17/02/2010

Da capa do livro

Neste Carnaval, além dos incríveis ensaios de bateria, do êxtase do desfile e dos encontros de almoços, jantares, cafezinhos e toda a sequência alimentícia que nos faz encontrar uns com os outros, tive a sorte de poder avançar na preparação do livro que reunirá (breve, breve!) as crônicas que há meses saem passeando por aí. Dizia eu à querida fotógrafa aqui de plantão que seria uma boa manobra mercadológica discorrer sobre o processo de formatação do tal do livro, uma crônica tentando não ser apelativa, criando assim aquela vontade de saber logo quando vai ser lançado, dar de presente quem sabe... Assim que ela se foi, recebi um email bacana de um leitor de uma crônica anterior, falando sobre o processo de coagulação para dentro do mundo físico, que lhe parecia estar ligado à intervenção no mundo que a escrita propicia – não posso discordar, quase que vejo os éteres que se coagulam entre aqui eu que escrevo e aí você que lê! Manda-me ainda uma ideia saborosa: abraços mandados virtualmente com esperança de coagulação em tempo breve. É como este livro, que vem se coagulando aos poucos, email a email.


Mesmo gostando do meio virtual, pela incrível rapidez na eliminação das distâncias e, se deixarmos, na derrubada das barreiras, é bom saber, dizem-me meus botões, que o papel vai ser impresso e a capa vai ser colorida, uma foto que cada vez que me olha diz coisas diferentes, porque estão sobrando ideias e sentimentos aqui dentro, e eu não resisto e quero dividi-los a todos - troco mil e uma mensagens, recebo palpites de além-mar na formatação, na fonte, no tamanho disto e daquilo, "porque não do outro lado", "você já pensou em inverter a ordem?". Diagramadora oficial de plantão via skype, rio eu daqui, ri-se ela de lá – não a ouço, mas sei pelos caracteres que digita o som que a sua voz faria. Gosto dessa linguagem cheia de rsrsrs, de haushausa, de hehehe, de kkkkk (ou KKKKK quando o entusiasmo é maior); gosto do sabor que ela tem, das coisas que diz e são diferentes das ditas, ouço as vozes dos meus interlocutores, seus ruídos internos, reveladores, doces, suaves; tenho saudades das que se calaram, porque lhes perdi o rumo, ou elas perderam-me a mim. E rio e sorrio e franzo o sobrolho e fico ensimesmada tudo isso ao mesmo tempo, porque as pessoas virtuais podem às vezes dizer muito mais do que as reais, e deixar-nos assim olhando pra tela, sorrindo abobadas para as frases recebidas.


Como se só isso já não bastasse, todos esses diálogos inaudíveis acontecendo, publicar demanda encontrar (de fato, carne e osso) muita gente; movimentação, discussão, encontros e desencontros, pessoas que têm ideias geniais e melhoram generosamente as dos demais. Dinheiro, claro, que a vida não é de graça e tem seu preço, e eu quero mais é pagá-lo à vista, como quer aquele poema do Ferreira Gullar. Todo um processo que faz com que o que era individual passe ao estatuto de coletivo – esta capa que me olha aqui na alternância de janelas do meu computador não é minha, não é dela que a fotografou, nem mais dela que a diagramou: passou ao estatuto de “nossa” e eu gosto bem mais que seja desta forma. É um tanto assim como esta crônica – agora que você a leu, deixou de ser minha, não passou a ser sua, mas é nossa. E o que é nosso, na imensa maioria das vezes, é mais e vale mais a pena.


10/02/2010

Cães

Ando com muita vontade de ter mais um cachorro, além do que ganhei há poucas semanas atrás. Com esse que já se desenha na minha imaginação, serão três, e eu considero que me sentirei bem melhor com esses três guardiões por perto. Sempre gostei de cachorros, não é nada demais, mas decidiram investigar-me, aqui em casa, porque a revelação de “estou com vontade de ter um pastor alemão”, a meio do almoço, fez todos pararem e me olharem espantados – “o que foi isso agora?” parecem dizer os olhos todos que aqui em casa ainda por cima via de regra se parecem.


Também não sabia, devolvi-lhes a pergunta como veio e prometi que me indagaria. Claro que começou a especulação, e logo quem o conheceu se lembrou do Argos, cachorro do meu pai, pastor alemão, que morria de medo de rojões, o que era um problema visto ser vizinho do estádio do Pacaembu. Mas não – não era do Argos, porque a lembrança nada tem a ver com o fiel companheiro do Ulisses que eu acho meu pai queria tornar-se. Poderia até ser (não meu pai Ulisses, mas o desejo do cachorro por esse motivo), considerando que já tive um cão chamado Camões e uma égua que atendia ao chamado de Florbela. Mas não.


Lembrei-me, na verdade, do pastor que acompanhou a minha infância e muitas das consultas a cavalo do meu avô, correndo infatigável ao seu lado. A partir de uma época, não sei por que razão, passou a viver acorrentado a um desses arames que ficam esticados e permitem que os cães vão e venham, a infelicidade traduzida numa linha reta inescapável. Eu gostava bastante dele, imagino que porque era grande e tinha olhos cor de amêndoa torrada. Ele não me tinha grandes simpatias, talvez porque eu gostasse de lhe ocupar a casinha enquanto me procuravam pela casa e eu não queria ir deitar-me. Rosnava quando tentava soltá-lo da corrente que as minhas mãos não conseguiam quebrar, e, apesar do medo, a vontade de soltá-lo fazia-me tentar uma e outra vez. E ele sempre rosnava. O cachorro era do meu avô, chamava-se Black, e quando nos mudamos de país eu senti-lhe tanto a falta quanto senti a da minha avó. Decidiram dar-me outro cão, um cocker preto a quem, no desespero, chamei de Blackie.


Anos depois, Black acolheu com imenso carinho o pequeno Blackie quando este último teve câncer, poucos meses antes de morrer. Deixava-o dormir em sua casinha enquanto ele dormitava fora, dividiam a mesma tigela de comida e passavam dia e noite um ao lado do outro, um acorrentado, o outro doente. Eu já não cabia dentro da casinha e angustiava-me ver aquele que tinha sido meu álibi para tantos passeios noturnos esvair-se em sangue ao lado de Black, que me olhava com os mesmos olhos amendoados da minha infância. Sem saber o que fazer com esse sentimento, deixei um aos cuidados do outro. Dormi melhor depois de decidir assim.


Talvez seja esse sentimento de poder entregar que me faça ter vontade de ter um pastor. Certamente terá um nome em nada parecido a todos esses que povoam o passado, porque isso de dar nomes aos bichos está se tornando uma epopeia aqui em casa, mas desconfio que deva ter olhos que olhem para meus filhos e os ajudem a aprender a entregar o que for para entregar, quando for para entregar.

01/02/2010

E o vento levou?

O processo de escrever crônicas, descobri estes dias, demanda um afastar-se consciente da questão sobre a qual se quer escrever, pois assim as coisas deixam de ser apenas e tão somente reflexões pontuais. A escrita, já se sabe, é uma forma de intervenção no mundo; pode ser que não o transforme, mas explicita posicionamento. O poeta Ivan Junqueira diz não acreditar que a poesia transforme o mundo, mas considera-a fundamental para o processo da vida humana. Enfim: sirvo-me da escrita, quantas e tantas vezes, justamente para isso – para entender melhor, e dividir meu entendimento com os outros em forma de letra.


Dividir-se com os outros reserva-nos surpresas. Às vezes somos ouvidos, outras (ó glória!) compreendidos. Os outros ouvem, compreendem e devolvem-nos pedaços que perdemos ao nos olharmos no espelho. Junto as duas coisas para chegar ao tema desta crônica: a necessidade de enviar para longe aquilo de que quero falar, e ao mesmo tempo dividir-me a ponto de ser ouvida, quem sabe ó céus compreendida.


Sendo assim, empreendo o movimento de afastamento do assunto que me ocupa hoje e, afastando-me, descubro em mim a possibilidade de que aquilo que pareceu, à primeira vista, a negação do direito de se dizer, tenha sido algo bem diferente: uma rajada forte, um esticão súbito, seguido de um vento alucinante que tenha arrancado para longe a faixa que constatava, em meio ao cenário lamentável em que se transformaram as nossas ruas demetrianas, que “asfalto faz falta”.


É claro, penso eu agora, que nunca algum dos meus vizinhos, pessoas que se prezam pelo respeito à manifestação do outro, pessoas que querem nortear-se por ideais elevados que permitam que cada um seja quem seja (em liberdade, como postula aquele que invocamos diuturnamente para nossa inspiração), arrancaria uma faixa que manifesta um desejo e uma opinião que, acrescentados, transcendem os limites do individual. Não deveria, penso ainda, ter imaginado que alguma destas pessoas, a quem quero bem e desejo felicidade, se ocuparia em podar não as árvores mas, prepotente e arrogante, o direito alheio à expressão de ideias. Seria lamentável se fosse diferente – todos sabemos o quanto as ideias não têm dono, e nem as pessoas.

23/01/2010

Fotografias

Perambulando por um dos corredores do hospital universitário, um dia destes, dei comigo parada diante das fotografias de uma das turmas de formandos do curso de medicina. Uma das turmas mais antigas, talvez das primeiras a inaugurar essa moda da fotografia de beca. Todos vestidos da mesma maneira, esmagadora maioria masculina. Chama a minha atenção a multiplicidade de expressões em todas essas fotos. Duas delas chamam-me mais, e detenho-me um tempo maior diante delas, parafraseando a cena do filme “Sociedade dos poetas mortos” em que o professor Keating leva a turma para o hall onde estão as fotos dos ex-alunos da escola, nos tempos em que lá estudaram. Diz que é preciso prestar-lhes atenção, porque, dali onde estão imortalizados, sussurram-lhes coisas importantes dos tempos que se foram. Essas pessoas que chamam a minha atenção também me sussurram alguma coisa, mas mesmo chegando mais perto eu não as consigo ouvir. Olho-as nos olhos, e para isso tenho de encostar a testa no vidro. E escuto, por fim - dizem que seus sonhos são maiores que o tamanho das suas fotos, maiores do que as próprias fotos, no preto e branco que lhes sobrou. Mal cabem dentro deles mesmos, olham expectantes para o futuro, perguntando-se quem os olhará depois que tiverem cumprido a sua missão. Desloco-me para as vitrines das fotos mais recentes, as becas parecidas, mas tudo mais brilhante, mais estudado, preocupações diferentes dentro dos olhos. As fotografias novas não me sussurram nada. Acho que ainda não envelheceram e por isso não sabem falar.

Umas semanas atrás, ao abrir meu email, recebi algumas fotos, fotos antigas da cidade de Lisboa. Muitos chafarizes, pessoas apinhadas à sua volta numa época em que não existiam canos. Duas delas capturam-me, e sinto mover-se dentro de mim um sentimento que não consigo definir, mas me faz lembrar dos sonhos dos formandos da medicina. Um vendedor de castanhas, na sua bicicleta, olha-me intensamente do lado de lá, parecendo orgulhoso de ser fotografado e ao mesmo tempo dono de um segredo que não pode revelar. Descubro-lhe o nome, ao canto da foto: Tomé Fonseca. Logo me lembro da história que ouvi em pequena, do vendedor de castanhas de olhos azuis e pele cor de azeitona, que encantava as raparigas que frequentavam o Largo do Rato em fins do século XIX. Um dia, vendendo calmamente as suas castanhas no início do outono lisboeta, Tomé viu-se rodeado de um magote de homens. No seu português cantado, denunciando a origem a sul, Tomé quis defender-se, mas os homens eram muitos e chegaram armados de pedras e paus. As meninas que compravam castanhas fugiram em busca de suas mães, nenhuma delas sequer se virou para o defender. De nada valeu a Tomé explicar que nada sabia da menina Constança, nem sabia que tivesse sido encontrada morta na calçada da Estrela – era dele que ela comprava castanhas todos os dias, desde que começara o outono. Como não lhe tinham valido os avisos do pai de que se mantivesse longe do cigano das castanhas, agora era com eles. E nunca mais se viu o Tomé Fonseca, o cigano das castanhas.

Outra fotografia mostra uma varina descarregando o peixe de uma traineira, atracada, deduzo, ao Cais das Colunas, o mesmo que acabou de ser restaurado, dando fim às obras do Terreiro do Paço que se arrastaram desde que eu me conheço por gente. Varinas ainda as há, continuam vendendo o peixe do Mercado da Ribeira, ali mesmo ao lado do dito cais. Já não descem das traineiras atravessando a prancha estreita e comprida, num balanço na cadência dos passos descalços, alguidar de peixe à cabeça. Manobra arriscada, essa do desembarcar o peixe - varinas eram mulheres de respeito, usavam chinelas bordadas a fio de ouro e representam a cidade de Lisboa na sua melhor forma quinhentista. Hoje, cada uma em sua barraca, continuam aos berros a vender o seu peixe. Lançam elogios aos rapazes que passam e agradam, desatam aos palavrões gritados quando alguém as chateia e não estão quietas um segundo – “Ó menina! Venha cá ver este pargo, está a querer lançar-se dentro da sua panela!”

Eu não cresci em Lisboa, mas mercado de peixe é o que mais há por todo Portugal. Dia de feira de peixe é dia de cheiro de peixe por todo lado, tudo fresco e acabado de pescar, e as mesmas varinas, que em outras cidades são as mulheres do peixe e ponto, gritam da mesma maneira. Metade do baixo calão que aprendi na infância foi com elas, enquanto a minha avó se desesperava para que saíssemos logo dali, que a minha língua segundo ela já era afiada o suficiente. Acho que, secretamente, ela gostava que eu visse como o mundo é variado, sempre ao seu lado e de mão dada, não fosse eu querer perder-me dentro dele.

Descubro, com essas fotografias que me coloriram estes dias, o quanto tudo faz parte de cada um, ainda que pouco ou nada se conheça. Pelo poder que tem de despertar o que dorme, a imagem apodera-se das nossas lembranças e distorce-as, alimenta-as, espreme-as, enovela-se pelo meio delas e obriga a que se atualizem ou, na pior (ou melhor?!) das hipóteses, que se inventem a si mesmas. É só permitir que aconteça e abrir a cortina que nos divide em possíveis impossíveis e impossíveis possíveis.

13/01/2010

Responsabilidade e autonomia dentro da geladeira

Estou a fazer um curso online com professores portugueses - e por isso mesmo o meu acento lusitano deve afirmar-se um pouco mais, a começar pela eliminação compulsória da maioria dos gerúndios! Hoje, a sugestão foi de mergulharmos as cabeças na relação entre autonomia e responsabilidade. Vem mesmo a calhar, diriam meus conterrâneos. Como tenho a favor (hoje, às vezes é contra) a diferença de fuso horário, ponho-me a pensar no assunto logo de manhã, que é quando os meus neurônios funcionam melhor – antigamente, reparo, era de noite; não sei se será da idade ou da mudança do eixo da terra, já me disseram que pode ser isso...

Parto do princípio, provavelmente óbvio, de que autonomia existe quando alguém se responsabiliza por algo – nem que seja por si próprio, garantia do “eu prometo” que antes de qualquer coisa responsabilizar-se sugere, como já dizia de forma parecida Nietzsche. Parece simples e fácil, mas na prática não é bem assim. Sou responsável pelo suprimento da minha geladeira, esta semana em que me toca ir às compras, e por isso tenho autonomia (que sempre é relativa, claro está) para enchê-la com o que eu quiser. Relativa porque estou limitada no onde comprar e no quanto comprar, a partir do que tenho dentro da carteira, do tamanho da geladeira e da quantidade de pessoas que pretendo alimentar com as escolhas que farei e as decisões que tomar. Mas tenho autonomia, e posso usá-la e usufruí-la (que são coisas distintas) porque sou responsável por essas compras, assim foi combinado, e em algum momento, se alguém tiver fome, será a mim que virá perguntar por que afinal a geladeira está vazia. E eu deverei responder, da melhor e mais honesta maneira possível, porque a responsabilidade era minha, e a autonomia para desenvolvê-la estava a meu lado.

No processo de definição da lista de compras, além de olhar para o que já existe, de maneira a não comprar o que não é preciso, devo manter em mente que, quanto mais eu pensar nos outros a quem a minha responsabilidade afetar (quem sabe não lhes pergunto o que querem comer?!), mais chances terei de exercer a minha autonomia com satisfação dupla: a minha própria e a geral da nação que habita a minha casa. Preciso responder por mim, e pelos meus atos, justificar por isso as minhas escolhas da melhor forma que possa, mas como me aconselhavam em pequena (e eu acho que vem de um trecho do Talmud) posso também me perguntar “se só respondo por mim, serei ainda eu?”.

Feitas essas considerações antes de por os pés na loja, lá fui e cá estou de volta: enchi a minha geladeira, a meio porque, confesso, entusiasmei-me por um lado e calculei mal as quantidades por outro. Estou satisfeita com as compras, assim como a minha família que agradece ter sido ouvida e não submersa nos meus apetites sazonais, que por estes dias se entusiasmam com os sucos de vegetais, que são práticos, indolores, não sujam panelas e são ricos em nutrientes, conforme atesta o livro que li nas férias.

Esta minha família, partícipe das minhas compras, tornou-se por esses caminhos minha cúmplice – combinamos juntos o que comprar, e agora abrimos a geladeira e sentimo-nos unidos e confiantes no que uns disseram e outros fizeram, num respeito mútuo que anima as almas. Pode ser que me façam responsável com confiança das próximas vezes, se não tiverem memória fraca e se eu tiver a suficiente coragem de lembrá-los de vez em quando de que “aquelas compras foram boas, não foram?”. E eu sentir-me-ei responsável, porque de alguma forma desenvolvi um sentimento de pertencimento com relação às compras que alimentarão a todos os meus e as visitas que sempre agradeço e festejo. Como as de hoje, que me agraciaram com um chá a meio da manhã, espontâneo e bem vindo, e se aproveitou do pão que comprei por sugestão de um membro da família.

Espero que a cumplicidade que criamos não lhes altere o olhar crítico, para que possam olhar para as suas escolhas, que hoje eu respeitei, e chegar à conclusão de que melhor seria que eu não as tivesse atendido. Para não parecer ingratidão, eu terei de olhar para o seu olhar e agradecer por ele, porque não há nada pior que cúmplices sem cérebro: não podemos confiar neles, porque estão cegos e surdos e não sabem por onde vão, obedecem ao vento que lhes passa mais perto. Espero que a cumplicidade que nos é tão grata não os impeça a todos eles de chegarem perto e me dizerem que é melhor que nesta semana outra pessoa se encarregue das compras; por isso, assim que me levante daqui, tratarei de reuni-los a todos para que combinemos que as regras precisam incorporar esse detalhe. E mais um: que sejamos amorosos uns com os outros e saibamos agradecer o que um fez mesmo que não o vá fazer mais, porque é melhor que outro o faça, porque o fará melhor.

Espero por fim que não se dividam entre si, e que as nossas compras possam ser assim serenas e tranquilas, com espaço na carteira e na geladeira para agradar a todos; fico feliz porque vejo um deles interessado no pedido do outro, inaugurando um diálogo que lhe possibilitará aprender mais um gosto, mais uma receita, mais um lanchinho a meio da manhã, furtado à minha vigilância que os quer a todos com fome na hora do almoço. O diálogo inaugurado produzirá novos frutos e cores, e assim ganhamos todos, sem clivagens que detonariam os laços solidários que todos os dias queremos, nesta minha família, alicerçar com solidez.

06/01/2010

Fernão Lopes e o alobairro

Dei comigo ontem à noite lendo Fernão Lopes. Sempre que se põe um pé além das cantigas dos trovadores, aparece esse senhor recém nomeado guarda mor da Torre do Tombo – ventos renascentistas o faziam escrever sobre o povo, embora se dedicasse ao registro do que faziam os reis. Atento às mudanças dos tempos, imagino que parte ativa da sua mesma engrenagem, Fernão Lopes era cronista, dando continuidade a uma profusão de escritores das vidas e dias dos reinados por boa parte da Europa, mas de um modo revolucionário, e precavido, porque com isso não perdeu o emprego. Mescla mais ou menos apurada do ímpeto historicista e do cultivo literato, dependendo de quem se tratasse, os cronistas portugueses deixaram uma abundância de registros interessantes sobre os primeiros séculos do país. Das prateleiras da Torre do Tombo que Fernão guardava naqueles idos de mil quatrocentos e alguma coisa, servem de matéria prima aos autores dos modernos romances históricos – quem gosta do gênero, e quer ler algo que acrescente, leia “A casa do pó”, de Fernando Campos.

Um excerto de Fernão Lopes aqui, outro acolá, já havia lido. Mas nunca tinha parado para ler uma das suas crônicas de ponta a ponta – escolhi uma das muitas em que assoma a vida fervilhante de Lisboa, cidade que de repente me atinge, por culpa desse homem antigo, com umas saudades líquidas, da cor e da textura das águas do Tejo. Diante delas passam os sentimentos do povo que palmilha Lisboa o dia inteiro, personagens anônimos que através da prosa acurada de Fernão, adjetivada no que há de mais preciso e exato, ganham vida e transpõem séculos, instalando-se aqui ao meu lado; quase lhes sinto o cheiro a mar violentando o rio através do estuário e os gritos enervantes das gaivotas em volta das traineiras de pesca.

Quem me fez lembrar Fernão Lopes, fazendo-me galgar as prateleiras onde o guardo, é outro cronista, mas este moderno, contemporâneo, combativo – Baptista-Bastos. Escritor e jornalista, ativo militante na Lisboa da resistência salazarista (e por isso mesmo demitido e perseguido antes de 74), publicou em 2001 um livro em que reuniu suas crônicas, todas elas sobre Lisboa. De certa forma cansativas, no dizer de quem as lê ao mesmo tempo em que eu, roubando-me o livro quando me distraio com outra coisa, depois dá-me trabalho lembrar-me de onde estava, usa uma linguagem rebuscada, que não se usa mais, e um estilo saudosista bem ao gosto do mais confesso alfacinha. Tem, no entanto, passagens bonitas e sensíveis, como a crônica que dedica à Rua da Bombarda, relembrando personagens de antes e de agora, como a família de indianos chegados de Moçambique ao fim do sonho imperialista português, e que proliferam pela rua, dando-lhe intenso colorido e nova sonoridade, talvez ressuscitando o ambiente da Lisboa dos séculos das navegações, fervilhante de pessoas e coisas e situações que pareciam de outro mundo. (Em outra destas suas crônicas, Bastos diz de um viajante de quinhentos que, ao voltar de Lisboa, teria exclamado: “Vi o mundo numa cidade”. Em outra, faz-nos água na boca, ao menos na minha que tem a sua memória, descrevendo as minúcias das tascas dos bairros antigos que se debruçam sobre o Tejo, cada uma com a sua especialidade, saladas de pimentos com sardinhas assadas, coentradas de cação, cozidos à portuguesa e jarros de vinho da pipa saltando animados de página em página.)

Na introdução a esse livro (que se intitula, diga-se de passagem, “Lisboa contada pelos dedos”), encontrei explicação para uma interrogação que me persegue há meses: porque é que, a estes textos curtos que escrevo, não os consigo guardar numa gaveta, como faço com outros mais longos, sejam contos que me satisfazem ou projetos tímidos de romances que se arrastam ao longo dos anos e aos quais não decido dar por findos? Diz o mestre Bastos que não há cronista sem jornal: “crônica é uma matéria para jornal; ninguém escreve crônicas exclusivamente destinadas a livro. Sem jornal não há cronista.” Jornal remete ao ritmo diário, à sua antecessora “jornada”, o caminho que se faz em um dia; no século XVIII, “jornal” era o pagamento de um dia de trabalho, e só no século XIX veio a significar uma publicação periódica de notícias, diretamente das terras francesas. O nosso alobairro vai se compondo, aos poucos, como jornal deste nosso bairro – dos avisos de carona aos relatos da seção policial, passando pelas às vezes quase que previsões meteorológicas, caminhamos a passos largos para a constituição efetiva de um periódico diário da Demétria, com a vantagem de sermos todos autores e leitores.

Fico mais tranquila - vinha me inquietando essa coceira no dedo, a sedutora tecla send atormentando-me em tons neon madrugadas adentro, e eu sem saber se estou atravessando os obscuros e mutantes limites do razoável. Agora, sei que obedeço aos cânones do gênero, mesmo que isso não me entusiasme em demasia, e apoio-me no que dizia o poeta: antes de subverter, entender. Tudo isso deu-me, ao menos, motivo para três coisas: reler Fernão Lopes, apresentar o Baptista-Bastos a quem aposto o desconhecia e expedir mais uma crônica, para o dia de hoje! Boa quarta-feira a todos!

02/01/2010

Palavras grandes que recriam saudades

Tive uma colega angolana (creio que no 4º ano) que chegou a Portugal logo após a Revolução dos Cravos ter se apoderado das ruas. Não vou saber agora por que mesmo é que ela e sua família chegaram tantos meses antes de Lisboa ser inundada pelo que, na altura, eram chamados de “retornados” – oriundos dos novos países tornados independentes em 1975, que pelos mais variados motivos preferiam manter a nacionalidade lusa a assumir a incerteza de uma nova nação, africana e cheia de horizontes. Incerteza por incerteza, não sei qual será a avaliação que farão hoje os atores daqueles dias, mas certamente os bairros de lata por toda Lisboa e arredores não parecem tão diferentes das cidades de caniço pela África ex-colônia dos dias de hoje.

A Glória veio de Angola, nascida em Benguela, oeste do país, e, dentre as muitas coisas que trouxe na sua bagagem, tinham grande efeito sobre nós em primeiro lugar a sua fada madrinha, que se presentificava repentinamente nas quinas do teto da sala de aula, fazendo-a gritar histérica nos momentos mais aterradores da vida escolar (as chamadas orais) e permitiam-nos dois dedos de ar fresco enquanto Dona Esp’rança a acalmava e jurava que “ali não há ninguém, menina, acalme-se lá...”. Desconfio que Glória tivesse esses acessos de visitação da sua madrinha fada quando não tinha a menor ideia do que tratavam as perguntas que estavam a ponto de lhe fazer, ou quando realmente estivesse morta de medo desse país estranho que não reconhecia as bagagens que ela trazia e a fazia refugiar-se nos braços dessa madrinha de nome impronunciável.

Disse-me, numa das raras vezes que fui até sua casa, burlando a vigilância da minha avó, que não podia mais cantar, que era o que mais gostava de fazer, porque só sabia cantar na “língua dos pretos” e tinham-na proibido de o fazer. Dizia que lhe diziam que esquecesse e se habituasse ao novo país e à nova vida, mas a mãe que mal saía da cama, o irmão desaparecido e a falta do pai que ninguém sabia ao certo onde estava, não permitiam que nada saísse da sua memória. Glória tinha saudades de tudo, do cheiro, da cor, da impressão do vento quando ia à praia e os vestidos voavam porque se aproximava uma tempestade, das viagens à ilha de São Tomé, de onde voltavam com café e cacau, da vida à beira mar com sempre sempre calor. Glória detestava a chuva miudinha e os dias gelados, a impressão de que nunca mais nada estaria quente e seco. Não sei porque, mas lembrar da Glória recria-me as saudades que nunca tive dela, como se tivesse sentido a sua falta ao longo dos últimos 30 anos. Muito raramente me lembrei dela, sequer consigo ver-lhe as feições claras na minha memória fraca, mas comove-me extraordinariamente o pouco de que me lembro.

Havia outro efeito que produzia sobre nós, que eram acessos de riso cada vez que uma palavra grande a deixava em pânico. Hoje, imagino que realmente ela sofresse, mas na altura só ríamos e ríamos e ríamos, porque o pânico dela a fazia falar coisas que ninguém entendia, na tal “língua de pretos” – provavelmente uma das variantes do umbundu que mais se fala em Angola. Era realmente estranha, e hilária, a Glória e o seu pavor de palavras grandes.

Fui lembrar-me da Glória justamente porque descobri que esse medo, que não é tão incomum, tem nome - quem tem medo de palavras grandes sofre de (pasmem!) hipopotomonstrosesquipedaliofobia – porque hipopoto significa “grande”e vem do grego; monstro, do latim, já se sabe porque não mudou nada; sesquipedali, também do latim, é ao pé da letra “palavra de um pé e meio de largura”, o que é grande realmente; e fobia, igual a medo.

A Glória, coitada, morreria de medo da palavra que fala do seu medo. (Como será mesmo que os hipopotomonstrosesquipedaliofóbicos se referem ao seu distúrbio?) Não existe maneira de descobri-la, depois de tantos anos, nem há na verdade motivo que me leve a isso, e esse impedimento e falta de motivo faz com que reveja diante dos olhos as imagens borradas de tantos que ficaram presos no passado, de onde acenam, como hoje a Glória, desesperados por se tornarem presentes e me fazerem entender que, sem eles, eu não seria quem sou, ainda que não me lembre de muitos dos seus nomes, da entonação das suas vozes ou do brilho dos seus olhos, ou até porque mesmo é que me lembro deles.

É claro que é a minha imaginação que os pinta desesperados assim; é mais provável que seja eu a procurar-me no passado em desespero, quando me parece tão difícil alimentar o presente com uma perspectiva de futuro, tudo tão enclausurado e preso dentro dos tubos finos das convenções – como aquelas que diziam, a Glória, que ela não podia cantar na língua dos seus pretos, que era, tanto quanto deles, a sua própria. Esse emaranhado de impressões de pessoas que já me foram e não me são mais, salva-me dessa agonia que deve ter sido a da Glória, talvez. As pessoas de hoje, num futuro quem sabe próximo, também se emaranharão em mim, e delas terei saudades, e por elas chorarei desconsolada por não as ver refletidas no espelho que construí, mas sabendo que com cada retalho de espelho desfeito posso construir um mosaico que reflita o mundo por onde andei.

31/12/2009

Solidus nescit ignavus metus

Uma das imensas vantagens de ir à manicure de vez em quando (ou ao dentista, ou ao pediatra, ou ao urologista, porque para o que me move aqui vai dar ao mesmo) é conseguir ler a revista Caras, tanto faz de qual ano ou mês. Basicamente graças à coluna de Deonísio da Silva, professor de não sei bem qual das universidades públicas do Rio de Janeiro, contemplado com o prêmio Casa de las Américas há alguns anos atrás. O resto da revista realmente faça-me o favor, mas a coluna de etimologia entretem-me, enquanto tento exemplarmente acabar com o terrível vício da onicofagia (aprendi com o Deonísio esse palavrão que impressiona bastante mais do que basicamente se saber que roem-se unhas...).

Diverti-me esta manhã tentando umas traduções para o latim de frases que me vieram à cabeça assim que acordei. Na verdade não foram frases, confesso, mas impressões fortes que quis transportar para este meio, e precisava de um motivo. Achei-o por entre divagações etimológicas: solidus nescit ignavus metus.

O latim é uma língua incrível, declinada no fundo de forma simples e lógica (bem no fundo, mas é o que consta...), conjugações e declinações que ajudam depois a estudar outras línguas, como o alemão. Tive um colega na faculdade que me dizia que o latim só sobrevivia porque era uma língua morta o que, convenhamos, é um bom paradoxo (ou contrasenso, dependendo da interpretação), exemplarmente latino. Meu primeiro professor de latim ensinou-me (e outros depois contestaram, mas ficou-me teimoso este ensinamento) que é melhor traduzir do e para o latim palavra por palavra. Ainda que demore mais tempo, porque depois é preciso voltar e ver se de fato confere e faz sentido, para quem lembra muito pouco das aulas de latim, com certeza é a melhor maneira.

Exemplifico, com a frase que dá título à crônica: solidus nescit ignavus metus.

Solidus é uma palavra forte e sonora, que tanto nos legou a solidez robusta de qualquer coisa que o seja (sólido), quanto os sentimentos que nos unem uns aos outros dessa mesma maneira (sólida e robusta), sentimento ao qual demos, ao longo dos anos, o nome de “solidariedade”. Portanto, nesse caso que nos ocupa, a tradução seria : “a solidariedade...”.

Nescit - boa palavra também, verbo que nada tem a ver com o adjetivo nescius, com o qual eu sempre me confundo e que constrói a expressão que meu avô usava para arrematar qualquer discussão que o irritasse e o levasse a marchar rumo à porta, levando-me consigo: “minha filha (isso era comigo): a palavras néscias, ouvidos surdos”. Nescit, portanto um verbo, significa basicamente “desconhecer”. Assim sendo: “a solidariedade desconhece...”.

Ignavus é a próxima palavra – tanto pode ser entendida como preguiçoso, quanto como indolente, ou fraco, ou covarde. Fácil constatar que sinônimos perfeitos são coisas inexistentes – qual dentre nós em dia de preguiça se sente covarde?!Ser ignavo fez parte da maldição que caiu sobre o tupi de Gonçalves Dias: Sempre o céu, como um teto incendido, /Creste e punja teus membros malditos /E oceano de pó denegrido /Seja a terra ao ignavo tupi!, e, como para o poeta romântico, a última opção parece a mais apropriada para este caso: “a solidariedade desconhece o covarde...”.

Metus, última palavra e motivo de toda esta arenga, entra na tal frase de maneira especial: “a solidariedade desconhece o medo covarde”. Foi nela, na solidariedade, que pensei hoje ao acordar, por ter testemunhado o poder que tem em si de espantar o medo (covarde ou não, julgue quem achar que pode), entre sólidas comidas, robustas bebidas e solidárias risadas. O medo evaporou-se ontem à noite, por entre o lume da dupla beberaxe galega que se preparou para esse fim, e por entre cada um dos passos que nos levaram a alguns esta noite pelas ruas do nosso bairro, que se ressente nos últimos meses do aparecimento desse espectro.

Paradoxalmente como a língua morta que sobrevive, esse espectro torna-nos companheiros e irmãos daqueles que o vivem dia trás dia, sem poderem escapar à fome , à guerra, ao desemprego, à discriminação, à insegurança de viver em um mundo que não se reconhece porque escapa o olhar em volta, aquele que retoma o espaço que pertence às boas energias da amizade e do companheirismo. Alerta, creio que não hesitaremos em, assim que a primeira flor for arrancada e antes que não possamos dizer mais nada, dizer não. Um não feito do replantar a mesma flor todos os dias, incansavelmente, um ao lado do outro compartilhando a terra, a enxada e a confiança em cada um dos dias do ano que começa amanhã.

Que todas as nossas e as alheias flores desabrochem e encham os caminhos das cores alegres de um feliz 2010.

27/12/2009

A propósito de um verso de um poema

Termino o ano lendo Ana Cristina César - daqueles poetas que, por incomodarem, se relem. Ana Cristina transborda desespero e angústia por tantos lados, é impossível ser-lhe indiferente. Dependendo do dia, parece que se nos cola, um grude que não desiste e se infiltra até não conseguirmos mais - e precisarmos ler. Gosto dessa impressão, mesmo podendo chamá-la de desagradável. É tão poderosa e potente que nos abalroa e subleva, e eu gosto de me sentir abalroada às vezes, sem perceber de onde mesmo foi que veio isso que me atingiu. Muita coisa provoca esse sentimento - poemas fazem-no com frequência, mas também sorrisos, especialmente aqueles que não sei se são exatamente sorrisos, se são olhares materializados em forma de lábios. Levo horas e por vezes dias para processá-los, mas aprendi ao menos a fazer tudo isso em silêncio e sozinha, dando tempo ao tempo, e duvido que alguém me perceba nesse movimento.

Enfim: amanheci lembrando-me de um trecho de um poema de Ana Cristina (sentir separado dentre os dentes/um filete de sangue/nas gengivas) e fui à procura do início, porque esse é apenas seu fim. Não tenho nenhum de seus livros, mas tenho uma profusão de cópias de muitos de seus poemas, de curso aqui, curso acolá. Deu-me certo trabalho encontrar essa poesia em mente, e quando a encontro na verdade já a relembrei inteira. Descubro que essa procura fez com que achasse o que realmente preciso: outro poema, exatamente a pista que me conduz ao que quero fazer antes que chegue o novo ano. É um de seus raros sonetos (vou transcrevê-lo ali embaixo, é claro), e fala não de um ano novo, mas do sono e daquilo que devemos se o queremos. É preciso que nos dispamos, diz ela, ali, logo no primeiro verso, e eu só preciso mesmo é disso, o resto é pra me devolver a poeta, a quem amo e agradeço, mas peço licença. Do que eu preciso é só desse verbo, despir, na sua forma reflexiva: um poderoso despir-se que nos inverte o sentido natural do movimento, levando-o para dentro quando é originalmente para fora.

Descubro o que eu quero (e luto com um “preciso” que queria desajeitadamente infiltrar-se por entre estas linhas): quero despir-me do cansaço deste ano. Das suas sombras. Das suas luzes. Do que conquistei. Do que não fui capaz. De quem esteve. De quem partiu. Abrir-me em duas ou três ou quantas forem de mim necessárias para deixar sair tudo o que entrou durante este ano, e me construiu e desconstruiu por 12 meses. Talvez devesse despir-me das minhas letras. Quero esquecê-las. Meu bom amigo Llardent, editor de profissão, dizia que esquecer é publicar, e por isso aposento-as no papel, tarefa que não dói. A escrita cauteriza dores, faz escorrer destiladas, por entre os meus dedos, as letras que passearam por todos os meus órgãos, coração ao fim da lista, muitos mais ventrículos e átrios do que a anatomia física acusa. Vou preparar-me, neste tempo que resta, para as letras e as dores que virão, e para aqueles que as hão de inspirar.

Com o ato de despir-me, encontro camadas que são do começo do ano, camadas que ficaram até do ano anterior a este que se acaba, quem sabe se do outro ainda mais longe, e se amalgamaram à minha forma que quase pensei original. Retiro-as uma a uma, e antes de guardá-las, dobradas e bem seguras, nas caixas que arrumei para esse fim, olho-as por todos os lados, porque algo afinal devo aprender com cada uma delas que se fez tão frequente, para que não precise vestir-me de novo com nuvens do passado. Há algumas muito tênues. Se não estivesse tão focada nessa atividade no dia de hoje, provavelmente atravessariam o dia 31 despercebidas. Digo-lhes adeus.

Há algumas que me dizem baixinho que espere, que ainda não é hora, que nem tudo é regido por esse calendário gregoriano que nos ordena o tempo. Muda o ano, sim, mas nem tudo depende só do meu movimento, então haja calma. Há o que não posso despir, porque não posso ser deixada sem pele, em carne viva; não quero as dores do meu sangue do lado de fora do meu corpo. Mantenho essas camadas e esperarei que amadureçam, esperarei que me ajudem a retirá-las, porque sozinha é provável que doa demais.

E eu não devo, neste ano que está à porta, fazer-me doer a vida. Não devo dificultar as entradas e as saídas; enquanto me permaneça ao lado dos outros, não devo fazer doer as peles que não tenham sido retiradas. Há carne viva por baixo de nós todos, e nós todos somos feitos da mesma carne. Todos precisamos de descanso, e de sono, como Ana Cristina precisou, antes de se atirar do alto do seu prédio, porque todas as suas camadas foram-se-lhe arrancadas, ela própria repuxando uma a uma as suas dores, até não aguentar mais que tanta dor fosse só sua.


Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.