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26/02/2014

Forma e sentido

Melhor que pensar é sentir. E melhor que compensar é consentir. Melhor do que pensar o que o outro pensa é sentir o que ele sente. Gosto, demais da conta como diz minha amiga Valéria, quando as palavras se encaixam dentro de mim em forma e sentido. E gosto de sentir com o que o outro sente. E, portanto, consinto: tanto faz que pensemos igual ou diferente. Ô sossego.

As palavras têm caprichos: pensa-se sobre elas, e elas ficam mudas, trocistas. Ocupamo-nos de outras coisas, distraídos como borboletas, e elas correm ao nosso encontro, querem contar-nos segredos. Não porque antes não quisessem: nós é que não as abordamos como elas necessitam. Leveza, abertura e sorriso: é disso que as palavras precisam para entrarem dentro de nós e comporem forma e sentido.

Tudo isso a troco do que, pensará você. Porque fiquei pensando um tempo na palavra espiritualidade, surgida a meio de uma conversa gostosa como banheira perfumada. Pensei na sua morfologia, esse ser substantivo que se ergue do raso das coisas para afirmar-se existente. Pensei naquilo que dela dizem os dicionários: qualidade ou condição do que é espiritual. E parei de pensar, porque a nada me conduzia. E senti a tal conversa, mais do que a ouvi.

As palavras precisam da nossa existência mais humana. Daquelas qualidades que se encontram no lobo frontal, como escreveria um neurocientista. As que fizeram Jung dizer "Eu não preciso acreditar em Deus. Eu sei". As que por causa dos gregos nós chamamos de entusiasmo: en-theos, o Deus dentro. As que fazem Leonardo Boff escrever que "é o saber-se pertencente a algo maior". E as que reverbera Daniel Bohm, discípulo querido de Einstein, quando fala da existência de uma "ordem maior subjacente à ordem sensível". São aquelas qualidades em nós que nos humanizam (e que Antônio Cândido diz ser a arte), é aquilo que nos retira do limbo do mundo, do limbo de nós mesmos, e nos estende novos horizontes, possibilidades, visões, encontros. A tal da espiritualidade. Por isso difícil pensá-la e mais tranquilo senti-la. Ou consenti-la.

Freud considerava a religião uma neurose coletiva, uma projeção do complexo pai/mãe num "Pai maior". Uma forma também de evitar psicoses: a neurose ilude, mas permite que se viva. Do ruim, o menos pior, ou algo assim. Os mistérios religiosos são por definição caminhos grupais delimitados por códigos de conduta restritos e precisos, conjuntos de rituais e crenças estabelecidos dentro de instituições e organizações. Igrejas, religiões: sobre a espiritualidade não sei o que Freud pensava e arrisco errar, mas creio que foi Jung quem lhe dedicou tempo e pensamento, quem descortinou por trás da existência humana essa sobre-existência, essa transcendência a que chamou (erro de novo, talvez) espiritualidade. Coisa do espírito, dessa nossa parcela que é a que nos confere o estado de humano, e por isso dizia eu ali em cima que as palavras precisam do nosso mais humano: porque elas são puro exercício de espiritualidade, são o próprio espírito em ação. Quando deixamos, claro e óbvio como vidraça recém lavada.

Mas isso sou eu, que gosto delas e com elas me entendo. Para outros será a espiritualidade outra coisa, porque é momento e caminho individual e pessoal, uma jornada que é um estado, e não um modo de vida. Esse fio condutor que une tudo a tudo reconhece-se assim que uma mudança interna e profunda acontece. O que a prepara, à nossa mudança, é o nosso movimento, o nosso exercício de relação e reconhecimento disso que é mais que nós mesmos e que somos nós ao mesmo tempo. O novo rumo, o novo sentido são os atributos visíveis da espiritualidade.

O que pressupõe o exercício da busca, e por isso nessa conversa surgia esse atributo: espiritualidade é exercício. Sem dúvida. São passos que se dão, com um norte intuído, que a alma percebe e persegue. Às vezes, o norte não leva a canto algum. E perde-se tempo. Ou não. Porque cada caminho é caminho e cada ser é ser. E por isso é mais fácil consentir, e aproximar-se do outro pelas forças que vivem no outro lado do lobo frontal, e que ganha o nome de coração. A geografia humana não obedece aos olhos da razão.

Leio num site que atribui a Lucas, 10, 25-37 palavras que não saíram de sua pena. Mas faz sentido: "Espiritualidade é tudo que é capaz de produzir em mim uma mudança de pensamento, atitudes e conceitos, que me colocam num novo rumo e me oferecem um novo sentido para a vida". Por isso, e outra vez consentindo: como, pela graça de deus, poderia alguém dizer a um outro alguém que a sua escolha de caminho está errada? Que a sua vivência espiritual está equivocada? Que seu caminho a nada conduzirá? O exercício da dúvida, outro atributo da espiritualidade humana, freia-nos a língua, impede-nos de dizer o indizível, de julgar o injulgável. Nos caminhos do espírito, a liberdade precisa imperar serena.

E, assim como nos céus, na terra.


28/01/2014

Alheiras, Miranda do Douro e Oxóssi

Se há uma coisa que me espanta, é a maneira como as ideias se espalham e se reencontram no exercício do pensar. Agora à noite, um instante antes de tentar adormecer, pensei que escrever sobre alguma coisa haveria de fazer-me bem. Para aquietar o coração. Pus-me, por isso, a pensar em qualquer coisa que quisesse insinuar-se. A ideia de precisar escrever tornou-se imperiosa, e logo percebi que, sem escrever, não conseguiria mesmo dormir. Era de se esperar.

Mudei de lugar. Fui àquele onde a inspiração se tem notado mais presente nos últimos dias. Ando com a ideia de que a inspiração é também um fator regido pelas microgeografias de uma casa. E vem-me, sem querer, a imagem de um arco e uma flecha. Lembro-me da imagem aí ao lado, guardada há tanto tempo e à espera de ser precisa. É hoje que a uso: penso no orixá que se acabou de comemorar dia 20. Dia de Oxóssi. É ele que se aproxima quando se pinta, se escreve, se modela, se borda, se tece, se esculpe, se dança, se canta, se toca. Onde há arte, há a mão, o arco e a flecha de Oxóssi, qualidade divina da sustentação da vida. Oxóssi é o caçador arquetípico, aquele que se celebra ao redor da mesa, é a alegria, a independência. Expande-se e fortalece-se nas matas, nos ambientes virgens onde pode avançar sem constrangimentos. Os animais e as plantas são parte do seu ser, e neles a sua qualidade se reanima. Oxóssi aproxima-se de mim, invariavelmente, sob a luz de um novo aspecto do que já conheço. A partir da sua presença em mim, adquiro a capacidade de olhar com novos olhos esse terreno que se revirginou, e ressignificar a vida à minha volta. A flecha rápida e certeira de seu arco atinge-me a meio do corpo.

Essa nossa capacidade humana de ressignificar a vida é uma forma de encantamento. Ressignificamos sofrimentos e mágoas amparados na premissa de que tudo necessita transformar-se. E mesmo que muitas vezes esperemos a transformação do outro, os nossos passos fazem-nos inexoravelmente transformar a nós mesmos. Esse movimento de transformação aproxima Iansã de Oxóssi. E a alegria de Oxóssi alegra-se mais no encontro com a força direcionadora de Iansã - toda essa força criadora encontra no vento e nas tempestades de Iansã o lugar de seu direcionamento. É de se aproveitar.

Nessa minha intenção de observar os caminhos do meu pensamento sem interferir muito neles, nem sei bem como, de Oxóssi, cheguei às alheiras. Tá certo que um amigo querido publicou na internet uma fotografia saborosa de uma dupla de alheiras na brasa. Mas há algo mais.

Esse algo mais é justamente a capacidade ressignificadora. Alheiras são um tipo de enchido comum em Portugal. Parece-se com o chouriço português (que é mais uma linguiça do que um chouriço feito de sangue, lá em Portugal aliás chamado morcela), mas não é. A marca da sua nascença foi querer-se parecido com o parente. Ressignificou-se o alimento para que um povo pudesse permanecer vivo.

Da seguinte forma. Nos tempos em que os judeus precisavam converter-se ao cristianismo, uma das formas de conferir a verdade dessa conversão era aferir a existência ou não de chouriços nos fumeiros das casas dessas pessoas. Já se sabe que judeus não comem carne de porco, e que chouriços são feitos de carne de porco. Portanto, difícil um judeu comer um chouriço. E porque a fé de um povo não se remove por decreto, foi preciso ressignificar o dia a dia. Em algum momento, alguém teve a ideia de produzir um enchido que pudesse pendurar-se no fumeiro e que pudesse ser comido por quem não comia carne de porco. Nascia a alheira: um chouriço que não era chouriço, feito de carnes de frango, ou peru, ou codorna ou perdiz ou o que se encontrasse e não fosse ser chafurdante na lama. Estamos ao norte de Portugal, e muito especialmente numa região resistente, de onde brotou não só a alheira, mas também uma cidade chamada Miranda do Douro, berço da segunda língua oficial portuguesa.

(Aproveite para ressignificar o seu conceito sobre a Lusitânia: duvido, e muito, que você soubesse da existência de uma segunda língua oficial nesse país que tem menos habitantes que a cidade de São Paulo!)

Para ressignificarem a vida, e ressignificarem a sua relação com esse mundo-cão que tudo engole, os 15.000 falantes de mirandês realizaram uma série de proezas oficiais. Entre elas, a publicação de dois livros de Astérix em mirandês: uma espécie de afirmação contundente do caráter revolucionário de resistência desse pequeno grupo. Uma pequena ilha em meio à barbárie europeia. 

Existe também uma wikipedia em mirandês, a Biquipédia: http://mwl.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1igina_Percipal, e existem placas bilingues por toda a cidade de Miranda. 

Quer um exemplo de mirandês? Segue um, mas com o aviso de que vale a pena surfar um pouco pela net e descobrir a quantidade de sites nessa língua. 

Durante ls seclos XV i XVI, Pertual fui ua poténcia mundial eiquenómica, social i cultural, custituindo-se l purmeiro i l mais duradouro ampério quelonial de amplitude global. Zde la cunquista de Ceuta an 1415 até a la cessaçon de la admenistraçon de Macau, an 1999. 

Sabendo-se que Pertual significa Portugal, não será difícil entender o que está escrito. E é lá, nessa região mirandesa, que nascem as tais alheiras, as mesmas que o amigo Claret celebra na sua publicação. De uma tacada só, ressignifica-se a língua que falamos, a comida que comemos, a história que sabemos e a vida que vivemos. 

Encerrar este dia cheio de demandas com tanta ressignificação faz-me olhar para a noite que se apresenta com outros olhos, e, mais além, o dia de amanhã, com outros também renovados olhos. E meu último pensamento do dia assume a forma  a força de um desejo: que, a cada dia, a energia irresistível do vento da mudança nos atinja, permitindo que ressignifiquemos eternamente a nossa permanência amorosa uns junto aos outros.

24/01/2014

Nós, os seres cordiais

Descubro, agorinha cedo, que uma amiga querida está internada, lá do outro lado do mar. Sente-se sozinha, claro, passará o fim de semana ali mesmo, entre quatro paredes brancas, mas ainda assim me diz: "Ah, mas eu até prefiro ficar aqui, sou bem cuidada, não preciso cozinhar e as pessoas, no hospital, vêm me visitar. Semana que vem, em casa, vai ser bem diferente".

Da vontade que me deu de nadar todas essas milhas náuticas que nos separam para estar à porta da casa dela na segunda, e impedi-la de cozinhar e de ficar sozinha, fui-me rápida ao Sérgio Buarque de Hollanda. Ao seu cordial homem brasileiro. Aquele que age e reage pelo coração, passional, avesso a toda convenção ou formalismo social. A minha reação interna acho que nasce dessa cordialidade que transplantei lá das terras lusitanas para estas brasileiras, e que só fez crescer, regada e adubada prolixamente.

Exemplos há por todo lado, dessa cordialidade que nada tem de bondade, concórdia ou subserviência, como bem nos esclarece Buarque de Hollanda. O ser cordial não é bonzinho, não aperta as mãos de ninguém se a vontade é de esmurrar. O ser cordial esmurra quando seu coração diz esmurra. E beija quando o coração diz beija. E ama quando o coração diz ama. E odeia quando... e assim vai. Minha amiga, se aqui estivesse doente, internada ou não internada, seria visitada. Com arroubos efusivos de preocupação e desejos transformados em bombons e flores, teria a sua casa invadida por amigos e nem tanto, uma mão cheia de seres cordiais, com o coração batendo inflamado do lado de fora da pele. Poderia durar alguns dias. Ou mais. Ou nem tanto. Não se sabe, porque o coração tem razões que a razão desconhece, e assim fica difícil saber qual será a reação do próximo momento. Lá, de certa forma e pelo menos, ela tem a certeza de que ficará sozinha. Não serve de alento, minha amiga querida, mas serve para se ocupar filosofando - coisa que, já disse Caetano, parece fazer-se melhor nessa língua que você fala aí do que em outra. Sabe-se mais com o que se pode contar, porque a ação do outro está mais regida pela razão e menos pelo sentimento, e por isso oscila e se entrega menos. Há vantagens nisso, embora a minha cordialidade tenda ao querer esmurrar ao pensar assim.

Entre as vantagens, o próprio pensar. A dissecação do sentimento pela fria lente do pensar. A transformação do sentimento desordenado em sequência ordenada através da palavra. Seja escrita, seja falada: que a palavra possa nos salvar dos solavancos das relações abertas pelo tumulto do sentir cordial. Essa tranquilidade fria que emana dos seres que pensam, ainda que eles mesmos se digam atormentados pelo fluxo de pensamentos que precisam organizar: é o descordializar. 

Essas coisas que nascem do coração pertencem, diz Buarque de Hollanda, à esfera do íntimo, do familiar, do privado. O que me faz pensar no tanto que as redes sociais, esses lugares onde o público e o privado se misturam e confundem promíscuos, fazem sucesso entre nós, seres cordiais, e nos tomam horas e neurônios e sobretudo células coronárias: afundamos e emergimos de estados ora melancólicos, ora eufóricos a partir de indícios da importância que temos na vida dos outros: curtiu? não curtiu? comentou? não comentou? Uma gangorra de cordialidades mil, dificultando que pensemos na nossa própria e humana capacidade disso mesmo: pensar.

Salve o hospital com suas visitas, e salve a semana que vem sem presenças: que a vida, a todo momento, seja plena e cheia de tudo o que faz com que o coração fique onde o queria o Mestre: ao alto.


O Chico, filho do Sérgio, fala sobre o homem cordial aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=xAVRGvoy2Sk

Foto de Clara Rocha - obrigada!

14/09/2013

Entre o antes e o depois

Alguns dos últimos textos deste blog foram contaminados pela raiz daquilo que os fizeram nascer, uma quantidade um tanto acelerada de pensamentos emaranhados. Gênese e forma desdobraram-se em direções múltiplas, e cada desdobramento processou-se como novos feixes de pensamentos superpostos sobre a mesma coisa. Chamei "ideia" a essa coisa, esperando estar de fato dentro de um campo de possibilidades abertas. Quem sabe consigo apreender o gato de Schrödinger em sua condição binária.

O primeiro desdobramento andou em direção a esse gato - explico com as minhas próprias e provavelmente incompletas palavras. A proposta de Schrödinger constata que as ondas de matéria diferem das ondas eletromagnéticas e das ondas sonoras. Enquanto que a equação mecânica de Newton permite que localizemos com exatidão um objeto, a equação de Schrödinger permite que cheguemos a uma pluralidade provável de estados em que o objeto pode estar. Se não podemos observar o objeto diretamente, teremos de supor que o objeto, segundo Schrödinger, se encontra em todos os lugares em que a probabilidade diz que pode estar. Essa constatação faz emergir a ideia de superposição de estados da matéria. A experiência com o gato é uma metáfora perfeita. Coloca-se um gato e um vidro de veneno dentro de uma caixa opaca, à qual se liga um mecanismo de possibilidade de quebra ou não quebra desse vidro de veneno. Dependendo do funcionamento do ativador do mecanismo (e tudo isso muito bem explicado em http://www.youtube.com/watch?v=wRp2AEccks4&feature=youtu.be, num oferecimento do amigo Aléssio), o gato poderá estar vivo ou morto. Enquanto a caixa permanece fechada, e portanto a condição do gato alheia à minha consciência, esse gato está vivo e morto ao mesmo tempo. O meu olhar é que legitima de fato a morte ou a vida do gato. Consequentemente, o instrumento de quebra do estado de superposição (que é o estado quântico da matéria, aquele com o qual interagimos ao jogar dados, moedas, cartas) somos nós; os agentes do mecanismo da decoerência somos nós.

A catraca da bicicleta, nessa foto que meu filho Súria acaba de mandar da longínqua Brighton, mostra-me o mesmo. Tenho uma série de seis possibilidades distintas de encaixe para a corrente que não está lá; portanto, tenho como que seis correntes superpostas, invisíveis, diante dos meus olhos. Assim que uma delas se destacar das outras, e fizer uma das coroas rodar, eu passo a "saber" qual das coroas está em funcionamento. Até então, todas estavam no mesmo campo superposto de possibilidade de movimento. No momento em que a corrente "escolher" uma das coroas, quebra-se a tal da "magia quântica". O segredo deve ser permitir que a corrente mude outra vez de coroa, e se restabeleça o universo magístico no instante em que piscamos os olhos e a corrente definidora desaparece (o que me faz imediatamente pensar na Umbanda, pensamento que faço parar agora para desdobrar mais tarde; decoerência em ação).

O fato dessa foto chegar agora, justamente quando me detenho e escrevo sobre o universo da possibilidade múltipla (multiversos?), é quase que uma comprovação dessa mesma possibilidade múltipla. Como se a foto chegasse sob efeito da superposição de pensamentos que se processam, e que fazem com que o que penso aqui e o que ele pensa lá, que provavelmente nada tem a ver com o que penso aqui, possam encontrar-se num mesmo lugar e tempo. Mesmo que eu não saiba exatamente por que e em que momento essa foto saiu de seu computador para viajar até o meu, onde a vejo neste agora. E ainda que ambos, espaço e tempo, sejam virtuais, aqui dentro desta caixa iluminada na qual digito as palavras que exprimem o que penso.

Imagem: Súria Ribeiro


07/09/2013

7 de setembro

Tive a sorte de assistir dois fantásticos filmes esta semana: Hannah Arendt e Flores Raras. Em ambos coexiste o fenômeno da multiplicidade. Ambos são falados em duas línguas, porque a situação dos seus personagens promoveu essa fusão de dois sistemas linguísticos diferentes num mesmo cenário e enredo. O primeiro é falado em alemão e inglês; o segundo em inglês e português.

Funcionam perfeitamente, os pares de idiomas superpostos, sem que possamos dizer que o filme é falado em uma ou em outra língua. É falado em ambas. Sem que eu faça muita força para isso, o tema-mote da semana (superposição e decoerência) torna e retorna aos meus dedos que pensam.

Sobre Hannah Arendt (porque houve quem me dissesse, sobre o último texto, que seria bem melhor se eu explicasse quem que é o gato do Schrödinger afinal! rs): em 1961, a filósofa judia alemã naturalizada norte-americana, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel. O artigo gerado por essa cobertura deu origem a uma potente polêmica entre Hannah e a comunidade intelectual (e não só) judia. Dele nasceu também o livro "Eichmann em Jerusalém", onde Hannah cunhou o termo "a banalidade do mal" para designar aquele aspecto da natureza humana em que se age sem percepção do mal que se inflige ao outro, por não se racionalizar a própria ação e por alojá-la no campo da obediência cega às ordens superiores. Arendt, com certo horror, chega à conclusão de que Eichmann não era um monstro de crueldade, mas um sujeito terrivelmente comum e banal. Como qualquer um de nós.

Quando uma pessoa abdica da sua prerrogativa de pensar (que para Arendt é base da condição humana), perde a capacidade de poder distinguir o bem do mal. Ou seja, a sua capacidade de julgamento moral. O homem que abre mão do seu pensar, e justifica as suas ações dentro do campo da obediência cega a ordens superiores (sejam esses "superiores" qualquer instância), não é exatamente um homem, mas algo que se situa no afastamento da esfera humana.

Entre os quatro reinos, o que nos diferencia dos demais, diz-nos o também filósofo Rudolf Steiner, é o termos as mãos livres. As nossas mãos tornam-se livres quando o nosso pensar é livre. A liberdade das mãos está ligada à liberdade do pensamento. Se abdicamos de pensar em liberdade (ou seja, sem estarmos sujeitos à manipulação alheia, por exemplo), abdicamos da responsabilidade sobre as nossas ações/mãos, e abdicamos da própria condição humana. Arendt distancia-se da sua problemática individual de judia perseguida e encarcerada, exilada e asilada, para aproximar-se do sujeito Eichmann. Afasta-se, creio, de seus pré-conceitos, das suas pré-suposições, para poder efetivamente compreender quem é e que motivações teve esse homem para fazer o que fez - para poder pensar em liberdade. Esse distanciamento é condição de uma maior objetividade, e uma maior objetividade firma ideias que deixam de estar tão sujeitas aos vieses das nossas subjetividades e idiossincrasias, assim como das alheias.

Arendt foi duramente acusada, especialmente pela comunidade judia da época, de não condenar a culpa aparentemente óbvia ao monstro nazista. No filme, a cena de sua última aula é um primor de construção de pensamento - para ela, tentar compreender um homem não é perdoá-lo, mas suportá-lo naquilo que ele, de fato, é. Tentar compreender não é perdoar. Eichmann, para ela, abdicou da sua condição humana ao abdicar da capacidade de pensar em liberdade - e, consequentemente, de poder julgar a própria ação como boa ou má. Condená-lo por isso é não compreender e não compreender é não alcançar a capacidade de julgar. Eichmann é culpado de várias coisas, mas de não um crime contra a Humanidade, pois sequer tinha consciência da existência de uma Humanidade à qual a sua ação obediente se dirigia.

A banalidade do mal, percebida por Arendt na década de 60, é hoje prato do dia a dia. A nossa capacidade de pensar é refém de tantos detalhes e pequenos nadas, que somos arrastados e impelidos a não pensar sobre nada, ou a pensar de forma pasteurizada o que convém que pensemos. Pensar dentro da caixa em que precisamos caber, de preferência de forma silenciosa. Nada disso é a forma pensamento que liberta as nossas mãos. Para isso, diz Arendt, é preciso que exerçamos a nossa condição humana de seres pensantes, e que saiamos de dentro da caixa, com todos os riscos, possibilidades e probabilidades múltiplas que representa o que a própria caixa representa: ela mesma, seu exterior, seu interior e todos os seus planos paralelos. Boas coisas pra se pensar num Brasil que festeja a independência neste 7 de setembro e de uma Síria que nesse mesmo momento se arrisca a perder a sua.


"Open Box", de Gavin Turk, 2008