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04/09/2014

Celebrar

Começa a época do ano em que, aqui em casa, mais há aniversários. Momentos bons de festejar a passagem do tempo. Penso nas celebrações, na sua importância.

Não são apenas festas, veja bem. Gosto destas também, mas quando o impulso da celebração está presente, o resultado é outro. Não é apenas sair para dançar, ir ao cinema, passear nos bosques - todas essas atividades, por si sós, podem ser celebrações. Mas só quando se quer que assim seja, e se age nessa sintonia. É preciso preparar-se.

Celebrar significa honrar. Deriva de celeber, que é algo várias vezes repetido, e por isso notado e percebido, e por isso digno de honra. Celebrar opõe-se à indiferença que grassa pelo mundo. Significa separar um tanto de tempo para dedicar-se a algo ou a alguém que é notado e percebido. É preciso re-parar na pessoa, e perceber que lhe é necessário, para a sua existência plena, ser notada e percebida em todos os seus lugares. Celebrada, portanto. É preciso saber olhar, e é preciso desenvolver uma capacidade que nos vem sendo negada.

Dentre as muitas verdades ancoradas no continente africano, e que reconheço como formadoras do que sou, o impulso da celebração é básico. Para viver é preciso celebrar. Por isso todo casamento africano é uma grande celebração compartilhada, que invade a cidade com seus cantos pelas ruas. O nascimento de uma criança é uma celebração. A conquista de um novo emprego. Uma viagem que se vai fazer. Uma viagem que se fez. Um ano que se passa. Um ano que se passou. Não é que africanos gostem mais de festa do que nós. O ponto é que eles sabem da importância que tem o que acontece a cada um, e o quanto o que acontece a cada um acontece a todos. E por isso a celebração é o reconhecimento da sublime importância do coletivo na vida de cada indivíduo.

Nas nossas vidas ocidentais, tão ciosas dos seus espaços e amores próprios, fazemos questão de delimitar com muita acuidade os lugares nossos onde os outros não entram. E o problema é que esses lugares modificam-se por estarem vazios do olhar do outro. Tornam-se lugares perversos, morada da obsessão, do enevoamento, da estreiteza, do medo. "Em conversa de marido e mulher não se mete a colher" significa que aquela problemática, ali, daquele casal, não me diz respeito. Não há nada que me ligue a ela. E por isso ela cresce até implodir. E, na sua implosão, às vezes perde-se tudo.

Meu amigo Aléssio, que me frequenta diariamente de uma forma africana de viver, contou-me ontem do caso do rapaz assaltado que pulou do carro dos bandidos deixando com eles a namorada. Morreu, que Deus o tenha. E ficamos ambos nos perguntando o que teria acontecido à moça, e o que teria passado pela cabeça e pelo coração do rapaz ao deixá-la ali, vulnerável e frágil, no carro dos assaltantes. Sentimo-nos mobilizados porque isso nos disse respeito. De quantos carros cada um de nós pula, deixando à mercê das sombras aqueles que estavam conosco? O que fica de nós dentro do carro, e o que levamos com nosso pulo?

Eu, gosto da vida celebrada. Compartilhada. É-me muito difícil conviver com tudo o que não pode ser celebrado e cantado, tudo o que se esconde atrás dos medos, das inseguranças, das convenções engessadoras que nos empurram a abrir mão da liberdade do bem viver. De vivermos da maneira correta, de acordo com a nossa verdade interior. (A verdade é relativa, ouço você dizer. Quiroga fala disso em sua coluna de hoje. Leia aqui http://blogs.estadao.com.br/sincronia/adaptabilidade/) Como viver, sem compartilhar com quem está ao meu redor as minhas alegrias? As minhas tristezas? Os meus avanços? Os meus retrocessos? As descobertas que faço nos caminhos que trilho? Os sustos que encontro dentro das florestas que me habitam a alma? Como fazer com que isso seja a minha verdade sem que os olhos dos outros me devolvam a mim mesma?

Não. É preciso reinventar a vida.

É preciso reinventar o dia, a hora, o abraço. Transformar os aniversários em celebrações de quem avança no tempo, sabendo que, com ele, avançamos todos. Convidar o outro para que participe da nossa festa interna, e permitir que todos os outros entrem também. A felicidade, como o amor, não se esgota. Quanto mais se compartilha, mais cresce, e mais ganha sentido. Um sentido que nos transcende como indivíduos e que brilha nos olhos dos outros, unidos a nós pela atmosfera tão sutil da celebração.

Tenho tido a sorte, ou o merecimento, de compartilhar momentos inesquecíveis com um novo grupo humano que agora me habita. O merecimento de celebrar, junto a esses meus novos irmãos, o poder que tem tudo aquilo a que se dedica sentido, unidade, inteireza, confiança e entrega. Meu maior desejo é que, desta união que transcende o espaço físico, e se aloja em lugares tão acessivelmente longínquos, nasça um eu cada vez mais verdade, um eu que possa transportar e celebrar a vida, em todo lugar: com você que me lê, com você que me escuta, com você que faz a minha palavra tornar-se maior e mais verdadeira, porque deixa de ser minha, para ser nossa. Mais que o "meu", eu quero o "nosso", em cada gota de sangue. E quero o sangue correndo livre pelas veias da terra. De outra forma, o sentido é parco, a vontade é escassa e a vida é pela metade.

19/08/2014

Déjà vu

Aos meus amigos doadores de déjàs vus, com a licença de ficcionalizar tudo. Porque a vida quando se veste com as roupas da ficção dói menos.

Talvez, como tantas outras vezes, venhas a ter a impressão de já ter lido algo como isto que estou a ponto de escrever, e essa impressão virá (certamente) acompanhada daquele estranhamento que te faz afirmar que é algo já visto. Não é surpresa nem qualquer outro sentimento base que se abrirá em você, mas estranheza. Não é a familiaridade da situação que se apresenta, mas a estranheza. Dirás para ti mesmo: quem é que antes usou estas mesmas palavras para dizer estas coisas? E esse dizer-te isso a ti mesmo te causará (como sei que causa) uma impressão estranha de algo estar fora de lugar.

Mas, na verdade, não está.

São tantas as vezes que te ouço ter essas impressões, que decidi ir buscar-lhes motivos, e quem sabe diminuir-te a estranheza e a ansiedade que delas advêm. Espero que não morras pela ingestão do remédio. Já se sabe, e sobre isso conversávamos um destes dias, que talvez seja sobre os nossos defeitos, as nossas dobras e falhas, que se assenta como edifício essa construção que chamamos de "eu". Não é bom colocá-la à prova daquilo que pode ser fatal.

Fui, feitas estas considerações, à procura.

Preciso dizer-te, logo à saída, que é o teu lobo temporal a sede dessa sensação. Não sei em qual dos sentidos interpretarás essa "sede" - e peço-te que penses nos dois, porque é da sua combinação que falo. A falta que faz a água que se bebe e o saber-se o lugar dessa água lugar de importância. Há coisas e pessoas assim: sabemos a sede que sentimos delas, e sabemos que nelas está a sede de algo que nos pertence. Lê outra vez a frase anterior, porque talvez seja a mais importante de todas as que possa hoje escrever.


Há também os que dizem que um déjà vu pode anteceder uma crise epilética. Mas eu fecho os olhos para te invocar, e não: não há epilepsia no lado de dentro do teu olhar. O problema é outro.

Para tua e minha satisfação, 2/3 da população mundial têm déjàs vus: experiências que passam direto pela memória imediata (tão rápido que ela nem percebe) e se alojam nas memórias mais profundas. Por isso, quando dizes "tive um déjà vu", dizes que a tua memória imediata vê agora algo que não registrou e aquela outra memória segreda que sim, aqui estou eu a lembrar-me. É isto o que dizem os neurocientistas.

Mas... sabes?

Talvez os teus déjàs vus sejam na verdade resultado direto da tua desatenção. E nada mais. De prestares menos atenção da que poderias (não me atrevo ao "deverias") aos que passam ao teu lado. Aos que permanecem ao teu lado. Aos que guardam teus passos. Aos que te querem conhecer de dentro. Aos que se doam a ti. E neste doar-se te protegem. Pensam em ti a cada momento, porque são água de rio, e vão para o mar, são nuvens novas que vêm molhar essa terra fértil que és. Porém. Porém. Como prestas pouca atenção, essa água toda, rio, mar, chuva, venha ela deste lado do mundo, ou de quaisquer outros que vejamos além de nós - essa água toda esgota-se em si mesma, escorre sem sentido, perde-se por entre os teus dedos de areia que nada seguram.

E de repente, a meio do tempo, dizes que tens um déjà vu.

Mas como pode ver aquele que não olha? Não, meu amigo: não são déjàs vus o que tens - são provas do quanto não estás onde estás, não és o que dizes ser, não fazes o que desejas e deixas de olhar os presentes que atravessam o teu caminho. Não. O que tens é um déjà perdu.




02/09/2013

Indiferenças, irrelevâncias e insignificâncias

Dentre os vários problemas que o cosmos enfrenta, creio que o mais aflitivo é o da lei de oferta e demanda. Menos simplista que a lei básica de consumo, o cosmos faz uso de formas peculiares de reorganização do (des)equilíbrio entre os circuitos energéticos que regem a tudo e a todos. Uma das formas é a transformação do mundo a partir do prefixo "in".

A negação.

Não existe propriamente uma régua que indique o quanto se oferece e o quanto se procura. Nem de que maneiras mil esse movimento duplo pode compor-se a si mesmo. Mas o dar-se ao outro é sempre uma moeda de dois lados, e o milagre acontece quando a conseguimos equilibrar de pé. Quando o que se dá e o que se recebe estão de acordo e em paz. Diferente de medidas iguais, veja bem: é mais, creio eu, uma questão de acordo daquilo que permite que a moeda se equilibre e não pese nem num ombro, quer dizer coração, nem em outro.

O acordo pressupõe, antes de antes, percepção de que se recebe. Consciência daquilo que depositam em suas mãos. Sem perceber o que o outro dá (repare: não é o quanto, mas O que dá), não há nem como começar a pensar em acordar nada. Tudo dorme. Tudo é inconsciência.

Mas pode ser que se perceba, mas não se dê atenção. Porque pode ser que não se realize, de fato, tudo o que se eleva acima do nível horizontal cotidiano. Pode ser que não se perceba o relevo, a suave ondulação que o outro processa na sua vida, os meandros que o novo rio desenha em sua paisagem. Não se percebe o relevo, e as coisas tornam-se irrelevantes. Nem peso têm, e logo perderão a forma. E aí, de irrelevantes a invisíveis.

Pode também ser que não se atribua significado; que de tão ocupados com os nossos próprios mundos, não exista o movimento de dar sentido/significado ao que se nos oferece. Talvez porque a oferta nos seja estranha, talvez porque não a tenhamos recebido antes, e porque o novo assusta. Ou porque pareça estranhamente familiar, já andamos ali por perto, pensamos - e o velho assusta, mesmo que saibamos que tudo se recria e tudo se transforma. Pode ser que nos sintamos donos e senhores daquilo que acreditamos ser nosso por direito. Porque (podemos dizer) se chegou até nós é porque era para ser nosso. O cosmos ri-se, e tudo aquilo a que não conferimos significado, torna-se insignificante.

E pode ainda ser que olhemos em volta e não percebamos a diferença. Que consigamos apenas ver o nosso próprio reflexo. E como de nós mesmos só conhecemos uma parcela, e mesmo com o cosmos aos gritos, passamos reto pela parcela de nós mesmos que o outro nos desperta e desvenda. Nós preferimos ignorar. E avançamos estrada afora, vida afora, tempo afora, cada vez mais indiferentes, desacordados da transformação que se opera debaixo dos nossos olhos.