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18/10/2015

Águas sagradas


Domingo, primeiro dia da semana, é boa oportunidade para banhos que abram caminhos. O que está estagnado, impedido, cerceado em seu andamento, beneficia-se de ervas que dissolvam impedimentos. Para abrir as portas desta semana com novos horários, logo lembrei de peregun.

A farmacologia medieval, e antes dela a antiga ciência herborista chinesa, já conheciam a família das dracenas. A mais renomada era a draacena draco, conhecida pelos chineses como xue jie. Nativa das Canárias, a resina da também chamada sanguis draconis (ou sangue-de-dragão) foi um importante produto de exportação do arquipélago de raiz africana e colonização espanhola. A forte oxidação da resina quando em contato com o oxigênio rendeu-lhe o nome avermelhado. Nos Açores é conhecida como Dragoeiro, e de lá nos vem a informação das suas propriedades também tintureiras. Tendo a achar que as ervas usadas em tinturaria têm uma forte presença naqueles momentos em que é preciso mudar a coloração e, por isso, considero-as importantes coadjuvantes nos processos de transformação interna.

Na farmacologia chinesa, o sanguis draconis é indicado como erva para revigorar o sangue e dissolver estases (ou seja, estagnação de líquidos vitais, como o sangue, ou a linfa); estanca sangramentos, se aplicada topicamente; e protege a superfície de úlceras, regenerando os tecidos. E, de uma forma ou de outra, a família das dracenas carrega em si essa capacidade primordial de dissolver lugares onde algo estagnou. A energia que contêm em seu interior abre, liberta e gera potência.

Há, entre nós, dezenas de dracenas - e todas elas parecem seres mitológicos, brotando com facilidade e crescendo com pujança. A que costumamos ter no jardim, ou mesmo dentro de casa, é a draacena fragrans (o nosso "pau d'água"), que nos chega diretamente da África. É uma das principais ervas rituais do candomblé e, entre as religiões ligadas aos Orixás africanos, é conhecida como peregun. Também na umbanda é uma das ervas sagradas, indicada para abrir caminhos - especialmente caminhos internos. 

Em iorubá, peregun junta as palavras -, que significa chamar, e egun, que significa espírito. É por isso uma erva fundamental na chamada dos espíritos à terra, assim como no desenvolvimento mediúnico dos filhos-de-santo. Em algumas regiões da África, como no distrito rural de Bushenyi, em Uganda, o peregun é usado para induzir o trabalho de parto, abrindo as portas para a chegada de um novo espírito à Terra. 

O orixá Ogum é o primeiro a permear o peregun com a sua energia de abertura de caminhos, de dissolução de impasses. É a ele que o peregun de folhas inteiramente verdes se consagra. A variedade verde-e-amarela impregna-se da irradiação de Iansã, que atua em tudo aquilo que está estagnado - varre com seu vento e modifica com a sua tempestade as situações e as pessoas imobilizadas, travadas no seu agir. Para os chineses, o sanguis draconis atua nos meridianos do coração e do fígado - o sangue, veículo da nossa individualidade, e o fígado, onde se reúnem e se processam (ou não) todos os nossos conteúdos emocionais.

E por isso penso que o domingo é um bom dia para um banho de peregun. Um banho preparado com a maceração de três ou cinco de suas grandes folhas, em água fria, mentalizando e invocando a irradiação do qualidade divina daquele que abre caminhos. A água logo se colore de verde forte, e o ar com o cheiro da mata, materializando a presença de Oxóssi e das suas bênçãos, agregando à dissolução de impasses a chama sagrada da criatividade e do conhecimento.

Os meus olhos perdem-se no verde aquático, e sei que os olhos de Vó Chica me acompanham, conduzindo os meus movimentos, o meu sentir e o meu pensar. Nela, recolho-me. Nela, aquieto-me. Nela, aprendo que só nesse recolhimento as ervas se abrem e se oferecem. Em silêncio e em oração internos. Não há melhor maneira de começar a semana.





Fontes:

http://www.cefimed.com.br/arquivos_formulas/pdf/formulas.pdf
https://ocandomble.wordpress.com/2015/05/29/peregun-a-folha-ancestral/
Imagens: 
Dracena Draco: divulgação
Dracena fragrans: Mário Franco