as apaguemos quando nos visita à noite. Para poder ver melhor às vezes é preciso apagar as luzes.

No fundo, penso enquanto vejo seu vulto atrás da moita de mirra, e já há algumas nuvens no céu azul, ela nunca está longe.

Chica desenha no ar, por cima das conchas, uma cruz. E outra. E outra. Três cruzes pairando acima das plantas do quintal. Sorri satisfeita, conversa com as conchas sob a sombra das cruzes, encarrega-as de alguma coisa que não alcanço compreender e vai-se.

Vó Chica tem falado das cruzes, nesta quaresma. Das nossas cruzes, cada qual com a sua. Adverte séria: engana-se quem presta demasiada atenção à sua e negligencia a do outro. Carrega-se a própria, sustenta-se a alheia. Nem uma substitui a outra, nem se deve pensar que, por cuidar das alheias, se resolvem as suas.

Obaluaiê, o orixá do trono da Evolução, da vida, da morte, veste-se de palha. Há quem diga que esconde chagas, há quem diga que esconda a sua beleza. Seja como for, não se mostra, não ostenta. A sua cruz é invisível, mas dobra-o quase até o chão.

Aproximo-me das conchas que Chica me ofereceu. Já rebrilham ao sol da primeira manhã. Parecem polvilhadas com espuma de mar. Estão todas com seu lado aberto virado para cima, como se tivessem combinado, com as mãos estendidas de Chica, ensinar-me a mesma coisa: a aceitação. Aceitar a cruz, o seu peso, a sua superfície áspera, o seu gosto amargo. As conchas abertas dizem-me dobra-te. Abre-te. Aceita-te. Permite-te ser pregada à tua cruz, para que nesse casamento de madeira e sangue possas entender com a tua carne o que a carne da tua cruz te conta e ensina.

Levo-as para dentro, e abro-as onde devem ficar. Já se misturaram todas, já se fecharam e abriram nesse transporte, mas será difícil apagar essa imagem de tantas aberturas claras, tanta entrega incondicional, tanto brilho na atitude simples de apenas estar e apenas ser nesse estar. A Paixão agora brilha em tudo, e a vida está pronta para o Domingo de Páscoa. Aleluia!

Foto: Mônica Stein