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29/09/2013

Dia de santo

de e para Júlia

É dia de santo quando Júlia abre a porta. Dia como o de hoje, 29 de setembro, dia de cavaleiro brilhante cavalgar pelo céu azul, dia de carregar espada e vencer as demandas e todos os dragões.

Faz tempo que Júlia não aparece. Mas hoje é dia de coragem, de decisão e de proteção; hoje é dia de deixar o medo esvaziar, dia de empunhar escudo e levantar cabeça; dia de resolver contendas. E as de Júlia são antigas, e cabe-me auxiliá-la.

Por isso Júlia abre a porta. Porque é dia. As dobradiças nem rangem, deslizam sólidas para permitir-lhe passagem. Júlia atravessa o umbral, sabendo com quem, sabendo por que, sabendo para que. Como num ritual, a adega.

Ao fundo, a mesma única janela fechada, os vidros pequenos escorridos. O cheiro brilha no sol que se esgueira por entre eles. O carvalho antigo flutua invisível a meio dos raios. Lá está a escuridão da madeira de outros séculos, e a luz que os tonéis transpiram, e o chão úmido levantado em gotas agarradas aos vidros. O chão quer-se água, mas cai e é chão outra vez, rendido à gravidade. Escorrega pela superfície do vidro prisão.

O cheiro da queda junta-se ao cheiro da adega, ao cheiro da luz esgueirada, ao cheiro da janela pequena, ao cheiro da porta que se abriu lentamente para deixar Júlia passar. Júlia percebe tudo isso de olhos fechados - deixou de espantar-se com o desconhecido que não quer mostrar-se. Entra no espaço que quer fechar, e sabe sagrado, com suas duas mãos cruzadas a meio do corpo.
A adega não é quente e nem fria; é mais um mastigar acre e cálido que desperta os sentidos naquele lugar exato de seu nascimento. A luz parece pequena, mas é densa. Os poucos degraus por onde Júlia precisa descer, em direção a esse cheiro feito de luz, não ressoam. Júlia um dia pensou que fossem duros e de pedra e gastos. Mas na semi-escuridão os degraus não eram degraus, só ilusões por onde os pés passaram sem dar atenção à advertência simétrica.
Ao centro da adega, o cheiro impregna-se. Parece que o tempo não vai a lugar algum. Cada milímetro de relógio diz que nem cheiro nem tempo nem noite acabam. Mas Júlia entrou acompanhada nesse espaço-passado, e as mãos invisíveis impedem que retorne ao que é vazio. O corpo de Júlia afasta-se, o cheiro dilui-se. O lago de tristeza que vive do lado de fora anuncia-se, uma rotina de escassez. E a mulher Júlia, essa que de medida tem os seus sonhos, ainda sequer saiu da adega.
O lago está parado, como é da natureza dos lagos. É um silêncio aquático liso, todo ele à tona, a escuridão calada da profundeza das águas movendo-se por baixo, sem que ninguém a veja ou pressinta. Há um abismo estreito entre a porta da adega e o lago. Nessa parcela escavada de terra, Júlia já se sentou à espera, nesse banco encravado na parede ao lado. Sentou-se ali pelo tempo que pareceu preciso, ou desejado, ou conseguido. Hoje seus olhos passeiam entre a adega e a tristeza do lago. Todo o tempo do mundo, e até fazer de conta outra vez que o lago não é triste e a adega não é o cheiro da noite que chega em passos forrados de velhice. Fazer de conta que se pode ficar o tempo que se queira com as narinas cheias desse cheiro antigo, os olhos fechados e por trás deles a fotografia de uma noite em que fosse possível evitar enfiar os pés no lago, e sentir-lhe as ondas avançarem corpo acima. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão da adega, e esta diferente da solidão do abismo, e esta da solidão do banco, da solidão das noites, da solidão do tempo. E fazer de conta que há um cheiro no lago, quando não há. Fazer de conta que há um cheiro inconfundível na adega vazia, quando também não há.
A vida no lago é feita da solidão silenciosa da morte homeopática.

O lago faz morada, o lago penetra e invade, líquido onde só ar é preenchimento pacífico. O ruído único é o ronco surdo de motor de barco ao longe, no lago a subir em direção à garganta. A Júlia que hoje se posta diante do lago sorri seus olhos fechados: a linha do tempo mostra-lhe a sua própria imagem em busca do ressuscitar lento do carvalho, da janela, da luz e da água que vive no chão. Tudo dentro das suas narinas, nesse mundo feito de cheiros, mas mesmo nesse dia o lago está lá, em silêncio, de mãos dadas com o abismo do lado de fora da porta.
Do lado de dentro do corpo de Júlia, essa mesma que em seu movimento penetra a adega e mergulha no lago, a luz e a escuridão medem e regateiam seus espaços. A luz tateia com seus dedos finos os veios escuros que escorrem do lago, a sombra é como enguias que serpenteiam a sua escorregadez na água lodosa. Em meio à luta silenciosa entre os habitantes dos espaços, Júlia reergue-se no tamanho da lonjura do que enxerga. 
E, nesse instante, um corpo emerge da adega e do lago em simultâneo; olha-se; abre as suas duas mãos, e nelas cada um de seus dedos, e por eles despede as águas do lago e o cheiro doce e acre da adega submersa. Ao centro do lago, as últimas bolhas de água tentam engolir o mundo do ar. Nessa hora, fresca e clara e tingida de vermelho alvorada, não é possível fazer-se de conta que a solidão é prato compartilhado, nem o tempo animal invisível, nem a vida o esperar inerte de sentido.

O lago engole a adega, e ela repousa no fundo dessa água sem cor. Os olhos de Júlia encharcam-se de limpeza, e dessa água que brota de dentro dela levanta-se sem peso o dia de amanhã.

Foto: Thyana Hacla



03/03/2013

O lago de Isaura

Este é o último dia. Isaura muda-se para um lugar menor, mais apertado. Escolheu-o pelas janelas, que são maiores e deixam entrar mais luz. Tanto faz que o espaço seja menor, mas porque é menor, e bem menor, Isaura está sentada no chão de ladrilhos do seu ainda apartamento, arrumando em caixas estreitas o que decidiu deixar. Entre todas as coisas, há aquelas que não levará, e nem ao peso da recordação que se lhes amarrou. As mãos de Isaura acariciam as superfícies. Ainda estão quentes. A garrafa vazia de café. Os lábios tatuados no copo de vidro. A sombra dos cigarros no cinzeiro queimado. E outras coisas, que não tiveram tempo de ganhar nome. Também as palavras, aquelas de natureza volátil como cheiro de nuvem, aquelas que aos poucos se apagam (se apagarão) das telas das retinas dos olhos de Isaura. Também elas precisam ser encaixotadas. Como pinturas complexas e vibrantes de consistência líquida, são palavras que se descolam das retinas. Isaura observa o seu cair diante do espelho baço do banheiro. E lembra-se da escova de dentes, e volta à sala para colocá-la junto às demais coisas. Armindo ganha forma no chão da sala, feito das coisas que se lhe encostaram. Nenhuma marca de sua música, apenas as marcas de seus dedos, e mesmo elas tão difíceis de serem recriadas.

Isaura fecha os olhos, porque toda essa água que cai diante do espelho lhe dói. Porque a garrafa de café lhe dói. Porque a caixa em que guarda o café sem abrir lhe dói. O presente sem entregar lhe dói. O cinto esquecido lhe dói. Mas a água continua sem atenção à dor, e já está o chão do apartamento cheio dela, e sobe pelas paredes como se subisse através da pele da casa de Isaura, e levasse as últimas marcas. A água escorre pela garganta de Isaura, lava-lhe o corpo por dentro. Está tudo inundado, a garganta, o sexo, os espaços entre os dedos dos pés, o corpo amarrado ao colchão. Isaura escoa-se em água e está dentro do lago. Costuma ser um sonho, isso, mas Isaura sente a pele molhada como se secasse ao sol em cima de uma pedra, ao lado do rio de onde a içam quando querem.

Há um homem, na margem desse lago, e Isaura gostaria que fosse Armindo. Mas Armindo está longe, rodeando outros lagos, e ele, diz Isaura por entre a água que a invade, ele, mesmo assim, com tudo, ainda assim - Armindo não riria, e o homem na margem ri. Mas enquanto a água lhe sobe narinas acima, Isaura sabe que ninguém a não ser Armindo saberia que esse é o lago do seu afogamento. E como o riso na margem é tudo o que ela ouve, tudo o que ela ouve é o riso de Armindo, aquele que sabe do lago. Os olhos de Isaura transbordados da água do lago, os olhos de Isaura inundados da sua própria água. Os olhos de Isaura dentro do lago - esse lago parado como é da natureza dos lagos. Uma ilusão salobra, um silêncio aquático liso, interrompido pelas notas distantes do riso do homem à margem, de Armindo à margem. 

A escuridão calada da profundeza das águas move-se por baixo, sem que ninguém a veja, mas Isaura sente-a aliciando-lhe as plantas dos pés, enredando-se como hera em suas pernas, puxando-a para baixo. Pode-se fazer de conta que o lago não é triste. Pode-se fazer de conta que se pode ficar o tempo que se quiser dentro dele, as narinas cheias do cheiro antigo que o corpo reconhece, e fechar os olhos e imaginar uma outra noite qualquer em que se consiga escapar ao enfiar os pés no lago e ser sugado por ele. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão das outras coisas, e estas diferentes da solidão dos abismos, e esta da solidão das noites, da solidão do tempo, da solidão do abandono. E fazer de conta que há um cheiro flutuando ao de cima do lago, quando não há nada a não ser o riso do homem à margem.

E o lago penetra Isaura, ela permite-lhe passagem para dentro de seus pulmões, presença de líquido onde só o ar faz morada pacífica. E só o que se ouve é aquele ruído rouco de riso de que já se falou tanto, no lago que sobe em direção à garganta. E então a janela fechada, a luz e a água que agora vive no chão da casa de Isaura invadem as narinas, e o lago está lá, ainda, seu silêncio encrustado, de mãos dadas com o riso à margem. Tudo diluído nesse fim de apartamento, quando a dor transborda os olhos para que a alma passe.