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11/03/2019

O ronco e o raio


Vó Chica, quando olha para dentro dos olhos das pessoas, vê coisas que os nossos olhos comuns não veem. Às vezes, até, mudam a forma externa para que se pareça mais o que se vê com o que se é de verdade, sobretudo quando tentamos a todo custo esconder aquilo e quem somos. Outro dia, a conversa dela dizia mais ou menos assim.


"Filha, você precisa prestar mais atenção nas coisas à sua volta, e olhar para elas da maneira correta. Senão, você acaba não vendo nada por querer ver tudo de uma vez só. É sempre um passo de cada vez - um, e depois o outro. Não ajuda nada andar a dar pulos com os dois pés ao mesmo tempo. É como um rio, que começa é riozinho, e depois é que vai engrossando, engrossando, até chegar ao fim. E no meio desse tempo, o que é que ele faz? Ele corre, ele se deita sossegado parecendo que nem se mexe, ele salta por cima das rochas de nosso pai amado Xangô, ele lambe as beiradas das matas, vai se espreguiçar nas areias das curvas longas que faz, quando já cansou de ser rio e quer ser mar.

Pois então, olhar as coisas tal qual elas são. Igual esse céu aqui por cima de nós (e Vó Chica põe a sua mão calejada de anteparo nos olhos, e eu estranho, porque é de noite, estamos debaixo de teto, mas Chica vê tudo e longe, e eu vejo junto com ela esse telhado que e repente se transformou em amplidão de sidério). Esse céu, olha lá, filha. Tem vez que ronca e vez que relampeia, não é? E você escuta o que, filha? O ronco ou o raio? Se for querer escutar o raio e ver o ronco, não vai conseguir saber de coisa nenhuma.

Para cada coisa da vida é preciso o sentido correto. Se é de ver, é com os olhos. Se é de escutar, é com os ouvidos. E tá um mais certo do que o outro? É claro que não! Cada coisa se percebe com aquilo com que pode ser percebida. E a vida fica mais fácil quando a gente se humilda assim e se curva diante de Nosso Senhor Pai Oxalá, e pede a bênção e a inspiração pra fazer as coisas do jeito que ele mesminho pensou, antes de nós estarmos aqui. Se fez o raio pra ver, pra que é que nós vamos querer escutar? E pois ainda tem pessoa que quer ver, e se tumultua tudo, e à família também, porque quer que as coisas sejam do seu jeito, e não do jeito que são.

E eu falei em humildade, filha, porque não tem coisa melhor. Quem cultiva a humildade, colhe paciência e aceitação. E quem tem paciência e aceita as coisas sabe muito bem quando que é dia de gritar e quando que é dia de calar, e não fica gastando a vida à toa batendo cabeça nas portas que só vão abrir é mais de tarde, quando o sol se põe e a vigilância do povo adormece. Aí sim, filha: aí é hora de agarrar a maçaneta da porta e abrir igual vendaval.

O que eu mais quero, filha, é que você fique bem perto das coisas divinas, porque foram elas que me ensinaram a ser quem eu sou, que é o que eu já era antes de vir pra esse mundo e sair dele. É tudo mais simples do que você às vezes pensa, e o mais é a espera, que pode ser dolorosa, se for combatida, mas pode ser descanso, se for acolhida dentro dos braços como se fosse um recém-nascido, igual esses que a gente colhe assim que escorrega da Mãe."

15/04/2017

Sábado de Aleluia

O sol já nasceu quando Vó Chica passeia pelo quintal. Ainda é cedo, mas ela veio à procura das conchas. Mesmo sendo sábado de Aleluia, ainda é tempo de Paixão, esse momento do ano que ela tanto aprecia, por ser solene, alegre e triste ao mesmo tempo. Por ser o tempo de pensar com o coração, pleno e entregue.

Pensei que Chica gostasse da noite, mas não. O que ela gosta é de luz verdadeira, como as luzes do fogo das velas. É por isso, explica, que ela pede que as apaguemos quando nos visita à noite. Para poder ver melhor às vezes é preciso apagar as luzes.

No fundo, penso enquanto vejo seu vulto atrás da moita de mirra, e já há algumas nuvens no céu azul, ela nunca está longe.

Chica desenha no ar, por cima das conchas, uma cruz. E outra. E outra. Três cruzes pairando acima das plantas do quintal. Sorri satisfeita, conversa com as conchas sob a sombra das cruzes, encarrega-as de alguma coisa que não alcanço compreender e vai-se.

Vó Chica tem falado das cruzes, nesta quaresma. Das nossas cruzes, cada qual com a sua. Adverte séria: engana-se quem presta demasiada atenção à sua e negligencia a do outro. Carrega-se a própria, sustenta-se a alheia. Nem uma substitui a outra, nem se deve pensar que, por cuidar das alheias, se resolvem as suas.

Obaluaiê, o orixá do trono da Evolução, da vida, da morte, veste-se de palha. Há quem diga que esconde chagas, há quem diga que esconda a sua beleza. Seja como for, não se mostra, não ostenta. A sua cruz é invisível, mas dobra-o quase até o chão.

Aproximo-me das conchas que Chica me ofereceu. Já rebrilham ao sol da primeira manhã. Parecem polvilhadas com espuma de mar. Estão todas com seu lado aberto virado para cima, como se tivessem combinado, com as mãos estendidas de Chica, ensinar-me a mesma coisa: a aceitação. Aceitar a cruz, o seu peso, a sua superfície áspera, o seu gosto amargo. As conchas abertas dizem-me dobra-te. Abre-te. Aceita-te. Permite-te ser pregada à tua cruz, para que nesse casamento de madeira e sangue possas entender com a tua carne o que a carne da tua cruz te conta e ensina.

Levo-as para dentro, e abro-as onde devem ficar. Já se misturaram todas, já se fecharam e abriram nesse transporte, mas será difícil apagar essa imagem de tantas aberturas claras, tanta entrega incondicional, tanto brilho na atitude simples de apenas estar e apenas ser nesse estar. A Paixão agora brilha em tudo, e a vida está pronta para o Domingo de Páscoa. Aleluia!

Foto: Mônica Stein