Enfim: amanheci lembrando-me de um trecho de um poema de Ana Cristina (sentir separado dentre os dentes/um filete de sangue/nas gengivas) e fui à procura do início, porque esse é apenas seu fim. Não tenho nenhum de seus livros, mas tenho uma profusão de cópias de muitos de seus poemas, de curso aqui, curso acolá. Deu-me certo trabalho encontrar essa poesia em mente, e quando a encontro na verdade já a relembrei inteira. Descubro que essa procura fez com que achasse o que realmente preciso: outro poema, exatamente a pista que me conduz ao que quero fazer antes que chegue o novo ano. É um de seus raros sonetos (vou transcrevê-lo ali embaixo, é claro), e fala não de um ano novo, mas do sono e daquilo que devemos se o queremos. É preciso que nos dispamos, diz ela, ali, logo no primeiro verso, e eu só preciso mesmo é disso, o resto é pra me devolver a poeta, a quem amo e agradeço, mas peço licença. Do que eu preciso é só desse verbo, despir, na sua forma reflexiva: um poderoso despir-se que nos inverte o sentido natural do movimento, levando-o para dentro quando é originalmente para fora.
Descubro o que eu quero (e luto com um “preciso” que queria desajeitadamente infiltrar-se por entre estas linhas): quero despir-me do cansaço deste ano. Das suas sombras. Das suas luzes. Do que conquistei. Do que não fui capaz. De quem esteve. De quem partiu. Abrir-me em duas ou três ou quantas forem de mim necessárias para deixar sair tudo o que entrou durante este ano, e me construiu e desconstruiu por 12 meses. Talvez devesse despir-me das minhas letras. Quero esquecê-las. Meu bom amigo Llardent, editor de profissão, dizia que esquecer é publicar, e por isso aposento-as no papel, tarefa que não dói. A escrita cauteriza dores, faz escorrer destiladas, por entre os meus dedos, as letras que passearam por todos os meus órgãos, coração ao fim da lista, muitos mais ventrículos e átrios do que a anatomia física acusa. Vou preparar-me, neste tempo que resta, para as letras e as dores que virão, e para aqueles que as hão de inspirar.
Com o ato de despir-me, encontro camadas que são do começo do ano, camadas que ficaram até do ano anterior a este que se acaba, quem sabe se do outro ainda mais longe, e se amalgamaram à minha forma que quase pensei original. Retiro-as uma a uma, e antes de guardá-las, dobradas e bem seguras, nas caixas que arrumei para esse fim, olho-as por todos os lados, porque algo afinal devo aprender com cada uma delas que se fez tão frequente, para que não precise vestir-me de novo com nuvens do passado. Há algumas muito tênues. Se não estivesse tão focada nessa atividade no dia de hoje, provavelmente atravessariam o dia 31 despercebidas. Digo-lhes adeus.
Há algumas que me dizem baixinho que espere, que ainda não é hora, que nem tudo é regido por esse calendário gregoriano que nos ordena o tempo. Muda o ano, sim, mas nem tudo depende só do meu movimento, então haja calma. Há o que não posso despir, porque não posso ser deixada sem pele, em carne viva; não quero as dores do meu sangue do lado de fora do meu corpo. Mantenho essas camadas e esperarei que amadureçam, esperarei que me ajudem a retirá-las, porque sozinha é provável que doa demais.
E eu não devo, neste ano que está à porta, fazer-me doer a vida. Não devo dificultar as entradas e as saídas; enquanto me permaneça ao lado dos outros, não devo fazer doer as peles que não tenham sido retiradas. Há carne viva por baixo de nós todos, e nós todos somos feitos da mesma carne. Todos precisamos de descanso, e de sono, como Ana Cristina precisou, antes de se atirar do alto do seu prédio, porque todas as suas camadas foram-se-lhe arrancadas, ela própria repuxando uma a uma as suas dores, até não aguentar mais que tanta dor fosse só sua.
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.