11/10/2009

A folha da faia

Abri neste começo de domingo um livro aqui em casa, uma edição dos sonetos camonianos que meu avô me deu, esperançoso de que os lesse quando tinha qualquer coisa em torno de oito anos de idade. Não me lembro de os ter lido então, mas depois passaram anos junto à minha cama, porque não há nada melhor do que acordar no meio da noite e ter um poema ao lado para alimentar a madrugada.

Dentre as páginas, pulou-me para a mão uma folha de faia, a faia que cresce no jardim da casa dos meus avós, plantada no dia em que meu pai nasceu, testemunha de várias infâncias, dores, descobertas, segredos. As faias são árvores altas, seres consistentes e sólidos. Mesmo não sendo daquele tipo de árvores fáceis de escalar, porque não têm galhos que acolham os primeiros pés, deixam-se subir com facilidade a partir de certo ponto, quando se ultrapassou a barreira do tronco escorregadio. Ao mesmo tempo, são voláteis e imprecisas, como me atesta, de um lado, esta folha caduca que eu devo ter recolhido do chão há uns tantos anos, e que aqui está, numa construção rendilhada característica, que me enfeitiçou boa parte dos outonos. Porém, são imorredouras quase, e é a mesma folha que me atesta isso, por outro lado, porque as suas nervuras rijas e duras ainda estão aqui, carregando em si a imaginação inteira de uma árvore que só sei que está lá, ainda de pé, porque não resisti e telefonei à minha tia Luisa, e ela me garantiu que sim, que há coisas, aninhas, que nunca mudam.

Não tenho como discutir com ela. Além de minha tia, é minha madrinha, a pessoa que antes de qualquer outra me ensinou primeiro a ouvir e depois a cantar e, entre as duas coisas, a não entender como tantas horas se passavam no relógio quando a ouvia ao piano apenas o que pareciam minutos. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque entre elas emoldura o amor que sente por mim, e eu descubro, nesta folha de faia e na voz através dos fios, que são amores como esse que me transformam nessa que sou hoje, e provavelmente por isso é que o que eu quero, quase sempre, é descobrir todas as maneiras de amar o que está à minha volta. Se ela me diz que há coisas que nunca mudam, é porque quer, na que eu sempre penso que pode ser a nossa última conversa, dizer-me que apesar de tudo, há aquilo que está na memória e não se apaga – a tua faia e o meu piano, aninhas, nunca mesmo que cortados deixarão de existir.

Não tenho como discutir com ela, e nem quero. Prefiro pôr-me à escuta no cais da memória, e descobrir de quantos momentos felizes e dolorosos se compõe a lembrança íntegra de alguém. Amorosa, mas severa, às vezes intransigente, outras pouco perceptiva; lembro-me de uma noite em que esta mesma tia Luísa me mandou dormir, num tom seco, minutos antes de uma sua amiga, cantora lírica, se dispor a cantar não me lembro exatamente o que. E eu ali, intacta na expectativa do ouvir, fui-me arrastada escadaria acima, através de uma casa de paredes de pedra gélidas e grossas, largura igual ao comprimento do meu braço de nove anos; depois escapei da cama e fiquei, tiritando de frio, no cimo da escada, escutando o piano da minha tia, a voz da amiga dela e o choro que não conseguia conter, morta de medo de que me descobrissem nessa contravenção. Mas logo correm à minha lembrança os domingos ensolarados em que me arrebatava da porta da igreja e me levava até Lisboa, intermináveis então 80 km, porque havia um concerto e eu tinha de ouvir. E ela tinha passado a sexta feira procurando ingressos onde já não os havia, porque aninhas, vais gostar tanto!

Esse poder de evocação das coisas é das sensações que mais nos salvam de nós mesmos e dos nossos momentos tristes, que só devem mesmo existir é para que as resgatemos a elas. Salvam-nos da impressão de que tudo está perdido, de que o que foi não é mais, de que estávamos errados na percepção do que nos amou, de que talvez seja mais sensato abandonar o que hoje não cabe no coração, talvez coisas do amor nunca mais... Evocar passados, tanto faz se longínquos ou tão próximos que ainda se sinta o calor da pele que se encostou à nossa, regenera os sentimentos e, se bem dosados, se os deixamos repousar ao nosso lado sem sequer lhes respirarmos em cima, dando graças de que existam, percebendo-lhes com exatidão o contorno, entregando-nos ao reviver que propiciam - não há nada mesmo que mude nunca: nem uma folha de faia dentro de um livro antigo, nem um telefonema a meio da madrugada do outro, nem a invasão de lembranças que nos reinventam a vontade de amarmos os outros como eles são, porque eles são e quando eles são, que é sempre.

09/10/2009

Verba volant, scripta manent

Talvez em consonância com o céu de hoje, acordei de um tom difuso e impreciso, do qual só em parte gosto e mais me esforço por suportar. Meu dia está assim mesmo, difusamente impreciso, e eu encontro-me aqui já há algumas horas à procura do ponto de interrogação, que desapareceu até mesmo do meu teclado. As perguntas que não queriam calar desapareceram nesse céu de agonia, não sei se transformadas em afirmações, se em negações, e aquilo que ontem eram as interrogações da vida está tão difuso hoje quanto o próprio tom do dia. Poderia ser bom, mas não é. Poder ao menos escrever um ponto de interrogação poderia salvar-me da indefinição instalada, porque escrever é a salvação do indefinido, que concretizo nestes símbolos aqui, aos quais falta hoje, lamentavelmente, aquele que mais interroga.

Foi daí que me veio, subitamente, a lembrança deste tão latino "verba volant, scripta manent". Imagino que dessa quase locução tenha derivado o ditado “palavras, leva-as o vento". Se as palavras faladas voam – verba volant -, as escritas ficam: scripta manent. Têm ainda, estas últimas, além do ficar, a grande vantagem de serem, ou poderem ser, recompostas. Até certo ponto (aquele em que passam a ser compartilhadas), permitem o retorno e a mudança dos sentimentos expressos, amanhã, se assim se quiser e tiver vontade. Vontade às vezes de voltar atrás no que se escreve, porque as coisas se alteram, o movimento muda, o olhar transforma-se - e aquilo que se escreveu ontem já se tingiu hoje de outros tons, que em nada se parecem com o presente. De certa forma, a palavra escrita não está no rol daquelas três coisas que se perdem na vida e nunca voltam atrás: ao contrário da palavra pronunciada, a escrita não é nem uma flecha lançada, nem uma oportunidade perdida. A não ser quando enviada, entregue, desdobrada diante de um outro alguém, o que tanto pode complicar quanto descomplicar a realidade.

As palavras escritas estendem-se aos nossos pés, se as decidimos abrir, com a sutileza de um grande e nascente amor; confortam-nos pela segunda, terceira, quarta, quinta vez, se nos esquecemos do conforto que tivemos ao escrevê-las; permitem-nos sonhos e divagações distantes daqueles que pronunciamos em alto e bom som e que prometem - mas não cumprem. Eu, pessoalmente, prefiro em muito as escritas às faladas, provavelmente porque as que escrevo permitem-me voltar ao meu próprio pensamento antes de decidir-me a dizê-lo, ao que pouco refleti e por pouco sai num ímpeto.

Gosto da fidelidade da inscrição precisa e palpável.

As palavras faladas atormentam-se, incorporam de forma excessiva a sua própria substância, alteram o tom sem que a cor de fundo de fato tenha mudado, e só tarde se percebe que pouco importa o que muitas vezes nem sequer se vê.

Por isso talvez o meu refúgio esteja forrado dessas escritas que me acompanham e rodeiam todos os dias, terapeutas silenciosos em franco desgosto quando acordo deste jeito assim, imprecisa, difusa, sem interrogações que me movimentem a alma. Hoje, o que eu queria mesmo era ter mais tempo pra ficar por aqui, às voltas com os caracteres da minha própria scripta manent. Seduz-me, creio, o poder entremear novos pensamentos aos sentimentos que vou acumulando na folha de papel, talvez um pequeno advérbio que provoque uma mudança na percepção do todo, e o permita dinâmica tal qual é, atingindo quem lê no centro do olho.

O peso do dia que acabou de começar diminuiria, se eu pudesse, de intensidade. Pelo peso do dia e por lhe desejar o fim, volto ao que escrevem outros, saboreando numa terceira ou quarta vez com mais calma o que li a correr, saltando de uma linha a outra com o assombro que provocam as palavras que se percebem pensadas para os próprios olhos, para cativarem a própria atenção, para acenderem no outro, que nesse momento sou eu, algo que ainda não se conhecia aceso antes dessas palavras serem entregues.

É por isso, penso, que vale tanto a pena escrever, porque o mundo se esclarece e nos esclarece, e é por isso que é tão valioso, e ao mesmo tempo tão perturbador, tão inteiro, tão arriscado e tão por tudo isso perfeito.

Perfeito, pela releitura que descobre o quanto permanecem os sentimentos que se desocupam de mim, porque lhes ofereço o espaço de uma lauda. Perfeito, porque assim todos eles sentimentos se distanciam e se guardam a si próprios por enquanto numa gaveta, enquanto não se tem a certeza de poder pronunciar por escrito um pedaço que borbulha ao alcance da mão, como o próprio sangue. E ao mesmo tempo perfeito, porque exatamente o oposto de tudo isso: porque me retoma e reaquece, naquilo que me engana e pode afinal já estar morto, mas que vive para sempre nesta memória inscrita, e pode através dela, como o cheiro das madeleines de Proust, inscrever-se de novo na retina do presente.

Se o que se escreve se constrói como um não, deixa de fazer sofrer assim que escrito; se feito de sim, lê-se através dos diminutos e em metades sorrisos que permearam as palavras enquanto se escreviam, sob este céu de hoje que, só por causa destas quase duas páginas, se transformou e é agora mais luminoso e mais leve. E, com ele, todas as verba volant, e todas as scripta manent.

01/10/2009

Ao amigo Peter

Conta-se em Timor que, antes de tudo ser o que é, nada nascia, nem crescia, nem falava, nem morria. As pessoas não envelheciam, tampouco eram geradas, o tempo não existia e, se bem me lembro, nem o espaço era algo muito concreto e palpável (talvez, justamente, porque esse seu primo Tempo não existisse). As coisas mudaram, e passaram a ser como são, no momento em que alguém, ao olhar para o céu e descobrir a lua que, semana trás semana, mudava de figura, espantou-se e, em seu espanto, esboçou uma pergunta. A pergunta lançou-nos neste caminho de morte e vida que nos acompanha desde então, e desde esse dia as crianças passaram a nascer e toda a vida a seguir o curso que lhe conhecemos hoje.

Hoje de manhã, enquanto os jovens do Ensino Médio da Aitiara cantavam, despedindo-nos a todos do nosso vizinho e amigo Peter Dauch, não pude evitar fazer-me perguntas, como essas que conseguiram tirar o mundo da sua imobilidade, uma imobilidade que repentinamente se confrontou com o tempo invadindo as nossas vidas e o espaço avolumando-se entre os que ficam e os que vão. Perguntava-me como é possível que de tão alegres possamos estar tristes, e, de tão tristes, alegres. Como é possível que as lágrimas que despedem o nosso amigo Peter sejam na realidade uma alegria por ter convivido com ele, por ter-nos sido possível observar-lhe a dedicação tranquila e amistosa a causas que não precisaria abraçar, mas abraçava, por ter-nos sido possível apreciar-lhe o gosto pelo convívio semanal com os amigos em uma stammtisch que a partir de hoje com certeza lhe sentirá a falta física. As nossas lágrimas choram-nos a nós mesmos e às saudades que pressentimos. Um pedacinho de mim chora também pelo leitor atento que perco, pela falta que me farão os comentários sinceros e amigos que teceu a alguns destes textos que envio, e que não sei se alguma vez agradeci como vejo agora que deveria ter feito.

Com tudo isto, veio-me uma vontade grande celebrar essa nossa possibilidade de estarmos juntos, essa felicidade que às vezes se traduz em lágrimas e da qual tivemos, neste tempo de convivência com o Peter, exemplos bastantes da sua necessidade e importância. Posso imaginar que nosso amigo gostasse de nos ver reunidos em sua homenagem, em volta de uma mesa, comendo alguma coisa enquanto nos lembramos dele e o carregamos para a eternidade nos nossos pensamentos. As portas para esse encontro estão abertas e qualquer alimento pode ser dividido entre todos, como uma amizade bem cimentada, que podemos compartilhar porque sabemos como multiplicá-la.

30/09/2009

Das estrelas

Às vezes é preciso muito pouco para que um encontro verdadeiro aconteça e, mesmo sabendo disso, decidimos andar em sentido contrário, fazendo com que aquilo que vinha encantadoramente em nossa direção desapareça, porque lhe viramos as costas. Até percebemos sem dificuldade onde seria necessário pisar, o que dizer, por onde ir, mas as situações adquirem vida própria e as coisas encontram caminhos que nos levam muito mais para longe do que para perto. Em raros momentos, porém, a vida parece entrar no foco de um prisma justamente no momento em que a luz do sol incide sobre ele, e aí as coisas mudam de brilho, enchem-se de novidades e bailam diante dos olhos. É ótimo quando isso acontece.

Numa destas últimas semanas encontrei uma pessoa com um mapa astral tão próximo do meu que, como diria minha avó Gloria, “até me fez impressão”. Claro que por causa disso passei a prestar-lhe o triplo da atenção, desconfio que o mesmo aconteceu do lado de lá, basicamente porque, claro, um ficou tão surpreso quanto o outro pela quantidade de coincidências zodiacais, que só vieram à tona porque o assunto era esse, as estrelas. A partir daí, e pena que o tempo foi curto, faltou pouco para que nos sentássemos a conferir oposições, trânsitos e quadraturas, e foi uma pena também que ambos não estivéssemos com os mapas na mão para maior fidedignidade.

Dirigindo de volta para casa, fiquei matutando na quantidade de seres que devem andar por aí à procura uns dos outros, confundidos e aturdidos pelas aparências estúpidas que herdamos ou fabricamos, e que nos cerceiam a liberdade do ir e vir de uns aos outros. Que mais não fosse por isso, todas as artes do espelhar a própria alma, da astrologia ao tarot, já valeriam a pena, por permitir-nos olhar para nós mesmos e para os outros com a facilitação de um elemento externo, que de certa forma nos protege do olhar invasivo do mundo – afinal, o olhar vai na direção do objeto, e não do sujeito que muitas vezes resulta que somos nós mesmos. Pode até ser que se chegue nele, sujeito, mas é por percursos transversos, enveredando por aqueles desvios que nos penetram apenas quando no fundo sutilmente os convidamos.

O volante é normalmente um bom conselheiro e um perfeito inspirador, facilitador do processo de recuperação da memória e do tecer do contato entre experiências distintas. Cheguei ao destino, depois desse roteiro, contente pela volta, e com uma quantidade razoável de novos elementos na bagagem, daquele tipo que se insinua interligado. Cheguei tarde e fui-me deitar, conscientemente bem feliz pela possibilidade de ter visto realizar-se mais uma vez um encontro mal divisado, surpreendente precisamente por isso – porque ninguém estava à sua espera e ninguém lhe barrou passagem. Se desse momento surgirão outros ou não, pouco importa, até porque os milagres não se perpetuam no tempo, mas na memória.

28/09/2009

Da tia Olga

Tia Olga era uma tia um pouco à parte do resto da família, como um satélite em órbita imprecisa, mais da idade da minha avó do que das outras tias que eu tinha. A sua pele mais escura evidenciava os antepassados angolanos que convivem na minha família, sobre os quais por muito tempo uma outra tia, Alice, irmã de meu avô, com seus olhinhos brilhantes piscando como vagalumes, fazia referência baixando a voz e dizendo “ai menina, se não fossem aqueles teus parentes daquela cor, eras um bom partido...”.

Não sei bem o quanto a história da minha tia Olga se fez graças à minha vivaz fantasia infantil, mas o fato é que descobri um pouco da sua história, e contando-a aqui pode ser que alguém da família fique muito indignado e venha a público esclarecer o mistério, ou juntar-lhe novos detalhes que melhor a expliquem, porque eu posso estar muito enganada. (Mas que não tentem convencer-me de que o mistério é ficção: uma vez perguntei ao meu primo Luís de quem afinal a tia Olga era filha e ele olhou-me horrorizado e disse-me em voz baixa “mas então tu não sabes que essa pergunta não se pode fazer?”.)

Ceifando conversas aqui e ali, consegui ao longo dos anos descobrir o seguinte:

1. que a tia Olga veio de Angola nova ainda, porque a minha avó, órfã aos 13 anos de idade, além de precisar cuidar das terras da família, descobriu a existência de Olga e mandou-a vir das suas terras africanas;

2. que para além de lhe descobrir a existência, descobriu que Olga era na verdade sua quase irmã, neta do seu mesmo avô, sr. Manuel Fortunato, sujeito ao que contam bem apessoado e tomado de amores pelo chamado marítimo, ao qual obedeceu embarcando para Angola por volta de 1860, com a mulher Carolina a seu lado e outra que lhe arrebataria o coração à sua espera em Benguela; de Angola, trouxe uma filha com Carolina, Maria Luísa; lá, deixou uma outra, de outra cor, que tornar-se-ia anos mais tarde mãe de Olga;

3. que a tia Olga chegou e foi adotada pela minha avó – o que não deixa de ser curioso, se levarmos em consideração que as duas tinham idade muito próxima, nenhuma em condição sequer de adotar-se a si mesma, quanto mais um outro alguém;

4. que a família do meu avô, anos mais tarde, alentejanamente desconfiada e encarnada na minha infância pela tia Alice, costumava olhar com desdém para essa mácula étnica na família de Ofélia, e se comprazia em desaprovar os natais da família ampliada, ao ponto da minha avó capitular, e tia Olga reduzir-se aos poucos à sua própria e constituída família, que foi se tornando longínqua e distante, e da qual durante muito tempo só se ouviram ecos, todos quase sempre de desgraças que ora envolviam drogas, ora má vida, ora doenças. Há muito tempo que nem os ecos eu ouço.

A morte de tia Olga alcançou-me há quase 30 anos a muitas milhas náuticas de distância, e dela saiu-me um poema que é, dos que escrevi, um dos que mais gosto, feito da memória de um verão aprendendo a costurar, ocupada com o vestido que ofereci à minha avó no seu aniversário em agosto, e com uma camisa que dei a meu pai, mas que nunca chegou a ser usada porque afinal eu desisti de lhe pregar os botões. Menos obviamente, um poema feito da incompreensão infantil daquilo que não é dito, mas que anos depois se descobre e faz doer a carne exposta como se um dardo incandescente a atingisse. Um poema feito da impossibilidade da ternura aberta, e da via de mão única dos carinhos encobertos, sob a luz do caramanchão coberto do azul da glicínia, a salvo dos olhares rancorosos da família incompreensível e dos desnortes que provocam das cores das peles.

A presença da tia Olga no meu imaginário obriga-me a olhar de frente para a minha própria e herdada mesquinhez; alerta-me, quando menos o espero, para o preconceito nosso de cada dia, e o que mais guardo da sua imagem é o sorriso cheio de incompreensão compreendida, uma sensação silenciosa de que o mundo está certo justamente porque se manifesta errado, e porque nos permite reconhecer o errado para poder viver e construir o certo.

26/09/2009

Tajine

Finalmente inaugurei a mais nova panela de casa – uma tajine grande e brilhante, presente pesado de uma viagem a Marrocos, daquele tipo que só carrega na mala quem nos quer muito bem e por isso se presta a tal incumbência incômoda. Demorei a estreá-la, e fico contente que assim tenha sido, porque desta forma tive mais uma desculpa perfeita para escapar à tortuosidade do meu atual cotidiano, e dedicar-me ao que, nas palavras de Gauguin, demanda cabeça leve, espírito generoso e coração grande – cozinhar.

É interessante pensar dessa maneira, sobretudo porque, como tudo o que tem ida, tem volta, essa dedicação propicia justamente que a cabeça se torne mais leve, o espírito mais generoso e o coração adquira o tamanho que melhor lhe cai: o da ampla imensidão. Fico bem feliz, pra falar a verdade, e o princípio dessa felicidade é aquela sensação de pensar e estar com outros, sabendo que depois lhes vou entrar pela boca e passear-lhes as entranhas. Poderia soar escatológico, eu sei, mas está obviamente longe disso – esse passeio é feito de aromas e possibilidades até terapêuticas do encontro entre temperos e enzimas.

Pra missão desta noite, e como a cabeça não estava tão leve nem o espírito tão generoso, e o coração ao lado de ambos lutava por fazer-se grande, achei por bem resgatar tudo o que pudesse remeter-me às terras de origem dessa tajine. Escolhê-la a ela tem seus motivos, e certamente o das terras marroquinas serem leves, generosas e grandes é um dos principais. Por isso a música puxando pro árabe, o tempo à procura das pulseiras e dos castiçais que vieram de lá (buscas infrutíferas, no segundo caso, infelizmente), e até mesmo o lembrar-me da jelaba que era do meu pai e jazia no sótão, coitada, à espera deste meu dia de panela nova. (É por dias como estes que eu me alegro dessa atividade um tanto inconsequente de guardar coisas sem pensar nos porquês. Às vezes, carregam em si a salvação.)

Tenho a sorte de poder abrir (enfim!) os pacotes de especiarias que vieram dentro da tajine, recomendação expressa quando sugeri tal presente. Perco-me pelo olfato assim que solto as amarras dos pequenos saquinhos com cada um dos sabores que demanda o prato. O ar enche-se desses aromas fortes e marcados, a mágica completa-se e eu estou livre do meu peso, minha sovinice, minha pequenez. Ainda bem que a minha casa é cheia, e há quem chegue e espreite, e me encha de perguntas: o que é mesmo que está acontecendo, que cheiro novo é esse, qual é a invenção de hoje, quem é que você convidou pra jantar? Rio-me e respondo: ora, uns amigos, é claro, metade da razão da existência destas paredes serem do tamanho que são. Meus dias cinzentos são aqueles em que me esqueço de que me basta cozinhar para eles para aliviar toda a soturna e monocromática dor desse cotidiano que hoje, de repente, me atacou.

E, assim, cá estou à cozinha, feliz e realizada em meio a legumes, cúrcuma, canela, gengibre, alcaravia, cominho e harissa, tudo branco e liso e limpo como uma casa à beira-mar, quase que sinto a brisa oceânica dos meus primeiros anos a entrar-me pela janela. Em toda casa que habito, tenho uma espécie de fixação por lavar a louça podendo olhar o que está lá fora, como naquela primeira. Hoje, agora, enquanto lavo tudo o que usei, brinco de lembrar-me de outras janelas, e é por isso que a planta que cresce à minha frente, de repente se levanta numa onda do azul da cor do mar do meio do Atlântico. O azul avança em minha direção, e percebo que é o mesmo onde uma das minhas avós se perdeu um dia, esquecida do mundo em volta pelo tanto que a feria. Cor de horizonte infinito, talvez lhe tenha preenchido o espírito de algo que, para nós que a olhávamos de fora, não parecia nada, a não ser um vazio imenso dentro dela mesma. Talvez, apesar de tudo, aquela janela tenha sido o seu encontrar.

Essa minha avó, mais do que cozinhar, gostava de preparar a casa para a chegada dos outros, a melhor louça, as velas que queimavam devagar e sem cheiro, a toalha engomada com alfazema para acalmar os convivas, os talheres de prata rebrilhando e gastos de tão polidos, porque já eram da sua avó. Talvez por causa dela, eu me afaste decididamente dessa janela que quer me engolir, certa de que a sua maior e melhor herança é a que me faz dedicar toda a minha energia às flores que ainda jazem sob o mármore, antes da mão que as coloque no jarro, movimento que faço agora, ao lado da tajine borbulhante, ao mesmo tempo em que uma parte de mim se senta, do outro lado, à espera.

20/09/2009

Do intolerável

Passei parte da minha tarde de hoje lendo poesia em voz alta, atividade que é de longe uma das que mais me agradam, e que hoje me serviu um tanto de abrigo e outro tanto de desintoxicação. É uma sorte que o que tenho de fazer por ofício me leve a isso muitas vezes. No entanto, acrescentar a essa ação os poemas favoritos resulta numa soma estonteante que me faz soltar um suspiro no final, traduzindo a forte sensação de que tudo vale a pena. Sobretudo porque, no encontro com esses poemas, não há em volta nenhuma alma pequena, e por isso qualquer coisa deixa de ser intolerável.

Justamente: Fernando Pessoa. Por isso o suspiro. Nessas leituras de hoje, lembrei-me de alguns poemas que suscitavam grandes discussões quando eu era pequena e tinha à mesa a minha tia Teresa, com suas ideias revolucionárias pero no mucho, “porque se vierem mexer nas minhas coisas eles que se atrevam, a césar o que é de césar desde que césar não ache que é dele o que é meu”, e o meu tio Zé, que não sendo muito mais revolucionário que ela, tinha um arsenal mais vasto de leituras inflamadas e a sorte de ter podido compreender um tanto de coisas nas mil viagens que já tinha feito. Não se pense que eu não gostava de um ou de outro ou de ambos; apenas depois de anos, participando de conversas parecidas, fui reavaliando as minhas percepções da altura e encontrando-lhes outros significados e sobretudo outros motivos.

Uma dessas discussões girou durante uma época em torno da paixão que outra das minhas tias, Manuela de nome, tinha por Fernando Pessoa, enquanto que ambos os ditos revolucionários se insurgiam, num tempo em que ainda pegava mal o nacionalismo às vezes um tanto ufanista de parte do autor de “Mensagem”. Às suas ideias burguesas de produção artística juntavam-se aqueles poemas que tanto cantam, decantam e clamam pelo Quinto Império, e a pobre da minha tia Manuela, com uma verve bem mais comedida, era soterrada sob os discursos e argumentos dos dois, exaltados contra o tal Portugal que ainda não tinha se cumprido, “que patéticas as ideias desse gajo”.

O que punha fim às discussões era a minha avó avisando que meu avô tinha chegado. Ele, detestava essas invencionices modernistas, a poesia dele mirava-se no máximo num Antero de Quental. Os outros, fugiam apavorados ante a eminência de ter de lhe ouvir algum poema que ele declarava orgulhoso “este, sim, é nacionalista!”, como se isso fosse aos olhos dos demais uma grande virtude e acabasse de uma vez por todas com a discussão.

Assim, na sala, ficávamos minha avó, eu, e às vezes meu tio Fernando, de profissão arquiteto, a vida inteira enrolando indolentemente mechas de cabelo entre os dedos, com o cachimbo que a minha avó execrava tanto quanto a indolência dos dedos - mas aguentava, em nome do que se pretendia a boa convivência entre diferentes, mesmo diante da obviedade de ter de tolerar o intolerável. Foi daqui, do intolerável, que eu parti ali no começo do texto, na tentativa de conseguir lidar com a sensação de intolerável cansaço que se apoderou de mim hoje à tarde, e que eu vim resolver aqui entre os livros, tentando refugiar-me dessa exaustão de mim mesma.

A poesia, escrevo para poder lembrar-me da próxima vez, permite-me o tolerar dos meus lados mais intoleráveis, aqueles que aguento única e exclusivamente porque sei muito bem que me pertencem, mesmo que às vezes tente imaginá-los distantes, ou queimá-los em fogueiras ritualísticas que consigam diminuir um pouco essa sensação de intolerabilidade. Mesmo não desaparecendo, poder subtrair-lhe o raio de ação ou criar-lhe um pouco de distância - às vezes, é um alívio.

Uma boa noite.

07/09/2009

Finis terrae

Temo que existam algumas coisas que, no processo de se metamorfosearem antiguidades, se tornem obsoletas e venham a fazer falta no futuro. Por exemplo: caixas e gavetas cheias de fotografias que todos pretendemos organizar um dia em metódicos álbuns, para poder folheá-los velhice afora. Num futuro não mais longínquo do que esse da minha provável velhice, imagino que as pessoas se dediquem a esse tipo de arqueologia de forma digital, o que, convenhamos, tirará à atividade, além do pó, doses consideráveis de um recuperar da memória perpetuado pelo tato. Isso, sem levar em conta a vantagem de que os vírus das minhas caixas não conseguem deletar por completo as fotos, e os virtuais o farão.

Hoje de manhã, obedecendo ao efeito costumeiro de, ao ter muito o que fazer, decidir-me pela atividade mais inócua e desnecessária (à primeira e descuidada vista), alcei-me até o que se pretendeu um dia ser mezanino e se transformou em depósito de coisas como molduras quebradas, papel que algum dia a gráfica usará, xícaras e bules desirmanados, roupas de bebês que um dia já ocuparam o sótão da minha avó, livros e livros que não encontram seu espaço nas já entulhadas prateleiras, coisinhas que não me decido a jogar fora porque “acho que um dia ainda vou usar isso...”. Foi relativamente fácil achar as caixas das fotos, e mais ainda despender horas e horas em espalhar as tais pelo chão, para depois recolocá-las a todas de novo dentro das mesmas caixas, em ordem diferente, é claro.

Esse projeto de mezanino é na verdade um básico sótão a quem alguém um dia quis batizar de maneira pomposa, e como passei importantes horas da minha infância e adolescência refugiada nesses altos lugares, acho bem agradável que o da minha atual casa possa um dia propiciar a alguém o mesmo tipo de descobertas. Deve ser por isso que se encontre de tudo nesse lugar sombrio e empoeirado (o da minha avó era também úmido), dividido sem maiores problemas com alguns morcegos. Entre as fotos, havia algumas justamente do sótão da minha avó, caretas do meu primo Luís ao encontrar a coleção de chapéus de uma das nossas tias avós.

Lugares assim têm uma colossal capacidade de me resgatarem de mim mesma quando me afundo no que não posso resolver, às vezes sequer entender. Afinal de contas (pus-me a pensar ao desfolhar fotos e fotos de pessoas e horas submersas no passado), tudo passa mesmo, pena que nem sempre existam máquinas fotográficas por perto para estarmos mais tarde garantidos da finitude das coisas. Foi nessa hora que me veio parar às mãos esta foto aqui do Finisterra – o ponto mais ocidental da Europa, onde tantas vezes estive acampada. O ponto onde a terra acaba – finis terrae.

Assim que encontro essa foto, lembro-me do dia que não deixou de ser alegre por ser bordado de despedidas; reparo que a muitos que estão imobilizados na imagem nunca mais os vi, e de repente é essa foto, que encontrei porque nem me lembrava da sua existência, e que veio esgueirando-se por entre as outras até encontrar as pontas dos meus dedos, que me desperta essa cálida sensação de fim de tudo, quer queiramos, quer não. Basta-me agora encaixotar as coisas passadas para me perceber reimaginada, porque o que me incendiava, descubro, terminou, ainda que eu não tenha me preparado para os tons de cinza que se desacostumaram das minhas retinas nos últimos meses.

Os sentimentos que se despedem seguram a escada por onde desço desse sótão cheio de imagens e pessoas que deixo no passado. Guardadas onde só se vai muito de vez em quando, estão a salvo do meu próprio fim, e eu sei que hoje, dentro daquelas caixas, há mais coisas guardadas do que havia quando amanheceu, ainda que não sejam feitas de coisas visíveis, porque nem sempre o que nos atinge é feito de gestos que possam suportar-se a si mesmos em instantâneas fotografias.

02/09/2009

Das medidas do tempo

Tenho recebido umas estranhas criaturas no meio das minhas noites, vindas do mundo antigo, todas elas aparentadas com aquilo que nós chamamos de “tempo”. Primeiro foi Chronos, advertindo-me de alguma coisa que na altura só entendi parcialmente, talvez porque me chegou sozinho, ou talvez porque não lhe entendi corretamente a mensagem. Agora, nas últimas semanas, chegou Kairós, em auxílio àquele seu quase-irmão na tarefa de trazer à minha superfície o que me movimenta as entranhas. (É pena que às vezes as entranhas entendam bastar-se a si mesmas, como se estivessem destacadas do nosso universo completo, fossem seres autônomos num projeto ilusório do próprio corpo. É pena, porque há coisas que as entranhas ainda sabem e o resto de nós já esqueceu. Mas não era sobre isso que eu queria escrever, e sim sobre esses meus visitantes...)

Com a visita onírica de Chronos tinha eu concluído algumas coisas sobre o uso equânime do tempo. No caso, o meu tempo, porque pensei que a mensagem fosse pra mim. Dizia-me ele em sonhos que, embora fosse eu a bater em sua porta, era ele que vinha buscar o que lhe pertencia. Confesso que o sonho me perturbou um tanto, sobretudo porque se repetiu, com detalhes que eu própria devo ter lhe acrescentado ao longo dos dias, para mantê-lo aceso e consciente.

Kairós veio trazer-me notícias de outro lado, e fazer-me entender com mais clareza (ou crueza) a mensagem de seu predecessor, que me falava da sequência do tempo e do seu estender-se modular. A necessidade da linha que liga o passado (aquele que se insinua muito mais antigo do que a memória desta infância) ao presente, e este ao futuro, permaneceu nítida durante vários meses, sem que conseguisse eu atinar com os porquês de alguns detalhes. Kairós libertou-me do andar em voltas infrutíferas em torno desse tempo dos homens, que tantas vezes se desentende do nosso tempo interno, ou da sua (nossa) percepção. Com Kairós sobreveio-me o tempo do momento certo e oportuno, que intuitivamente sabemos, mas esquecemos. Essa indeterminação ausente em Chronos, substância ativa na presença de Kairós, alivia-me do som do tique-taque implacável, reduz o poder destrutivo da parte pânico das minhas insônias, mesmo que seja a sua exata e retilínea percepção que tenha me mantido acordada durante as últimas horas.

Com Chronos aprendo a medir-me face ao mundo, sei do percurso preciso, da lógica que faz com que as horas e os minutos se sucedam nos ponteiros do meu relógio. Mantenho o olho no semáforo, a mão ao alcance da agenda, as tabelas em que divido os meus dias distribuídas ao longo da semana, cada pessoa a quem pertenço e me pertence claramente à minha frente.

Com Kairós, mais do que medir-me, entrego-me; não vejo percurso a não ser um qualquer difuso, feito de pontos de luz, que não se sucedem e apenas acontecem, com a beleza singular do que lhes é particular. Fecho os olhos e os ouvidos ao ruído incessante da estrada que ouço ao longe, a minha agenda interna comanda a realidade, e não há tabelas, nem semanas, nem dias, muito menos pessoas que não se pertençam. Só o tempo em que o importante não é urgente, e efetivamente acontece.

Lanço mão desse tempo dividido em dois para somar-me por dentro. Não gosto de viver às metades, até porque gosto de fazer coro com aquele que diz que “metade de mim é amor, e a outra metade também”. Talvez por isso o meu último movimento desta madrugada arranque da minha parede imóvel todas as listas de “a fazer” e “feito” que se acumulam à minha frente, com o poder que eu lhes conferi de me medirem por todos os lados, e me impedirem de ser aquilo que devo ser, no tempo em que devo acontecer.