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15/04/2013

Questão de discurso

Se tem um assunto que me encantava na faculdade era análise de discurso. Com colegas bem afiados no assunto, era fantástico ouvi-los enquanto se enfiavam por entre os meandros e as dobras do discurso alheio, num strip-tease forçado daquilo que mesmo sem querer se entrega. Basta prestar atenção ao discurso: as palavras entregam, seja pela falta, seja pela presença, mais frequentemente pelas escolhas que se fazem sem mesmo se saber que se fazem.

A imagem ao lado tem circulado no facebook nos últimos dias. Muitos de meus amigos a compartilharam. Alguns são professores. Revoltados com os resultados da análise do Forum Econômico Mundial com relação à educação em 116 países, onde o Brasil se situa abaixo "até" do Azerbaijão (e Chade, e Suazilândia). O "até" é matéria importante, aqui. Deve parecer óbvio, penso, revoltar-se porque os azerbaijonenses tenham escolas e professores melhores que o Brasil - sejam lá eles quem forem e onde exatamente no mapa múndi se situarem. Irrelevante não saber com qual das mil facetas possíveis se reveste a expressão "qualidade de ensino". (Com tudo isso, descobri que os azerbaijanos têm uma questão séria, que é a de como se chamarem uns aos outros: são também azerbaijenses, azéris, azerbeijanos, azerbaidjaneses e azerbeijaneses. Não fosse o tal estudo do Forum, e a coceira que me deu na ponta dos dedos, eu não saberia disso.)

Abaixo da imagem, bem clarinho, está o link da matéria do Estado de São Paulo. Vejamos do que se trata, afinal. As preocupações do Forum dizem respeito à capacidade de adaptação ao mundo digital e ao ensino de ciências e matemática na educação básica. O Brasil não está só "atrás" do Azerbaijão, do Chade e da Suazilândia, mas também  de Lesoto, Tanzânia e Venezuela. Apesar dos "avanços em infraestrutura e de um certo dinamismo do setor privado", a estagnação impera, e um dos motivos é a "qualidade do sistema educacional (...) que não garante as habilidades necessárias para uma economia em rápida mudança em busca de talentos". 

Depreende-se, portanto que 1) o problema não é do governo federal (já que a educação básica é responsabilidade dos municípios e estados), como induz a imagem de Lula e Dilma; 2) nem sequer da educação pública (já que há setores privados dinamizando o cenário, e foram considerados pelo estudo); e 3) nem exatamente uma "vergonha", já que investimentos foram e são feitos, e o Brasil subiu de fato algumas posições desde a pesquisa anterior (da 66ª para a 60ª posição). Isso sem pararmos para pensar de que "Brasil" estamos falando, com estados que ainda não pagam o piso salarial sequer, situação radicalmente diferente do sul e sudeste.

Que a educação enfrenta desafios e nos deixa perplexos de segunda a sexta dentro de sala de aula, não é novidade. Em todos os lugares, isso não é Brasil: é mundo. A adaptação ao novo universo que a tecnologia abre, e à velocidade que o faz, e às mudanças que processa de um dia para o outro, é tão dramática quanto a introdução da imprensa de Gutemberg a seu tempo, respeitadas as diferenças. O mais importante, que de repente esquecemos com frequência maior que a possível, é de quem mesmo é a responsabilidade. Meus amigos professores hão de desculpar-me, mas cada aula abonada, cada aula mal preparada "porque essa molecada não aproveita nada mesmo", cada hora mal gasta em sala de aula fazendo o que já se sabe não significará nada na vida dos cidadãos sentados diante da lousa, cada encolher de ombros para o que se pode fazer mas não se faz, cada desmerecimento oferecido às famílias que "não fazem a sua parte", cada "deixa disso" quando aparece uma possibilidade de mudança, é um tiro no pé de todos nós. Nós, os professores.

Meus filhos estudaram, há pouco tempo, em escolas públicas. Das 6 aulas que teriam no seu período escolar diário, raros foram os dias em que as tiveram. As às vezes quatro "janelas" passadas no pátio sem ter nada para fazer tumultuaram seu processo pedagógico, sua crença na capacidade dos professores de ensinar e na deles de aprender. Relativizaram a importância da escola e desmotivaram a assiduidade.

Não há governo que consiga reverter esse quadro, especialmente se todos os nossos dedos forem ingenuamente apontados para ele. Uma escola de qualidade demanda compromisso e mais compromisso, e o compromisso é, no dia a dia, de seus professores e diretores e secretários e merendeiros e faxineiros, que dentro de uma escola somos todos educadores. É árduo, intenso e altamente estressante. Mal remunerado. Socialmente desprestigiado. Todos os dilemas da sociedade estão dentro da escola, latentes e prestes a explodir. Todas as desagregações, todos os desmantelamentos, todas as desigualdades, todos os pequenos e grandes infernos, todas as carências, infelicidades e sentimentos de inferioridade. Assim como todas as possibilidades.

Se olharmos para trás, a remuneração dos professores teve aumento expressivo nos últimos dez anos (16% em 2011; 22% em 2012, por exemplo). O estado decadente vem de há muito tempo, não é recente, nem provavelmente solucionável a curto prazo. A abertura do processo escolar a todos trouxe mudanças e desafios, e é preciso olhar para o passado sabendo o que se vê, fugindo de discursos tendenciosos e sensacionalistas. As infraestruturas precisam ser utilizadas com sabedoria e as decisões precisam ser compartilhadas. Livros em caixa e computadores trancados dentro de salas fazem sentido? Sistemas de ensino particulares, apostilados, uniformizantes e reducionistas, tomando quase de assalto as salas de aula da escola pública, são o caminho?

Agora, a aula de amanhã, e a de depois de amanhã, precisa fazer sentido, precisa ser o caminho e precisa ser possível. A qualquer custo. A imagem que prega "Seja diferente: não derrube. Ajude a levantar" tem quase o mesmo número de postagens que a cara da "vergonha". Os mesmos murais as exibem, as mesmas cabeças compartilhando coisas tão díspares. Como se não houvesse relação entre elas.

A matéria do Estado de São Paulo: