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01/04/2013

O sol, riqueza dos pobres

Diz-se isso, algures: que o sol é a riqueza dos pobres. Veio-me à lembrança porque dia desses me perguntaram de onde mesmo vinha a palavra quarar. Com ajuda de uns e outros, descobri que a palavra deriva do corar lusitano, absorvido e transmutado pelo tupi. Vale o mesmo que branquear, ao sol, a roupa branca necessitada de um tratamento extra. Ninguém mais faz isso: talvez os pobres, quando o sol lhes é a única riqueza.

E por que isso? Porque tenho uma amiga que me pergunta, aflita, o que fazer com um lençol sujo, encardido e manchado. Poderia parecer mais fácil comprar um novo. O que custaria? Vinte reais? Que seja: as soluções fáceis e rápidas contêm em si um perigo. Vamos assumindo-as como se fossem possíveis, e a vida vai se tornando, com a sutileza das coisas que parecem não ter importância, uma coisa descartável: manchou, troca; sujou, compra um novo. No momento sério, aquele que ao olhar para trás poderá revelar-se o limiar de um novo nós, pode ser que tendamos a fazer o mesmo. E de repente descobrimos que nos perdemos. Melhor quarar a alma ao sol, vez por outra.

Pergunto a minha amiga de que manchas quer ela se livrar. De tudo, responde evasiva. Não vou me meter na sua vida - melhor ajudá-la de forma pragmática, até porque gosto de encontrar soluções que nos livrem do supérfluo do supérfluo, especialmente em termos de limpeza. Descubro uma infinidade de dicas para quem quer voltar a ter um lençol branco como neve, sem esvaziar as prateleiras do supermercado. Como pode ser que sirva a outros (quem não tem um lençol pra lavar?!), segue abaixo o receituário completo. 

Lençóis brancos, e a sua irrecusável sensação de limpeza, estão perto do que as nossas almas respiram: sujam-se e limpam-se e sujam-se e limpam-se. Erram e acertam, e acertam e erram. Às vezes, precisam de ajuda, especialmente para o limpar-se e o acertar. Pequenas dicas de quem já tenha se sujado e errado por aí. O importante, creio, é não se render, imaginando que as manchas possam ser descartadas ou encaixotadas - como uma pele que trocássemos porque a nossa se enrugou antes da hora. Cedo ou tarde, elas voltam - melhor cuidar delas, e com o carinho que merecem por tudo o que nos fizeram e fazem crescer. À alma, ponho-a a quarar amanhã cedinho; quanto ao lençol, seguem-se outras possibilidades:

- deixá-lo de molho durante a noite com uma colher de sopa de amoníaco ou suco de limão;
- se muito, mas muito sujo mesmo, ferve-lo em balde de alumínio, com uma colher de sopa de terebentina. Amoníaco, na falta dela. Suco de limão, na falta de ambos;
- lençol amarelado, mais do que sujo? Lave-se com meia xícara de álcool;
- a mancha é de sangue? Esfregue-se com água oxigenada 10 volumes;
- uma tampa de anil líquido, 3 colheres de sopa de álcool, 1 colher de sopa de amoníaco e 1 colher de chá de bicarbonato parece bruxaria - mas é da branca. Deixa-se de molho por 4 horas e não se elimina da receita o bicarbonato, que é quem impede que o anil manche;
- mais uma: em água fervente, dissolvem-se 2 colheres de sopa de sabão em pó, 1 colher de sopa de aguarrás e 1 colher de sopa de amoníaco; acrescenta-se a mistela a um balde com água fria, onde a roupa ficará de molho por 4 horas;
- a inusitada: em balde grande, dissolvem-se duas colheres de sopa de sabão em pó; bate-se até formar espuma e então junta-se um saquinho de filó cheio de cascas de ovos esmagadas. Molho de uma hora;
- para deixar preparado e juntar à água da lavagem: 4 litros de água, 1/2 kg de sabão em pó, 1 kg de bórax ou ácido bórico (vende-se em farmácias e serve também pra fazer bombas caseiras também; pode ser que alguém ache estranho...). Aquece-se a água, dissolve-se o sabão em pó e depois o bórax. Não é preciso ferver. Deixa-se esfriar e guarda-se. Usa-se uma xícara bem cheia no tanque; 3/4 na máquina.
- e se você é daqueles que preferem ver, e só vendo pra crer:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ePaRlGPPKHA

Boa limpeza!


16/06/2010

Digressões à parte



Tenho um aluno (vários, até, mas é este um que me vem à mente agora) cujo pensamento é o que eu chamo de digressivo. Infelizmente tendo de preparar-se para exames que querem perceber até onde o pensamento lógico e encadeado vai, precisa de bastante paciência para fazer frente à tarefa. Mas, justamente por ser digressivo, avança sem dificuldades. Só leva mais tempo. E algumas coisas precisam e melhoram com o tempo – como alguns vinhos, por exemplo.

A digressão, bem diz a própria palavra, leva-nos a passeio. A dissertação demanda conhecimento de causa, provas cabais de que se entende, através de exemplos e de experiências. É coisa séria, enquanto que a digressão é um tanto à toa, como sorvete num dia de inverno, só porque deu vontade.

O pensamento digressivo, útil até dizer chega ao fazer literário, é um empecilho digno de zerar nota em qualquer vestibular que peça uma dissertação ao proponente a aluno universitário. A digressão acompanha muitas das melhores peças literárias que andam por aí há muitos séculos, enquanto que a coesão lógica solicita tudo ao raciocínio e muito pouco à arte. Ou produz jóias raras, como muitos sermões de Vieira, mestre em convencer pelo poder da lógica em perfeita cadeia. Mas isso é para criaturas iluminadas como o padre barroco, e não para os comuns dos mortais.

O que é uma pena, acho, rodeada que estou de seres que se nutririam mais das digressões da vida do que de seus encadeamentos racionais. Uns, porque impera-lhes a lógica, e poderiam divertir-se com as cores e os sons da arte que ainda não distinguiram em si, ainda não deu tempo, quase que acabaram de renascer para o encantamento da Palavra. Outros, porque o aperto do mundo lá adiante, o abismo embaixo dos pés que querem mas não conseguem atravessar a  voo, o desespero de ir e querer contra o ir e o não querer - poderia aliviar-se numa digressãozinha que tirasse o peso de cima dos ombros e o fizesse levitar como uma bolha de sabão.

Com o tempo, as laudas, as páginas, o recebimento por caracter-sem-contar-espaços-que-pena familiarizei-me com a escrita e hoje tanto enveredo pelos campos verdes da digressão quanto pelos céus luminosos da argumentação. Gosto e me divirto com ambos, é uma sorte que não seja sempre tudo a mesma coisa. Mas quando me imagino às portas do futuro de antes, e vejo passar diante de mim de novo todas as cores de todos os países e pessoas do mundo, não sinto nenhuma vontade de ouvir outra vez aqueles que me diziam que era preciso ser lógica, e precisa, e assertiva, e cheia de bom senso.

Haveria de preferir, como de fato preferi, enveredar por todas as figuras de linguagem, torná-las meus vícios, desentocá-las a todas das profundezas dos seus refúgios, encontrá-las no escoramento dos poetas que mais amo. Dissertações, naquele tempo, imagino que me colocassem frente a frente com o pouco que conseguia ver através do muro que me separava do que viria a ser, e o sentimento que tudo isso me trazia de frustração e profunda incompreensão.

Espero poder ajudar este meu aluno (e os demais, que se lhe colam na minha lembrança) a não se deixar invadir pela lógica mundana a ponto de perder a sua capacidade de digressão; ajudá-lo a alinhavar-se racional e sobriamente, conseguindo divertir-se com isso, e sabendo que tudo é sempre muito mais do que parece e nada pode ser jogado fora. Se com isso ele conseguir entrar na faculdade que tanto deseja e para a qual não mede esforços, terá sido um prazer e uma alegria somados.