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21/10/2011

Aos amigos librianos



A cada ano, mais. Passa-se o tempo e eu descubro mais um libriano na minha vida. Estou completa e cada vez mais rodeada de librianos - talvez devesse fazer algum tipo de terapia e entender o porquê. Filhos (três!), um companheiro de vida, vizinhos, amigos, compadres, alunos, amores - até minha caixa de supermercado predileta, a Thaís, descubro ter feito aniversário dia 15 de outubro! É um desfilar e nunca mais acabar dessas criaturas que, embora por vezes indecisas, primam pela diplomacia, pelo bom gosto, por uma espécie simples de simpatia cativante, pela sensibilidade. Ainda que, às vezes, a embotem, ou guardem, ou ruminem, ou sublimem (não faço ideia do que aconteça, mas tanta sensibilidade esfuma-se de repente por entre os silêncios que se avolumam). Tanto libriano assim em volta me dá ensejo a comer bolos dos mais diversos sabores em pouco mais de 20 dias, o que se traduz em quilos na balança – coisa de libriano, já se vê, interferir assim, sem dó nem piedade, em balança alheia.

Muita coisa depende de seu ascendente: sim, não, talvez (eis que me atacam as dúvidas do meu objeto de reflexão). Porém, estes librianos à minha volta têm em comum o serem delicados, encantadores nessa capacidade incomum de seduzir quem está ao seu redor, gentis, solícitos, bonitos, sorrisos que desmontam. Os manuais de astrologia dizem que amam o belo, e eu só posso concordar, porque carregam diuturnamente seu senso estético aonde quer que vão – mas o que de mais belo existe entre tudo o que é belo que amam, é a harmonia, o equilíbrio, imagino até que a simetria. Tudo aquilo que justamente lhes custa, que lhes dobra a alma, porque antes fosse fácil assim: não é. Essa fixação na harmonia, às vezes, leva-os a se esquivarem à contenda que se anuncia, creio – e para quem quer frontalidade podem tornar-se um desespero. Mas só às vezes.

Librianos famosos: muitos. De Sting a José Mayer, passando por Will Smith, Mat Damon, Fernanda Montenegro e Lobão. Quem consegue não se deixar seduzir?! E este aqui, que me desceu da prateleira às mãos, e que teria feito anos dia 19, se vivo fosse. A libriana ao meu lado arrepia-se quando lhe digo que sim, que o respeito, leio até com prazer, mas não me excita os neurônios nem me estimula os outros centros de onde surgem a maioria dos meus prazeres. Outros librianos sim, é fato, mas não este. De qualquer forma, e porque não gosto de recuar diante da adversidade, pus-me a ler, bem entretida aliás, hoje pela manhã, “Para viver um grande amor”. (No fundo, no fundo, meu pensamento estava mais ocupado em descobrir como é que se sobrevive a um grande amor).

Pensava entretanto no tema de outra crônica, uma que me acompanha há semanas, sobre as coisas que nos perseguem por muito que fujamos delas e a maneira como o destino tem a capacidade de nos atropelar logo depois das curvas... Talvez Vinícius (de Moraes, o próprio) pudesse ajudar-me, ele que diz que o cronista está condenado a ver-se vez por outra às voltas com a escassez de motivos, e por isso “levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada”. Nada mesmo. Nada pelo menos que me ajude a avançar na direção da divagação que pretendia. Descubro ainda outra frase sobre o ofício de cronista: “ingrato, prosa fiada”. Suspiro e quase desanimo; em dias de mais ficção que crônica, prefiro aquela sensação do ficcionista de ser levada “a tapas pelas personagens e situações que, azar dele [meu, no caso], criou porque quis”.

Vinícius oferece ainda, em meio às crônicas desse livro, poemas que "visam amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um 'balanço' novo" (libriano, ele, será?!). Uma terceira possibilidade, essa de poeta: aquela que exclama a pulmões plenos que o "único patrão" da poesia “é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e em tranquilidade”. Luta contra si próprio para alcançar o amor e a tranquilidade?! Não posso deixar de sorrir: é claro que nasceu a meados de outubro!

Mesmo considerando as diferenças astrológicas que nos unem, vejo as três possibilidades em ação, lá e aqui. Dão-me trabalho, a mim, com o seu desdobrar cotidiano – um trabalho bom, daquele tipo que entorpece as pontas dos dedos a ponto de precisar mergulhar as mãos em água quente, mas que ao mesmo tempo espreita por trás do espelho, para flagrar o momento exato em que os olhos mudam porque se encontrou o caminho (qualquer caminho) a seguir.  Eu, que costumava dividir-me em apenas duas, o que já era tarefa suficiente, descubro-me três em mim dentro da escrita, três formas diferentes, cada uma num formulário distinto de requisição; formas que me aliciam, cada uma com suas melhores armas; que me seduzem e embromam, altas horas da madrugada. Como se afinal tudo isto valesse mesmo a pena ser escrito. Ao menos para dar os parabéns a quem faz aniversário por estes dias.

15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


05/09/2011

Entre o sarcasmo e a vida


Tenho vários exemplos, na minha grande família que vive do outro lado do Atlântico, das virtudes do saber enciclopédico. Curiosidades da cultura geral foram um prato cheio, anos a fio, diante da lareira da casa na Estrada de Tornada, quando esta ainda era uma estrada e não a rua em que se transformou, quase (inacreditável) no centro das Caldas da Rainha. Os quilômetros que eu andava para chegar à Tália (única livraria de então, onde se compravam os livros de Enid Blyton e o Diário de Notícias) parece que se reduziram a alguns metros. A casa de meus avós resiste incólume, ainda que tenham se silenciado os serões.

Está tudo isso tão longe, no tempo e no espaço. Como se algo em mim tivesse vivido outra vida em pleno século XIX.

Dentro desse saber enciclopédico, saber o que dizem as palavras revestia-se de particular importância. Discutia-se muito; meu avô divagava sobre o sabor diferente do português camoniano, as cartas do king pulavam da mesa para as teclas do piano de minha tia, e eu treinava o prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Quando estavam todos, avós, tios, tias, primos e adjacências, formava-se mais uma mesa – a discussão política entrava em campo, comentavam-se as últimas de Lisboa, às vezes em voz baixa para não ferir suscetibilidades atentas nas outras mesas. De quando em quando as palavras mereciam um tempo de silêncio – ouvia-se uma baforada de cachimbo aqui, uma cigarrada acolá, mais uma bagaceira no copo que ainda é cedo e um whisky on the rocks para os fortes.

Entre tudo isso, uma prima lia cartas que recebia de um lugar chamado Taizé. Parecia outro mundo, a Maria Alice, embrenhada naqueles papéis que vinham de França. Ensinou-me alguns cânticos, que às vezes congregavam essa família que me aqueceu a infância, unida em volta do piano de minha tia, horas a cantar que não se contavam pelos tempos do relógio. Um fio que guardo cheio de boas lembranças feito pérolas.

Maria Alice vivia dentro de uma atmosfera monástica, embora (salvo erro) fosse funcionária pública em Lisboa. Sobrinha de meu avô, herdou o nome da mãe, mas não seus olhos cor de cinza. Eram “as Alices”, que chegavam sempre juntas, às vezes vítimas daquela espécie de maldade familiar que atinge os melhores, ou os incompreendidos.

Essa maldade foi-me apresentada, pela Maria Alice, como “sarcasmo”. Não sei quantos anos eu tinha, porque é daquelas memórias linguísticas mais antigas. Disse-me que sarcasmo é uma doença, e das mais graves, que é contagiosa e dificilmente tem cura. Quando se adquire, a cura demora, e depende muito mais da força de cada um do que dos remédios dos outros. Anos passados, descobri que ela tinha toda, toda a razão.

Sarcasmo é uma palavra de origem grega, como tantas que nos foram legadas pelos helenos. Deriva de sarx – carne - e criou um verbo. Porque, embora no princípio fosse o verbo, quem primeiro chegou foi o nome. E os nomes, quando transformados em verbos, mudam-se, embrenham-se, infiltram-se e passam a ser dentro de nós coisas que não eram quando em estado de palavra pura, de dicionário drummondiano. Sarx, a carne, criou sarkásein, o arrancar carne. Carne que se arranca através da palavra deve provavelmente ser a mais dolorida, por arrancar-nos da alma a nossa identidade humana, a carne que nos constitui, o ser carnal solidário e fraterno, que antes se agrega do que se arranca de seu semelhante.

Maria Alice apresentou-me a coisas mais importantes - a comunidade Taizé, para onde me voltei durante alguns anos. Taizé apresentou-me a Tereza de Ávila, um antídoto potente ao sarcasmo do mundo, transformado numa oração simples  que por sua vez se transformou em cântico na comunidade francesa. Minha irmã, na curta visita que nos fez nesta semana, e sem saber de nada disso, ressuscitou-me desses tempos antigos, em que a família se reunia e cantava esse mesmo cântico que ela escondeu hoje pela manhã dentro da minha mão, com um sorriso nos seus olhos serenos, onde o sarcasmo nunca encontra morada.

nada te turbe
nada te espante
todo se pasa
Dios no se muda
la paciencia
todo lo alcanza
quien a Dios tiene
nada le falta
solo Dios basta

O cântico, com melodia:

25/08/2011

Sem título, por opção


Há tempos que ando com vontade de escrever a respeito de uma palavra que me abalroou uns meses atrás – fiquei atônita olhando para ela, mal acreditando no que me fazia pensar. Chegou-me às mãos via os gregos e chama-se sphalmatos. Associada a perigo, aplica-se (ou aplicava-se) às situações de caída ou desgraça.  E isto a propósito de que? De duas coisas.

Uma, a crônica de Clarice Lispector que decidi reler um dia desses, uma das suas mais bonitas: “Estado de graça”. Deu-me a ideia, há alguns anos, de um daqueles exercícios que por mais que se repitam mais prazer dão: neste caso, ir ao encontro de palavras derivadas a partir de uma determinada raiz, descobrindo às vezes parentes e significados ímpares, num brainstorming linguístico que adquire maior sentido à medida que avança no espaço. Como o tal estado de graça, que os gregos readquiriam, para evitar a queda (ou a desgraça), somando à palavra o prefixo a, que tudo nega. Portanto , asphalmatos – aquilo que impede a queda ou a desgraça.

“Desgraça” faz parte do campo semântico que se abre com a palavra “graça”, um espaço de limites longínquos, cheio de sutilezas e encantos. Graça é aquilo que criança faz, e nos faz sorrir (mais do que rir); graça é aquele presentinho simpático que recebemos de quem menos esperávamos, e que nos provoca o “que graça!”. "Graça" oferece-nos palavras tão diferentes quanto gracioso e engraçado; gratidão e ingrato; agradecido e desgraçado. Estar em "estado de graça" é um pouco levitar do duro chão da existência, ser alçado àquelas alturas a que as paixões às vezes nos remetem (e das quais, quando caímos em desgraça, ganhamos um tombo proporcional ao grau anterior do estado oposto).

As coisas que são "de graça", contrariando todas as lógicas capitalistas, inclusive as bem intencionadas, são aquelas que não têm preço e que por isso mesmo nos deixam a alma naquele já dito estado de levitação. Aquelas coisas que chegam assim, do nada, sem que se esperasse ou previsse, e de repente se nos oferecem, leves, lisas e ternas. Um brinde da vida.

Pois os gregos sabiam disso. Usavam tanto asphalmatos que, por economia da língua, tornou-se asphaltos, acabando por batizar aquilo que, para dezenas de civilizações, dos próprios gregos aos sumérios, passando pelos assírios, pelos babilônios e pelos egípcios, serviu para impedir que as coisas caíssem (literalmente) e se desgraçassem. Noé usou asphaltos para calafetar sua (nossa) Arca. Literalmente, ainda em grego, está cunhado como “aquilo que evita a caída”.

Isso fez-me pensar, e num volteio repentino fiquei matutando se não nos estará faltando justamente aquilo que negamos tanto tempo – no plano concreto, palpável, o sempre-dito asfalto (assim, na grafia que conhecemos, sem o ph que o original grego oferece), aquilo que pode impedir que os nossos caminhos se desintegrem, se esboroem, criem buracos e levantem poeiras que nos intoxicam e nublam a visão clara do que está à nossa frente - ou às nossas costas. No plano das ideias e dos afetos, que foi para onde esta história me catapultou de fato, é como se nos escapasse o estado de graça, porque negamos, através do distanciamento, a nossa proximidade; porque perdemos a cordialidade; porque entendemos que a luta precede o entendimento e que a construção do nosso sentido parte da negação do sentido alheio, e não do seu caráter complementar.

Sinto falta, nestes últimos tempos, não só de conhecer as tantas diferentes pessoas que moram hoje à minha volta, e encontrá-las nas festas simples onde dinheiro não era moeda, mas também de re-conhecer aquelas que já estão aqui há muito – sem que a falta de tempo, de espaço, de disponibilidade ou de desprendimento nos impeçam de levitar, achar graça sobretudo em nós mesmos e ser gratos. Clarice, nos momentos da depressão que sucedeu o incêndio que quase a matou, queixava-se da solidão das coisas do mundo, e refugiou-se nessa solidão que ajudou a construir. Não gostaria que lhe repetíssemos esses passos.

23/08/2011

Fome



Contava eu hoje pela manhã a um grupo de jovens que a desgraça alheia ajuda-me desde pequena a lidar com a própria – sempre e por todo lado menor. Às vezes (agora, por exemplo, em que escrevo) chega a parecer-me quase um utilitarismo: pensar no infortúnio dos outros para consolar-me do meu. Mas não é consolo. É dimensão.

Dimensão do abismo insuportável que me separa da dor do outro, que eu quero sentir para poder aplacar, mas não sinto, e não aplaco. Insuperável , insondável, intransponível, inalcançável. Qualquer dessas palavras serve-me para o mesmo: para a dimensão desse abismo entre o que eu quero e o que eu posso, que em tudo se assemelha ao que todos queremos e de fato podemos. Meu grão de areia insuportável e intransponivelmente irrelevante. Naquilo que posso, a minúscula contribuição ao (quando muito) resgate de alguma parcela da dignidade alheia, essa que falta e escasseia - subtraída, escondida, roubada. Haveria de inventar palavras que falassem dela.

Por isso, a importância de nestes nossos dias ouvir a poesia e o canto somali, as narrativas etíopes que se perdem nos confins dos tempos em que viviam a rainha de Sabá e o rei Salomão. Aos meus olhos e ouvidos, resgatam do seu anonimato esses rostos desfigurados pela fome e pela desventura; tornam-se o semblante humano da arte, aquilo que os faz, de forma altiva e silenciosa, meus mais desgraçados irmãos – irmãos que sorriem e dão graças a deus porque de seus nove filhos dois chegaram vivos ao campo de refugiados para onde caminharam durante semanas; irmãos que dão graças a deus porque nesse dia têm uma xícara de arroz para compartilhar entre oito; irmãos que não choram mais porque as lágrimas secaram nas areias dos desertos que habitam; porque nesse dia o carregamento de água trará a ilusão de que a sede acabará; e porque amanhã a mesma coisa, até não caber no corpo nem sequer uma ilusão.

Repito a cada noite os nomes etíopes e somalis que conheço: Asad, Meseret, Mihret, Oumed, Amina, Erasto, Ayanna, Selassie, Dalmar, Nadif. Muitos podem chamar-se dessa forma, e a todos quero incluir na minha noite em que não existem nem sede, nem fome, nem quilômetros de sol à frente de meus passos nus, nem crianças mortas a cada lado da estrada, nem uma continuidade inacabável de sofrimento às minhas costas.

Repito-os para que tomem forma e me lembrem em sonhos da imensidão que é a raça humana, e a sua capacidade de sobrevivência em face do desespero alheio. A cada morte de cada um a minha existência perde algo da sua humanidade, e eu preciso da arte, desesperadamente, para lembrar-me de que o seu sofrimento é o meu também, e de que enquanto eles, tão longe de mim no tempo e no espaço, não deixarem a um lado a fome e a sede, cada meu prato de comida pesa-me uma tonelada, e jamais saciará a fome que sinto em seu nome, e da qual me lembrarei a cada noite ao dormir, a cada manhã ao levantar. Como um fardo que ponho às minhas costas porque quero e porque assim, bem mais egoísta do que gostaria de ser, posso dormir.

11/08/2011

Saraus

Na época em que eu fumava, tive um amigo que me apresentou a uns cigarrinhos curtos e finos que vinham da Índia, num pacotinho pequeno em forma de cone. Nada mais eram que uma folha de tabaco enrolada e presa com um fiozinho de linha colorida, esses "beedies" que na altura se compravam em Marrocos. Foi uma época intensa, essa. Por obra do destino, eu me via junto a um grupo de pessoas que se reunia para ler e ouvir poesia, e que, a meio dessa atmosfera densa, enfumaçada e sombria, fazia silêncios que duravam a eternidade que nos separa dos bandos de cavalos soltos pelas praias da península ibérica. Não sei do que eu mais gostava, se das palavras ou se do silêncio que ampliava o que elas diziam. Ouvia-se o riscar dos fósforos, o gorjeio das garrafas quando se esvaziam, e de repente mais uns versos de tantos poetas que, reparo, não me couberam na memória. João Cabral vem-me daquela época, em alguns poucos versos que, quando reaparecem, trazem de volta, como um presente, todos os encontros em um só, e eu agora sozinha, porque todos quase já se foram, ou porque se foram de fato, ou porque eu me fui deles e não posso mais reencontrá-los. Reinvento-os na solidão da minha mesa, cada um de seus olhares de pálpebras fechadas.

 Esse amigo, que se foi há anos, lia Lorca e Valéry como se lhe habitasse as veias, e a mim me acontecia aquilo que alguns chamam de alumbramento. Alumbravam-me as rimas, o ritmo, as palavras de escolha certeira, os que avançavam pelo que era concreto e os que se perdiam no que não era. Apareciam os surrealistas, não se discutiam nem se interpretavam. Vinham os imagéticos, os duros como pedras, os incisivos como tempestades de areia dentro dos olhos.

Ficou-me dessa época a vontade de ouvir e não dizer nada, essa substância volátil que em nossos dias é tão rara, que são os silenciamentos da alma que foi e se sabe tocada. Relendo João Cabral, descubro-lhe novos poemas, novos versos, novas imagens, percebo-lhe a tarefa imposta – a mais dura, a mais difícil. E penso em como será que sobreviveríamos se eles não estivessem em guarda para nos salvar da torpeza que é a insensibilidade humana.

Não havia convites, nem saraus a serem combinados, arranjados, preparados. Era a palavra pura que se capturava num instante para soltá-la logo a seguir. Um dia certo na semana, uma casa onde ir, e mais nada. De onde apareciam todos aqueles amantes da poesia, ou como, eu não sei – talvez combinassem, afinal, eu era menina demais para perceber o que a vida adulta demandava, tinha todo o tempo do meu mundo ao meu dispor e hoje vejo como nada disso era fácil, ainda que parecesse. Mas a lembrança ficou dessa forma, ela própria também um alumbramento, e acompanha-me nesta tarde, que prepara o derramar-se de hoje à noite, quando João Cabral nos visitar e com ele a legião de poetas que vivem do outro lado à espera de que os chamemos. Em silêncio, com cuidado, de olhos fechados e alma aberta.

26/07/2011

Ver (ou não) as caravelas


Contaram-me um destes dias que quando as primeiras caravelas chegaram à costa brasileira nem todos as perceberam na linha do horizonte; grande parte de quem já estava deste lado de cá percebeu apenas a nova e diferente ondulação das águas do grande Oceano. Daquele grupo que esperou, nas areias da praia, o primeiro desembarque, fariam parte aqueles que as descortinaram ao longe e por isso as foram receber, entre curiosos e temerosos. Ou não, que disso Caminha não nos dá notícia, e é a partir dele que recolho o longínquo acontecimento.

Aqueles que perceberam as velas e seus mastros não o fizeram por terem melhores olhos, mas maneiras particulares de verem “as formas invisíveis na distância imprecisa” – como escreve Pessoa que são os sonhos, aquilo que é sem ainda o ser. Aqueles que perceberam os ventos novos foram em sua direção, enquanto que os outros viram (apenas) no que conheciam um leve agitar-se. Mas, ao que consta, ninguém se incomodou com o que o outro via. E nem impediu que quem visse registrasse que o fazia, muito menos que disso falasse.

Os ventos acompanham-nos, vindos do mar que é o que nos separa e une – como todas as pessoas e coisas que não se limitam a apenas uma possibilidade, mas estão abertas a várias. “Bons ventos” trazem-nos alguém, “novos ventos” reacendem-nos o entusiasmo e a chama que nos mantém de pé. Vemos (e ouvimos e cheiramos e percebemos) o que é novo por um simples motivo: porque temos olhos e ouvidos e narinas e sentidos que nos permitem ver o que outros, às vezes, não veem nem ouvem nem cheiram nem percebem. Porque não podem.

A carta de Caminha é uma crônica de viagem que dá gosto ler – um precioso, aberto e humano relato do encontro dos navegadores com esses novos homens “pardos, todos nus”, que “traziam arcos com suas setas” e que assim que se “lhes fez sinal que pousassem os arcos, eles os pousaram”. Ao recebê-la, o rei de Portugal não teve dúvidas de que aquilo que lia era verdade – que aquelas pessoas e aqueles lugares, aquelas ervas e aquelas paisagens existiam e estavam agora a apenas umas letras de distância. A confiança regia a relação entre o rei e seu cronista. Ainda que lhe pedisse provas: uma pedra, um barrete de penas, outras evidências, todas elas a caminho, provavelmente junto com a própria carta de achamento.

Entre os que ouviram os relatos das grandes navegações, houve aqueles que viram (porque tinham sentidos para fazê-lo), e aqueles que se agarraram às certezas que tinham e não conseguiram ver, a não ser quando a evidência esteve ao alcance das suas mãos. Entre estes últimos, houve aqueles que encolheram os ombros e foram à sua vida, e aqueles que se levantaram indignados de que outros dissessem ver aquilo que eles não viam (ainda). Entre estes últimos, uns discutiram entre si acaloradamente durante um tempo, ocupando-se com novo assunto assim que ele chegou; outros, exigiram providências imediatas, espumando em segredo, saudosos dos bons tempos da abolida inquisição. Entre estes, uns sobreviveram, e vivem ainda entre nós. Outros, também - mas calam-se e esperam com sorrisos falsos pela melhor oportunidade de espalhar o seu medo do novo.

01/06/2011

A parte sem o todo

O que me fez pensar no livro foi o título: ”Por uma vida melhor”. Um título assim só diz algo a alguém que precise melhorar de vida. Crianças não costumam ter a sensação de “precisar melhorar de vida”, portanto depreendi que o destinatário fosse um adulto.

Foi sob essa perspectiva que li o primeiro capítulo, introdutório, de ponta a ponta, do tal livro aprovado pelo MEC, o gerador da acirrada celeuma de umas semanas atrás. Reconheci o que a realidade em volta mostra a quem olha para ela, assim como boa parte do que aprendi sobre os processos linguísticos ao longo dos anos. Coisas óbvias: que falar e escrever são atos diferentes; que a maneira como se fala ou escreve depende do destinatário; que toda linguagem é regida por regras, as quais formam as diversas gramáticas internas de uma mesma língua; que toda língua tem variantes, que variam de acordo com seus falantes; que a maneira de falar pode ser um poderoso instrumento de preconceito, inclusão ou exclusão social; que é preciso valorizar todas as formas de fala, entendendo-as como variantes e não como erros; e por aí vai. (Sírio Possenti, na matéria que escreveu a respeito da celeuma, diz que adjetivar de “errada” a fala de um grupo de pessoas seria como adjetivar de “errado” o bico de um tucano, baseado na proporcionalidade entre bico e corpo que rege a maioria dos pássaros.) No fundo, no fundo, só fala errado quem não consegue comunicar o que deseja comunicar, seja por que motivos for.

“Por um mundo melhor” é, de fato, dirigido a um público mais velho, alunos da Educação de Jovens e Adultos, formada por pessoas que já de cara se encontram na linha de exclusão social pela falta de estudo e precisam, muito, imensamente, ver-se diante de um espelho que os reproduza como pessoas capazes e falantes de uma variedade linguística válida, respeitável e correta. Não por bondade, mas porque de fato o é, sendo apenas preciso o respeito ao onde e ao quando, como com qualquer outra variante. Estaríamos todos aliás perdidos se fosse diferente, porque todos estes “portugueses” que falamos e escrevemos não descendem diretamente das palavras de Ovídio ou Virgílio, mas dos soldados no máximo semi-alfabetizados que povoaram a península ibérica com seu “latim vulgar”. Capítulo corretíssimo, o do tal livro, cumprindo ainda a função (bastante conservadora) de instar o leitor a converter todo exemplo da variante “popular” para a escrita normatizada pela gramática padrão da língua – aquela dos pássaros cujo corpo e bico são proporcionais.  

Eu sei bem o que é recortar de um processo comunicativo uma de suas partes - e um livro é um processo comunicativo, assim como uma carta, um artigo, um bilhete, um romance, um poema, ainda que em graus funcionais diversos. Guardo emails de memória porque isso faz bem ao meu coração, ainda que eu inteira saiba que é um trecho, um recorte, uma parte que, a despeito das considerações barrocas de Gregório de Matos sobre o assunto, não corresponde ao todo. Mas isso não me incomoda, muito menos ao resto do mundo que sequer toma conhecimento do que guardo em mim e para mim.

Também sei de perto o que acontece com processos de comunicação interrompidos, truncados ou incompletos, aleijados pelo mesmo defeito da discussão livro-do-MEC: lê-se apenas uma vez, lê-se apenas uma parte, não se entende metade, não se pesquisa (porque não se pergunta), não se estabelece nenhum processo que pretenda entender quem escreve, e parte-se a galope para o julgamento do que se leu – e leu dessa forma alijada de compreensão.  Como diria meu pai: cru e quente. Quando ainda por cima o uso é ideológico (“livro ensina a falar errado como Lula”), eu chamaria as autoridades, nem que fosse por crime linguístico.

O assunto reacendeu-se aqui na minha escrita porque fui chamada a compartilhar o meu processo de criação enquanto escritora num congresso. De zilhões de pessoas bem mais qualificadas do que eu para isso (e não é falsa modéstia, mas a percepção clara da pouca experiência misturada a um certo pudor de descobrir diante dos outros o que até ontem entendia só meu), atrevi-me a aceitar a oferta e pus-me a trabalhar. De uma e outra forma, preciso perceber o que me provoca a sensação de criação, o que me faz de fato criar e o que se antepõe entre mim e o universo da criação. Não é fácil, porque afinal é o meu processo de humanização particular, deparo-me com situações internas que sei precisar resolver... Mas no processo descobri alguns “por ondes” que desconhecia e com os quais consigo relacionar-me saindo da sombra.

Hoje de manhã, o exercício foi partir da função da língua na minha vida. Ressuscitei Antonio Cândido da prateleira dos teóricos, naquele texto sublime em que ele diz que a arte é o que humaniza o ser humano. A linguagem sobrepõe-se em todos os meus mundos - pessoal, profissional, afetivo, social. Mais do que qualquer outra, a escrita é a minha maneira de relação com o outro, meu canal fluídico privilegiado no caminho que me conduz para fora de mim e em direção aos mundos alheios. É-me difícil ler alguma coisa sem olhar de todos os lados, é quase que automático – o que me preocupa, porque os processos automáticos se afastam muito rápido da arte. E é-me difícil o caráter fundamentalmente solitário da escrita. Mas assim que uma nota em forma de palavra me toca, me eleva, estou de volta ao domínio de onde não quero mais sair - o domínio da arte, talvez aquele de onde Drummond saía quando se ausentava do reino das palavras e voltava escrevendo. A palavra é o ser humano em que quero me tornar.

Como a palavra habita todos os instantes da minha vida, e assim faço para que seja, oferece-me bastante trabalho, e a todo instante estou (ou poderia estar) em atividade. Tento, nos últimos tempos, que todos esses momentos sejam intensos no sentido da potência estética que a palavra em mim quer alcançar e, também ultimamente, isso converte-se em dor e em desamparo, uma quase tortura por não saber sempre qual o caminho, e errar por estradas pouco ensolaradas, perder-me no labirinto de uma paisagem sem horizonte até encontrar a saída e perceber-me do outro lado de uma moeda que não tem lados (como se um Alberto Caeiro a correr as cortinas da sua janela, dizendo-se entre parênteses que no entanto ela não tem cortinas). A proteção do mundo dentro de uma redoma de ar.

Talvez o que mais me entusiasme seja perceber a capacidade criadora da palavra em todos, latente, como se a mais democrática de todas as formas. Chegamos ao outro através da linguagem, é nossa enquanto grupo e nossa enquanto indivíduos – e talvez por isso me doa nos ouvidos e nas entranhas dizer que alguém fale “errado”. O que seria dos Patativas do Assaré (e do mundo) se lhes dissessem (e eles acreditassem e se conformassem) que falam e escrevem  errado? Que seu bico avantajado e multicolorido não cabe no universo dos céus, porque desequilibra os corpos alheios, e por isso não podem voar nem chalrar à vontade?

02/05/2011

Cartas ao tempo que foi

Escrevo-te com décadas de atraso, quando já não podes ler as linhas que te dedico. Já não estás entre nós, dirão alguns, mas eu sinto-te tão perto quanto na tarde que acabou de se tornar presente, assim que encontrei agora mesmo a carta que me escreveste e da qual eu sequer me lembrava.

Esqueci-me de tanto ao longo dos anos. Por isso as cartas se tornaram elementos imprescindíveis da reconstrução do passado, e por tê-las guardado e porque foram escritas por ti, sabem dizer as coisas que, com décadas também de atraso, agora posso entender.

A passagem do tempo, que me dizias ser uma fera completamente imbatível, interpõe-se entre nós de maneira cáustica e definitiva, a ausência sempre grossa e dura entre o onde estás que ainda não me pertence e o onde estou que sei teres abandonado sem espaço e tempo para dizer adeus. Ou até logo, para que soe menos inexorável.

Se existias, perguntavas-me tu. E eu tinha tão pouca idade, como saberia dizer-te a ti, que já chegavas à curva do mesmo caminho de Caeiro, se existias? Se eu mesma tão pouca certeza tinha de qualquer coisa existir de fato? Como eu própria. Como aquilo que se materializava no espaço desconstruído entre nossos corpos.

Todos os adjetivos que me davas naqueles anos pesam-me na balança, desequilibrados pelo outro prato que se construiu nestes 30 anos de distância entre aqueles dias e os de hoje, tantas dimensões a se interporem, um coração que parou numa mesa de operação e um outro que não sabia ficar-se à espera.

Depois é sempre tarde. E eu não acreditei. E continuo sem saber como tornar verdade o que é verdade, e saber-me chegar e sair, penetrar e diluir a partir dessa verdade tão nua, tão crua e tão real. Saber que depois é sempre tarde.

Penso nas coisas intemporais tais quais as vias e me dizias: o mar, o calor sob o sol ou o rumor das fontes, e vejo-te inclinado e pesado sob a tua bengala, tropeçando nos móveis da tua biblioteca feita de paredes de livros empilhados, deitados uns sobre os outros, construindo paredes de metáforas pedaços de Marrocos conchas da Cataluña vento das praias de Cascais e sombras e perdas e saudades. Vejo-te à mesa em que te sentavas, a pequena lâmpada iluminando mortiça a tua cabeça toda branca, os cabelos que já não eram tantos em desalinho de poeta que pensa, os óculos que te caíam por baixo dos olhos inquietos, a mão trauteando as palavras que te vinham à mente ao ler o teu Pessoa, que fizeste com que fosse nosso e logo em pouco tempo meu. Vejo-te com tanta clareza, mas não me lembro do que me dizias, quando ao chegar me acenavas e abrias os teus braços e dizias algo. Que era sempre feito das mesmas palavras e eu não lembro quais.

Onde estava eu, que não te prestei a atenção que merecias? Onde estava, ao fugir assustada com a intensidade do que me propunhas, e passei depois anos e anos e anos à procura de uma intensidade assim no mundo? Como se fosses tu a ergueres o teu dedo e a decretares o meu destino, encontro tantas fugas no meu próprio caminho.

Nossos encontros feitos de letras, e de versos, e de silêncios densos e valiosos, com o sol poente de Lisboa tingindo as paredes de um quarto de hotel que se tornou o paraíso só por causa das palavras que usavas e mais nada. Nossos encontros sempre de letras, na biblioteca da editora em que te trancavas e de onde só saías quando sabias que eu chegava, sem me dizeres nada, e eu percebendo tudo isso nos olhos de quem, como tu, estava à espera do horário da saída, e o tempo não passava.

Agora que posso escrever-te, não podes ler-me, nem podes perceber que o tempo, fera enegrecida, transformou-me naquilo de que estavas à espera, tudo nas palmas das tuas mãos e sem teres onde guardar.

Quando leio que dizes que chegamos à borda da absoluta sinceridade, eu fecho os olhos de dor de não lembrar-me dessa espera tão incerta, aqui prensada nesse papel que já amarelou de cansaço e que se torna tão real, tão palpável, por trás destas letras que me deixaste de herança, e que decido tornar a guardar na mesma pasta. Certamente voltarei a elas, e sentirei a tua presença morna tal qual a sinto agora. E nesse dia não vou mais lamentar, mas perceber que o tempo que se esgota é aquele que nos preenche, e que a distância, e os anos, e tudo o que nos separa daquilo que pudemos ter sido e não fomos, é o que nos constrói na aceitação cotidiana do que afinal nos tornamos, e que eu devo às palavras que depositaste em mim, ainda que não me lembre nem saiba me repetir quais foram.


A J.A.L. (1925-1987)

12/03/2011

Despedir

Despedir é verbo estranho, antigo e desafiador. Despedir só é possível quando se esgotaram em nós todas as necessidades do pedir. Quando nada em nós clama ou chama o outro, quando já não se lhe confere o lugar de alguém que está ali para estar conosco e por estar conosco. Quando se deixa de pedir, des-pede-se.

Hoje, porém, surgiu-me outra percepção dessa palavra – a de que aquilo que se despe em mim é o que permite ao outro ir. Despe(d)ir. Para mim, neste instante, essa lição de palavra me basta. Uma lição de palavra que me subtrai ao acrescentar e me transporta para dentro daquele lugar onde diz Drummond morarem as palavras em estado de dicionário: paralisadas, sem desespero, em calma, frescura, superfície intacta. É suficiente, agora à noite, que despedir seja aquilo que em nós se permite ausência – e que permite ao outro, só por isso, o seu necessário ir. E assim me desvisto nesta noite fria. Enquanto o outro vai, em direção ao que lhe pertence.

No entanto, despedir pouco tem que ver, na história do mundo dos homens, com essa percepção que correu ao meu encontro, das portas do futuro em direção ao presente. Das linhas do passado, despedir conduz ao pensamento latino, e a expetere, parente imediato do nosso verbo que diz adeus. 

Expetere é o verbo que pede, o verbo que levanta os olhos ao céu que a todos nós cobre e não suplica, mas aspira. Sob esses olhos, o ato de despir reveste-se das cores do aspirante, daquele que inala, daquele que mergulha dentro da própria dor e apenas pede que a do outro seja poupada. Apenas inspira, e nada mais.

Mas expetere tem raízes mais antigas, que se realizam com menos sons e menos letras em petere. Os mais antigos que os que pediam expetere, diziam petere,  e era assim que queriam procurar, e através da procura, desejar. E assim, nisso que hoje é um adeus e ontem era um pedido, é uns dias antes uma procura cheia de desejo. Não um desejo qualquer, mas aquele que aspira ao próprio despir para permitir a partida sem dor do outro.

A despedida conduz-nos para mais longe, porque as despedidas existem desde o nascer dos tempos, numa torrente contínua que nos envolve e às vezes trucida, implacável como é tudo o que apesar de permanece. Mas falham os registros - os homens mais antigos que os antigos ainda não precisavam escrever, e nada nos diz o que a raiz –pet provocava nos corações e nas mentes daqueles que se despediam sem dor 7000 anos antes de nós. Com certeza olhavam estrelas, talvez outras, talvez diferentes das que brilham hoje sobre nós, mas diante do mesmo espaço imenso, infinito e escuro da noite fria, tiritavam em silêncio ao se despir, despedindo sem dor os que sem dor partiam em busca do destino.


Com o pensamento em João Alexandre Cortesi Lempek, onde quer que esteja

05/03/2011

Sólidos, em todas as suas acepções

Se você decidiu ler esta crônica para passar o tempo e distrair-se sem precisar pensar muito em coisa nenhuma, sem modéstia devo dizer-lhe que corra a fazer outra coisa. Eu mesma sentei-me para escrever com essa intenção (passar o tempo e distrair-me), e acabei enredada nas palavras acrescidas de sentimentos. Portanto, nem é preciso se desculpar, que a vantagem de ler é que a nós apenas compete e ninguém tem nada com isso.

Sinônimos são coisas estranhas que desde pequena me incomodam. Na primeira aula em que quiseram ensinar-me (pior: que eu repetisse) que sinônimos eram palavras que queriam dizer a mesma coisa, eu mexi-me inquieta na cadeira com tamanho despropósito. Nenhuma palavra quer dizer o mesmo que outra, o que aliás seria de cara um perdulário contrasenso: pra que duas palavras para dizer uma mesma coisa? Pra que gastar em dobro para nada dizer a mais ou a menos ou diferente?

Para provar o que me escapuliu de repente dedos afora, assim que comecei a escrever, fui-me em busca desse paquiderme bastante roído pelas traças a que damos o nome de dicionário. Abri-o assim, ao acaso, e lá estava, como sempre, um bom exemplo do inútil que é pretender saber o que são sinônimos. Como se existissem.

Sólido – verbete imenso, com um corte a meio (presente das larvas que dividem comigo a leitura dos livros), diverte-me. O que teria a humanidade em mente para conferir a uma palavra tão simples uma quantidade tão impressionante de pretensos sinônimos? Sinônimos que, como sempre, raramente entregam aquilo que prometem. Posso até, condescendente, achar que as palavras queiram dizer a mesma coisa, o difícil é que nós queiramos o mesmo. E como quem as usa somos nós, fica o caso resolvido.

De pronto: sólido. Define-se por negação: o que não é vazio e oco. O que não se deixa abater por uma força externa. Que tem consistência, é encorpado. Forte, robusto. Que tem fundamento real, seguro. Duradouro. Sério. Que não se altera ou afeta com facilidade. Bem aplicado, enérgico, adequado. E, por fim: corpo que tem três dimensões e é limitado por superfícies fechadas.

Bem sei que o campo da semântica correrá a contradizer-me, a cada palavra seu âmbito de uso, mas havemos de ver que as coisas, no mínimo, não se completam. Facilmente alguém advogaria que poderíamos usar uma dessas palavras em lugar de sólido, como um seu sinônimo. Será...?

Supondo que um sólido seja um corpo que tenha três dimensões e esteja limitado por superfícies fechadas, não pode estar nem vazio nem oco. Supondo ainda que todos nós, pessoas, tenhamos três dimensões (temos) e estejamos limitados por superfícies fechadas (estamos, ainda que sejam as superfícies permeáveis), não somos nunca, por definição, nem ocos nem vazios. O que, já se sabe, precisa de uma observação atenta do entorno, mas é fato. Há até quem pareça oco, vazio – mas quem está do lado de fora é que acha, do lado de dentro, em circunstâncias psiquiatricamente normais, ninguém se acha nem uma coisa nem outra.

Portanto: não somos ocos nem vazios. Abater-nos por forças externas: depende da intensidade, direção e intenção das mesmas. Do momento nosso. Da companhia, às vezes. Ou da falta dela. Dos silêncios. Ou do excesso de ruídos. Nem ocos, nem vazios, porém suscetíveis às forças que nos rodeiam. Adiante.

Consistência: temos, ou procuramos. Encorpados: uns mais que outros, como no mais (e, veja bem, encorpados são mesmo é os vinhos.)

Fortes e robustos seremos todos um dia, que a tendência à robustez aproxima-se conforme os anos se distanciam. Robustez que, em termos de sinônimos, pode até ser um eufemismo...

Agora vêm as coisas complicadas: que tem fundamento real, é duradouro e sério. Mesmo tendo as três dimensões, mesmo não sendo nem oco nem vazio, mesmo robusto e forte... nem sempre o fundamento é real, nem a seriedade e a duração se coadunam com muitos de nós. Sérios e duráveis, nós?!

Que não se altera ou afeta com facilidade. Bem aplicado, enérgico e adequado. Depende, é claro, assim como depende o que pensemos que seja algo “bem aplicado”, que talvez esteja distante de “ enérgico” e a léguas júliovérnicas de “adequado”... Consigo pensar assim, sem sequer pensar, em pelo menos três exemplos, que aliás não vêm ao caso nem ao espaço que aqui se quer exíguo, de situações pretensamente bem aplicadas, até enérgicas e nada, mas nada mesmo, adequadas. Pense: todos temos exemplos fáceis.

Creio que todo o meu empenho conduzir-se-á, a partir de hoje, pelo desejo e necessidade de ser sólida. Serei plena e preenchida, robusta e forte (e estou ficando, infelizmente, graças às últimas e ainda em curso aventuras gastronômicas...), séria, duradoura, visível nas minhas três dimensões, o que é uma grande vantagem, num mundo em que, se você consegue ver uma delas, já é uma grande sorte. Terei fundamento real e não me alterarei com facilidade, sendo no entanto aplicadamente enérgica - e ainda conseguindo a proeza de o fazer da forma adequada. Só de imaginar, precisei deitar e descansar, para pensar nas prováveis vantagens de ser como os vidros e viver num pouco aparente estado líquido.


Ana Vieira

03/03/2011

Semiótica no dia a dia


Alguns anos atrás, tive a oportunidade de participar de várias disciplinas graças ao então doutorado em curso. Uma delas, com o prof. Izidoro Blikstein, foi-me especialmente proveitosa. O tema era a propaganda fascista, e o ponto de observação valia-se das teorias semióticas – aquelas que estudam as maneiras como o homem confere significado àquilo que o rodeia.

Temas caros a Blikstein pulavam em todas as aulas – estereótipo, preconceito, manipulação e muitos outros conceitos foram discutidos à exaustão, contrapostos, conferidos. Maioria esmagadora de alunos judeus, criavam-se discussões acaloradas, apresentavam-se argutas leituras dos pequenos sketches de propaganda nazi, assistiam-se filmes memoráveis - por exemplo, “O julgamento de Nuremberg”, versão a preto e branco com Spencer Tracy e elenco de peso, incluindo Marlene Dietrich.

Desse curso, incorporei à minha bagagem (repertório, na linguagem de Blikstein) um olhar interessado em encontrar nas mensagens à minha volta aquilo que dizem sem parecer dizer – o campo da semiótica ganhou um espaço em mim que eu desconhecia. Interessou-me particularmente o mecanismo que nos faz ser engolidos por informações que nos distorcem a visão, embaçando, delimitando, transvestindo a realidade com as cores que convêm ao emissor. Nós, os receptores, se não estamos atentos, somos abalroados e às vezes não nos recuperamos. Como não há como ter controle sobre o emissor (a não ser que sejamos nós mesmos, é claro), melhor será que se desenvolvam capacidades receptoras, a postos para nos auxiliarem a clarear aquilo que vemos. Com tempo e prática, essas capacidades (espera-se) poderiam tornar-se quase automáticas.

A web acumula uma quantidade imensa de informação, nem sempre verídica, nem sempre nas suas reais proporções. Facilmente se deturpam e propagam falsidades, e facilmente se lhes dá cunho verossímil e respeitável. A democratização da informação que proporciona demanda, por outro lado e a passos largos, o desenvolvimento daquelas capacidades receptoras e de uma forma de estado vigilante, que nos impeça de propagar involuntariamente inverdades, tendências, preconceitos.

A petição que circula na internet sobre um suposto filme, com estreia breve na América do Norte, que mostraria Jesus mantendo relações homossexuais com seus discípulos, serve de exemplo acabado. Pede o email que se assine a petição contra “Corpus Christi”, dizendo que “a omissão é uma forma de aplaudir as aberrações” e que “a paródia repugnante de Jesus” precisa ser contida, através de muitos nomes que impeçam a exibição do filme.

Com um pouco de pesquisa (por desconfiar dos termos da petição), descobre-se que nem esse filme existe, nem existiu nem anda em projeto. Existe uma peça (do mesmo autor dos livretos das peças “Ragtime” e “O beijo da mulher aranha”), e um documentário sobre ela – porém, embora tenha causado certa celeuma, apresenta um personagem de nome Joshua que seria uma “atualização” de Jesus – nasce num bairro degradado de uma cidade do Texas, onde convive com mulheres que apanham do marido, sexo pago e outros.

Essa petição circula há décadas pela web – em 1985, primeira ocorrência de que encontrei registro, acumulou um milhão de assinaturas, só nos Estados Unidos. Gerou protestos do movimento gay, assim como de entidades de defesa da liberdade de expressão. E, a cada cinco ou seis anos, reaparece.

O que me fez procurar informações foram justamente as palavras “aberração” e “repugnante” – sinais de que, no contexto, algo subjaz àquilo que o texto diz dizer. Uma leitura mais atenta alerta para a conexão imediata que se faz entre essas duas palavras e as relações homossexuais (supostamente) mantidas por Jesus com seus discípulos. São as relações homossexuais que se pretendem aberração repugnante.

Nenhum de nós está a salvo do engano, como é óbvio; dependemos do nosso repertório, o que inclui nossas experiências de vida, a religião que professamos (ou não), os livros que lemos e os filmes que vemos, as conversas que temos, as viagens que fazemos e, em muito larga escala, as escolas que frequentamos – escolas que com urgência precisam voltar-se para a construção da observação atenta, do discernimento autônomo e da capacidade de nos fortalecermos solidariamente no encontro com o outro.