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28/02/2014

Alfa códigos

Esse mundo virtual é um nunca acabar de aprendizado e de inspiração. Entre ontem de noitinha e hoje, repare a quantidade de estímulos que recebi. Por essas e por outras é que não devemos jamais e nunca em hipótese alguma julgar nada nem ninguém, nem antes e nem depois de acharmos que sabemos alguma coisa. Tá confuso? É de propósito.

Ontem de noite, sem querer e um tanto a modo de higiene mental, embarquei numa produção poética coletiva, a partir de um dos poemas do livro Pele, autoria do amigo querido Aléssio Di Pascucci. Outros (Pedro e Má) juntaram-se ao "sarau virtual", como um deles disse, e lá ficamos, umas boas duas horas, mantendo versos quase-quase paralelísticos, regulares na forma, subvertendo-a às vezes com boas sacadas morfossintáticas. Muito bom mesmo. Uma espécie de deglutição do dia que passou, fiquei imaginando, juntando narrativa, poesia e uma dose on the rocks de terapia. Cada um saberá do que falava: num átimo, o que era meu tornou-se nosso, e assim mais fácil de digerir à noite. Bom, né?

Pouco antes disso, havia me deparado com a notícia (que chegou inbox, via uol) para a qual só consegui ligar um adjetivo fora de uso, muito particular do Baixo Minho: estantia. Fiquei estantia. Estupefacta até dizer chega. Mizael de Souza, o triplamente condenado assassino de Mércia Nakashima, a quem o destino fez colocar num dos cursos que dei no Presídio Militar Romão Gomes, declara que vai escrever um livro. O Mizael vai escrever um livro. Para mostrar o seu lado. Os 20 anos a que foi condenado em júri popular, num processo transmitido pela primeira vez ao vivo pela rádio e pela tv, não renderam ibope no facebook, provavelmente porque ele teve a sorte de ser condenado no mesmo dia em que os mensaleiros foram inocentados, e mais sorte ainda porque há uma parcela da memória das pessoas que se esvai como água ralo abaixo. Mizael, aluno do curso de Escrita Criativa do presídio em que cumprirá sua pena, não escreveu na altura uma única linha. Manteve-se numa certa (vou chamar de) soberba convencida, arrogante; deu-se ares de superioridade; quis posar de pop star imaginando ser reconhecido por qualquer um em qualquer lugar. Talvez convicto de que seria inocentado. Errou.

Agora, entro na rede pra ver quem andou se deitando nela. Mole e aleatoriamente vou lendo o que ele, o facebook, sugere que leia: torpor absoluto, que só não é pior porque é consciente. Sim, eu sei que estou lendo o que alguém da além-normalidade me induz a ler. Tudo bem. Manterei o senso crítico.

Mantive, mas não estava preparada para a estultice que cairia sob meus olhos. (Estultice, como estantia, é daquelas palavras que nunca tenho ocasião de usar. Responde por ações estúpidas, insensatas, imbecis e tolas. É o caso.) O blog "Ask Mi" (Mi é uma pessoa) apresenta um alentado (porque só com muito alento mesmo) estudo, recheado de conselhos, resultado de um workshop que a tal Mi realizou com Dora Porto, que por sua vez é orientadora familiar. Nunca ouvi falar dela, mas é na linha daquele "Casamento blindado" à venda em tudo quanto é posto de estrada. Juro que fui lendo achando que a tal Mi estava de sacanagem. Que no final daria risada dos aprendizados recebidos e diria valha-me deus em que século estamos.

Mas não. Os conselhos de "Aprenda a ser uma esposa irresistível" existem pra serem seguidos e são a prova de que não estamos perdidos e há (aleluia!) luz no fim do túnel! Já que

"... a mulher consegue sim fazer mil coisas ao mesmo tempo: comandar uma empresa, cuidar do marido e dos filhos, gerenciar a casa, trocar mil e-mails,  atender o telefone, ir ao supermercado, salão, academia, dentista, médico..... tudo no mesmo dia! Ufa!! E aguentam fazer mais de 2 coisas ao mesmo tempo! O homem nem tanto (...) Eles têm outro ritmo!"

então é melhor se precaver e imprimir e colocar na porta da geladeira a seguinte pirâmide orientadora:

Assim, tudo entrará nos eixos como estava previsto no felizes para sempre e você terá seu marido perpétua e eternamente ao seu lado, como atestam a maioria dos comentários à matéria do blog.

Não sei quem é Mi, não tenho nada que ver com o casamento ou as opiniões dela. Nem as discuto, porque bem se diz que entre marido e mulher não se mete a colher. Cada um saberá das sandices, das convenções, das paranoias e das concessões das suas relações íntimas. Eu tenho as minhas, você terá as suas. Mas é impossível não pensar nessa parcela feminina que em pleno século XXI olha para a sua relação como se ela acontecesse na década de 60 do século passado, aquela mesma década que enormes contingentes de donas de casa tentaram transformar ( e veja: sem considerar que nós não vivemos mesmo na década de 60, onde as mulheres não trabalhavam fora de casa etc. etc. etc.). Isso, por um lado.

Por outro (vá conferindo na tabela), imaginar que o homem (e só ele!) queira uma fabulosa parceira sexual, e que lhe retribua as benesses sendo afetuoso, que à estudada atração que a mulher exerça o homem responderá com honestidade (leia-se: no other women), que o apoio no lar da mulher equivalha ao apoio financeiro do homem, e que a admiração feminina por seu homem criará/manterá nele qualquer forma de compromisso, é demais!

(Antes de ir, passo no mural do Ivan, que acabou de compartilhar uma receita de ovos cozidos em creme de espinafre de dar água na boca. E água na boca é o que há!)



Quer ler a matéria toda da Mi? Clique aqui:

A pirâmide puxei de lá, e os alfacódigos são (claro!) do The Matrix!

Mas bom mesmo é terminar com a tal receita de espinafres e ovos!


06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em