21/11/2010

Do intraduzível

Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte através da palavra, fica difícil passar adiante.

Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo, indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.

Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!

Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.

No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens vestidos com as roupas dos amores perfeitos.

E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses, palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras, imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro liberto.

02/11/2010

Kwashiorkor

Ontem, em plena Amando, minha querida amiga que também é nutricionista olhou-me com a expressão mais natural do mundo (o que me leva a desconfiar que muitos farão o mesmo), mas mesmo assim passei o dia com a palavra kwashiorkor ressoando dentro da minha cabeça.  Gosto de palavras com esse som silenciante dentro da sua estrutura, parece que me remetem para a audição interna dos sentimentos que não são nomináveis. O desastre que kwashiorkor significa não é nominável. Como cheguei há anos à conclusão de que os males que afetam o corpo correspondem em muito aos que nos atingem a alma, kwashiorkor se converteu num assunto para muitas horas pensantes.

“Aquele que é deixado de lado”, em uma das línguas nacionais de Gana, dá nome a uma das doenças que mais matam na África rural e no sudeste da Ásia. Espécie de marasmo que incha em vez de secar de tão desnutrido, provoca barriga d’água, cabelos brancos em crianças de pouco mais de ano e outros desesperos. “Aquele que é deixado de lado” ataca mais primeiros filhos de mães em situação de miséria extrema e absoluta, que precisam amamentar com o músculo e o sangue não possuem o segundo filho que nasceu; passam a alimentar o primeiro, prematuramente, com o que têm: sopas de mandioca ou inhame ou arroz ou qualquer outra coisa carente da proteína e do ferro que fazem crescer e desenvolver. Enquanto os pequenos com marasmo (a outra forma de desnutrição por excelência) secam e desidratam, os que são deixados de lado incham, de tanto líquido retido.

Ao longo do dia, desloquei-me lentamente das dores atrozes do físico - também as almas podem sofrer de kwashiorkor, mesmo que não cheguem, com a obviedade que só o olho vê, às extremidades aflitivas da doença física. Algumas almas embrenham-se meses e meses pelos campos do marasmo, emagrecem na sua própria secura, até não conseguirmos lembrar se eram secas antes de secarem. Outras, num repente de algum processo não químico, são deixadas de lado, e começam a inchar, a reter todos os líquidos anímicos que se aproximam. Talvez seja a esperança (vã) de que revigorem e façam crescer, em fortalecimento e saúde. Formam-se barrigas d’água a partir do menor dos olhares, do esboço de um gesto, de qualquer intenção não concretizada nem prometida; de longe, tudo parece alimento, dilui-se qualquer raiz ressequida em água para que renda mais, mas a dureza das coisas, do caldo volátil feito de carboidrato sem ferro, evidencia-se na dificuldade de levantar a alma da cadeira em que desabou. Confunde-se uma alma cheia com uma alma inchada, e só de muito perto se percebe a diferença, às vezes.

Em tempos assim, a cicatrização é lenta e a imunidade baixa. As dores demoram a fechar-se dentro das feridas e qualquer desequilíbrio provoca febres e vermelhidões. Basta um desafio a mais, uma situação inesperada, para que o tônus se altere e o processo se acelere.

Por incrível que pareça, há vantagens do kwashiorkor sobre o marasmo: o segundo leva mais tempo a vencer-se, se é que se vence, porque almas (assim como corpos) que se entregam à lassidão e à indiferença sobrevivem com dificuldade e perdem-se dos outros; o kwashiorkor só precisa mesmo é de atenção, e como ataca os mais velhos em primeiro lugar, já encontra mais estrutura quando aparece. Já que há que sofrer, que se sofra com um horizonte de solução mais próximo, ainda que ilusório. 

16/10/2010

Entre Uche e eu

Hoje parece um daqueles dias que não querem corresponder-se comigo nesta língua que falo – por isso, talvez, meu amigo Uche venha em meu socorro. Conheço-o há poucos meses, e nosso encontro reveste-se de muitas das palavras da sua língua, o igbo, porque foi por causa dela que cheguei até seu endereço de skype. Faço-lhe imensas perguntas, tudo quero saber, e, a certo momento, Uche sugere que eu faça o curso de igbo online que um amigo dele desenvolveu. Decido parar de perguntar, talvez o aborreça, penso, e seja uma maneira educada que usa para me dispensar o resto das perguntas. Agrega que isso seria bom, claro, antes de viajar para seu país, como se fosse algo simples e óbvio de acontecer na minha vida, tanto aprender o igbo quanto ir passear à Nigéria... Continuo interessada na língua, mas já aprendê-la, não sei, o igbo é uma língua tonal, e línguas tonais são um desafio à parte, mesmo sendo maioria entre todas as que fala a humanidade. (Por exemplo, o chinês: usa a mesma construção, Wo yao mai yi bai bao, por exemplo, para dizer coisas tão distintas quanto “eu quero comprar um leopardo branco” ou “eu quero vender cem castelos”. A diferença está na entonação que se dá a cada palavra. Para nós, que fazemos parte da humanidade falante de línguas não-tonais, não é muito fácil.)

Uche vive nos Estados Unidos. Nasceu no sudeste da Nigéria, região que muitos de nós lembraremos melhor pelo nome de Biafra. Uche é o único sobrevivente de uma grande família, despedaçada pelo genocídio ímpar que presenciou. É só isso que me escreve, e eu quase posso tocar a espessura quente desse silêncio impenetrável em que ficamos. Retorno inevitavelmente às imagens que chocaram o mundo na década de 70, e me fizeram querer atravessar o estreito de Gibraltar a nado que fosse, como se tivesse o poder de mudar alguma coisa. Sei que seu silêncio me adverte do incômodo de saber que os outros sabem de nós e nos reconhecem apenas pelas atrocidades, os descalabros, as infâmias. Por isso, nada lhe digo do que me passa pelos olhos quando ele diz “Biafra”. A minha ignorância é obviamente imensa e tão densa quanto este silêncio que se fez.

A comunicação à distância é um perigo para palavras esparsas – e o Uche usa poucas palavras. Quando lhe sugiro que talvez pudéssemos conversar com câmera e microfone, ou ao menos microfone, tanta vontade tenho de ouvir a sua voz modulando os sons do igbo, diz-me que não, que não gosta que o vejam ou ouçam à distância.

Demoro para lhe responder qualquer coisa, porque também eu não gosto que me vejam à distância, antes prefiro a proximidade táctil, o calor da pele, os olhos dentro dos olhos. Preocupado com o meu silêncio, digita com lentidão, escrevendo e apagando muitas vezes, como se pensasse e pensasse e pensasse, sem saber que a máquina trai aos meus olhos o seu pensar. Aos poucos, posso ler: “se escrevemos sem nos vermos, é como se estivéssemos mais perto, tal é o poder da palavra”. E de fato é a palavra que me leva até ele e me traz a sua pessoa, que nunca verei realmente como posso ver através das palavras que escolhe, creio que algumas a medo, com receio de ser mal interpretado. Pensa em sua própria língua, imagino, parece procurar o tom correto no agreste e gutural saxônico.

O que mais me aproxima de Uche é que ele escreve pelos mesmos básicos motivos que eu: sobrevive à custa de palavras ao peso do pior dos dias, revigora-se da decepção do alheio com cada letra que desenha no espaço aberto da escrita, o único verdadeiramente livre que ocupa na vida. Descubro, através do Uche que me escreve, que é a consciência de cada letra que escrevo que me faz gostar de escrever – porque diz-se muito mais do que se diz ao falar, porque a letra que se desenha sobrevive à voz que morre, porque é um buscar da eternidade, da verdade, do outro em nós.

Ao longo dos dias, o Biafra que me habita incorporou a imagem deste Uche feito só de palavras escritas, sem som, sem imagem, experiência de língua pura ao longo de compridas e simples madrugadas. Esse meu Biafra particular ficou maior e mais luminoso, como se uma entonação diferente o emoldurasse, que não ouço com os ouvidos de sempre. Mesmo mantendo a fome, o descaso, a indiferença, a agonia lenta, em algum lugar as  coisas brilham.

22/09/2010

Ócio ósseo


Talvez todas as minhas últimas questões ósseas sejam apenas um alerta da minha necessidade de ócio. Tendo a me divertir trabalhando, o que, vistas bem as coisas, não deve estar totalmente certo. Senão, não estariam estes ossos quebrados me alentando a sentar-me diante da televisão para, ociosamente, assistir algum dos excelentes filmes com que meu companheiro cinéfilo me inunda, embora ressentido de que raramente consiga eu assistir a algum deles muito além das primeiras vinhetas. Ou me levanto, ou adormeço.

O fato é que, de tanto procurarem encontrar-me razões de todos os tipos (sofismáticas inclusive) para os males que me afligem (como diria Josephine March), decidi-me eu mesma a procurá-las, por entre o conhecimento que tenho de mim mesma, que ainda errado é o que de mais longa data se conhece sobre a minha pessoa.

Pois não consigo encontrar motivo melhor que esse do ócio. Reviso com atenção cada um dos que me foram dados: ”deve ser que você precisa parar” é o de maior ibope, rivalizando com o “você faz coisas de mais, é isso” – mas fica-me um “parar o que?” pendurado na soleira dos dentes, e não consigo mesmo decidir sobre o que se acha que deva parar em mim afinal. Será essa propulsão louca de querer ser e estar o que sou? Essa dificuldade escorpiana que a cada ano mais se fortalece de não conseguir abstrair as coisas que chegaram ao fim, mas ainda é preciso carregar na mala? Será isso que querem que pare? Mas, como quem me avalia assim só levanta as sobrancelhas como se fosse pra lá de claro, como se só eu não percebesse o que tanto em mim deve parar, continuo como antes.

E assim sento-me aqui para dedicar-me ao melhor dos ócios: ler a esmo o que quer que seja, ouvir todas as conversas que queiram depositar-se em meus ouvidos, perceber alguém encantado com o poder do “hálito da música ou do sonho” de um Pessoa desassossegado, e incorporá-lo ao próprio discurso. Posso ter mil tarefas a cumprir, cartórios, contadores e receitas federais a visitar para resolver pendências antigas que se acumulam diante da minha porta, mas de repente meus ossos avisam, como se fossem encarnações de um stephen king dentro de mim, que “os monstros e os fantasmas vivem dentro de nós e de vez em quando eles ganham”.

Vive dentro de meus ossos uma voz que me alerta, e que apenas eu ouço. O que os outros pensem, o que os outros digam, é preciso que se saiba que são reflexos do movimento do coração. Doem, mas como me disseram ontem, o que mais dói são os ossos. Por isso, decidi dar-lhes ouvidos.

20/09/2010

Os sésseis

Séssil é um animal que não se movimenta por livre vontade, contrariando todas as leis que eu achei conhecer – no caso, que o que caracteriza um animal, entre outras coisas, é o movimento, que já as plantas não têm. Pois os sésseis são animais e não têm liberdade de movimentos, e assim que, na semana passada, descobri que isso existia, fiquei suspensa entre o prazer de mastigar essa palavra entre os dentes – experimente em voz alta! - e a intranquilidade que me gerou imaginar algo que, devendo caracterizar-se pelo movimento, é justamente reconhecido por não o fazer.

Repeti vezes sem conta essa palavra, e outras que foram surgindo, a partir de todos e cada um dos processos que temos para formar novas palavras: sessilmente, cor-de-séssil, sessilento, sessílimo, sessilítico, aséssil... e por aí vai. Gosto disso desde pequena, e até fui recriminada várias vezes, nos bancos escolares, por inventar respostas a partir de palavras também inventadas para perguntas que eu sinceramente poderia jurar terem sido inventadas também.

Séssil chega-nos diretamente do grego – e, efetivamente, quer dizer “movimento parado”, o que no mínimo é um paradoxo. Ou não – penso com os meus botões, depois de reparar em quem, em movimento (frenético até), permanece ainda assim parado. Talvez seja uma questão de perspectiva. Distância? Não envolvimento?

Eu não gostaria de reencarnar como um séssil. Esponjas são sésseis, e eu tinha uma tia que gostava imenso de me dar esponjas naturais no Natal – coisas estranhas e duras que à simples imersão em água quase se desmanchavam, absorvendo imensas quantidades de líquido e deixando a sua aparência dura e morta para trás. A sua absorvência, apesar disso, não me dava a impressão de vida, mas de abandono e de perda de si mesma, da sua estrutura, ainda que essa tivesse sido desagradavelmente dura. Não sei até hoje o que prefiro: se a esponja seca, dura e da cor da morte, se a esponja molhada, mole e da consistência da perda. Só tenho certeza de que não me sentiria feliz reencarnando como séssil, ou seja, como esponja.

De qualquer forma, tem sido interessante olhar para o mundo em volta em termos de sésseis e não-sésseis. Pessoas sésseis, situações sésseis, sentimentos sésseis, atitudes sésseis. Como tudo se movimenta, lá está a impressão do dinamismo da vida, das suas transformações; mas como tudo está parado, sobrevém a máscara da morte, aliás a máscara, que é sempre de morte, porque rouba a vida daquilo que é – e se movimenta em movimento.

Há um momento fugaz em que tudo o que é séssil se revela – tudo o que está parado enquanto poderia movimentar-se trai-se nos momentos em que descansa. Porque o que descansa do movimento verdadeiro, precisa descansar, e aquilo que descansa do movimento parado faz de conta que descansa, e é nesse momento que se trai, porque se perde em si mesmo à procura de um sentimento que não conhece, porque não se deu ao trabalho de sentir. Porque sentimentos são movimentos que não param, a não ser que os paremos, para que eles não se atrevam a entrar em nós e desestruturar esse movimento parado que, talvez por falta de vigilância, construímos em silêncio e solidão dentro de nós mesmos.

12/09/2010

Procura-se

Estou à procura de pessoas que respirem com o mundo. Pessoas que partam do princípio de que não há coisas estabelecidas que são por definição imutáveis, a reboque de regras inquestionáveis. Pessoas que abram os olhos e os ouvidos, e que permitam que os sons e as cores dos outros entrem sem as máscaras de todo dia, que se mesclem e se enriqueçam. Pessoas que não só se disponham a respeitar as diferenças, mas que saibam que nem sempre é fácil reconhecê-las, e se esforcem por isso em fazê-lo. Pessoas para as quais importe mais a extensão do mundo possível do que os muros e as cercas que o restrinjam e tornem a vida impossível.

Estou à procura de pessoas cujos tempos e espaços sejam mutáveis e flexíveis, que se queiram, essas pessoas, que se encontrem, movidas pela vontade de conhecer mais e melhor, e não de se segmentarem em lugares, e dias, e horas, e possibilidades pequenas, momentos do se deve e do não se deve aprender, ainda. Pessoas sem cartilha, nem dogmas, nem crenças às quais se aferrem, pessoas com vontade de questionar as próprias convicções quando chamadas a isso, e que me ajudem a lembrar-me disso, caso me esqueça, o que acontece quase sempre mais de uma vez por dia.

Pessoas que se posicionem com força e veemência quando é preciso, e que saibam exercer todas as suas funções – da pedagógica à política, que vem a ser a mesma, da culinária à astronômica, que também não anda uma longe da outra – sem serem ingênuas, mas plenas de boa vontade e de amor e respeito pelo outro, nada mais que o reflexo do espelho interno.

Pessoas que sejam o que dizem ser, e que queiram ser aquilo que dizem ser quando não estão sozinhas, que não se escondam atrás da regra, do imobilismo e de todas as desculpas que impedem que se avance, que se fale, que se aposte no presente como semente do futuro, e não como depositário do passado.

Também estou à procura de pessoas que tenham se afastado perigosamente de si mesmas, decidido aventurar-se pelos caminhos de agradar a todos, sem agradar mais a si próprias. Pessoas que tenham decidido entregar nas mãos de outros, sem se saberem irresponsáveis, os rumos de si próprias, acabando por apoiar-se naquilo que outros disseram para viver a própria vida, preocupando-se mais em julgar o outro do que em observá-lo. Pessoas que tenham decidido esterilizar-se e impermeabilizar-se à dor, à agonia e à salvação alheias e que de repente se incomodem com a própria pele e sintam dentro de cada poro a inquietação do que se quer melhor. Em momentos de vida assim, bastou-me um gesto, uma palavra, um primeiro passo que cumprisse o milagre de decidir diferente tudo ali, agora, hoje. Porque nada mais espera que abramos os olhos na lentidão do sonho do éden, porque o mundo inteiro muda porque nós mudamos, porque a mudança é a essência da vida, e urge. Ou mudamos, ou nos tornamos estátuas, e estátuas ficaremos, projeção da pessoa que fomos.

Estou impregnada dessa missão louca (e possível) de encontrar todas essas pessoas, principalmente nos dias em que o milagre da alteridade, do conhecer-me através, por causa e junto do outro, faz-me esquecer que poucas coisas valem tanto quanto buscar-me dentro e fora, que é no fundo a mesma coisa, uma sobrevivência à revelia do que os nossos olhos insistem em mascarar.

31/07/2010

Ungos dos meus dedos


Tanto quanto alguns se sentam na poltrona em pleno exercício de zapping televisivo, de vez em quando invento um zapping cerebral que associa ideias aleatórias às respostas que a internet me oferece. Ideias fracas normalmente geram pesquisas fracas também, mas às vezes dou graças a deus pelas ideias fracas.

Assim que decidi finalmente que hoje é sábado, dia de descanso como me avisa meu cunhado judeu aqui ao lado, mil ideias me apareceram, tudo aquilo em que não tive tempo de pensar ao longo da semana. Preciso aproveitar as últimas horas para fazer isso que o Shabbat manda – nada, e ainda deitar cedo pra variar também o ritmo da semana.

Mas nada, nada, nada... também não dá. Já que esta semana aliei duas das minhas preciosas horas à leitura de trabalhos escolares num salão de manicure, pus-me a olhar para as minhas mãos, convencidas que foram pela Vera-manicure-terapeuta-de-quem-rói-unhas a voltarem para casa vermelhas. Esse vermelho tem o efeito incrível de me lembrar dos meus propósitos anti-onicofágicos, agradeço-lhe por isso, mas não há como não me sentir usando as mãos de outro alguém, e pergunto-me de onde terá vindo esse hábito de pintar as unhas.

Resultado previsível: China há milhares de anos, depois Egito há muitos também, Cleopatra usava-as vermelhas e aparentemente mandava executar quem se atrevesse ao mesmo, sinal de distinção social e por aí vai. O que eu não sabia era das suculentas descobertas sonoras que eu faria assim que desse com a lista de línguas para as quais a palavra “unha” podia ser traduzida. E descubro um soturno “ungo”, um amanhecer em “azazkal”, uma brincadeira infantil em “nenig”, um susto noturno em “köröm", uma variante de tempero em “dirnaqlar”, um sussurro de amante em “küüs”. Descubro ainda um “kynsi” que soa a pergunta, um “Нокт” que não consigo fazer soar, um “指甲子”que quem me dera saber dizer. E devolvo-me em paz às “onglas”, “unglas”, “unghias”, “ongles” e “uñas”, repentinamente agradecida aos romanos invasores pelas suas invasões.


Todas as unhas do mundo flutuam agora à minha volta, e eu já posso fazer nada de olhos fechados, ouvindo-me pronunciar cada uma delas, inventando-lhes seus desertos, suas dunas, suas praças envidraçadas, seus campos a brilhar ao sol, suas praias de areias agrestes, suas ruas íngremes escondendo segredos, todas as paisagens do mundo para todas as unhas do planeta, pintadas ou por pintar. Agora, sim, fazer nada vai valer tudo.

27/07/2010

Coisas de internet

Vi-me, outro dia, em meio a uma discussão interessante sobre as virtudes e os defeitos da internet. Não abri a boca, que a discussão não era minha e eu já estava com estas linhas engatilhadas, sem poder distrair-me com o mundo lá de fora, mas fui avançando pela picada que quem conversava abriu. Lembrei-me, dessa maneira estranha que têm as coisas pensadas de se lembrarem umas das outras, que uma destas terças feiras passadas tinha sido o primeiro aniversário da morte de Mario Benedetti.

Não entendi porque raios os meus neurônios tinham fabricado essa ligação, e fiquei com essa guardada num canto da mente, lembrando-me algumas vezes dessa incógnita insistente. Como não encontrei a ponta do fio, decidi terminar o livro da Agatha Christie que comecei há dias, e finalmente chegar ao ponto em que Miss Marple, entre um tricot e outro, descobre que tudo aquilo que não fazia sentido era justamente o que dava sentido à coisa toda. Razoavelmente anestesiada pela escrita de suspense (que aliás é ótima companheira de insônias persistentes), voltou-me o Mario à mente e fui buscá-lo à estante.

A tal conversa sobre as vantagens (ou desvantagens?) da internet não tinha grande preocupação em definir coisa nenhuma, ocupada que estava em basicamente poder usufruir do direito de sentar em volta de uma mesa para conversar. O tema base era a capacidade do mundo virtual de eliminar da face da terra uma quantidade razoável de tarefas mecânicas, e com elas uma profusão de profissionais que ou se desempregaram de vez ou foram criativamente engenhosos e se inventaram noutras profissões – revisores, pastups e cia. estavam no rol dos desaparecidos. As suas vozes, ainda que imperceptíveis, foram de fato sumindo, e hoje os jornais chegam-nos sem as mãos que colavam as matérias, às quais se colavam as letrinhas minúsculas corrigindo os erros que os digitadores tinham deixado escapar e os revisores tinham apanhado antes do fim. Da mão do jornalista à do leitor, muitas outras mãos, que desapareceram e se incumbiram de outras coisas.

Sei que Benedetti em algum momento, como a quase totalidade dos escritores da sua geração e de todas as que se lhe seguiram, trabalhou como jornalista, talvez exercendo por algum tempo uma dessas profissões desaparecidas. O trabalho artesanal manual com a palavra pode ser que abrisse as portas da inspiração. Justamente por ser mecânico e por liberar o território inconsciente, muito embora qualquer manual de escrita alerte logo nas primeiras páginas que não existe tal coisa “inspiração”, “musa” e suas parentes, naquela mesma linha dos “10% de inspiração, 90% de suor”. Adélia Prado, que não tem nenhuma ligação com nada disso a não ser o fato de provavelmente, como as demais pessoas da sua geração, já ter tido a sua fase de ler Agatha Christie e ser poeta como o é Benedetti, retira do cotidiano diário (não é redundância, veja bem) a sua inspiração (é ela quem diz isso, não sou eu que nego a tal história transpirante). Dos movimentos repetidos e monótonos vêm-lhe as palavras parar às mãos, e delas desabrocham os poemas que ficaram escondidos por muitos anos entre as brumas de Divinópolis, sua cidade natal.

Adélia e Benedetti vivem dessas coisas dos seus dias. Um, com a voz uruguaia embargada nas gravações que nos legou (e que a internet, na parte vantagem, coloca à disposição), subverte a dureza das ditaduras com a suave ironia de seu espírito. Junta palavras que nos fazem apenas levantar o canto dos lábios, num esboço de sorriso cúmplice. Adélia retira os pequenos e secretos desejos da vida que parece prosaica, mas não o é. Quase podemos vê-la às margens da sua cidade, em meditação profunda sobre o sentido do seu mundo e da sua vida, numa postura tão suave de levar-se a sério mas nem tanto.

A minha cabeceira divide hoje o seu espaço entre mais um romance policial, a poesia de Benedetti, o dia a dia de Adélia, e um Hesse que insiste em me frequentar, com seus personagens atormentados pelo peso de si próprios. O que mais posso querer?

24/07/2010

Fazer aniversário

Fazer aniversário é um luxo. Uma sorte. Um enigma. Uma passagem. Eu, particularmente, gosto de contar os anos que passam, gosto do sabor que fica impregnado em cada um deles, o aroma às vezes a naftalina, como os casacos de alguns de nós que só saem do armário e visitam o mundo quando faz frio. Lamentavelmente a memória me atraiçoa e custo a lembrar quando em que ano qual a data em que aquilo se deu. Quando outros me lembram, juro que não voltarei a esquecer, mas nem sempre consigo cumprir a promessa.

Hoje, 23 de julho, faria aniversário minha filha se fosse viva. Tenho há anos guardado um poema que o português David Mourão Ferreira escreveu no dia do 18º aniversário de sua filha, que nunca chegou a nascer porque quando o fez já se tinha perdido no limbo. Às portas de entrar neste mundo, deixou-se voltar ao outro lado. David gravou esse poema em um cd que o tempo (e as crianças) se encarregou de riscar, mas o registro da sua voz grave e embargada, o sibilar da baforada de cachimbo numa das pausas entre estrofes, ficaram-me nos ouvidos. Se fecho os olhos, vejo-o, envolto nas suas nuvens azuis de tabaco, os olhos postos numa filha que nunca viu.

É um poema aberto e limpo, tristemente sereno e doce, e durante todos estes anos em que conviveu comigo ali ao lado, manteve-me a chama acesa de uma data que não sei por que deveria significar alguma coisa. Antecipo este dia de hoje, este ano de hoje, há anos sem fim, pulando-os num rosário de contas transparentes umas, opacas como corvos outras. Mas esta noite é noite de lua cheia, a lua cheia de julho, a lua cheia de julho de 2010. Sem precisar de dotes extraordinários de antevisão e premonição, sei que sabia que este dia não seria como os outros, nem esta noite, nem esta lua, nem este ano. Dentro de todas as realizações e mudanças, de todas as decisões e conquistas, de todas as saudades de tantos, persiste imóvel, atenta como uma estátua grega, a imagem da minha filha hoje com 18 anos. Durante muito tempo pensei em celebrar-lhe a vida do outro lado, e deixar de lado a que não viveu aqui – mas não é verdade que não a tenha vivido, que não esteja codo a codo, como diria um espanhol com muito mais peso do que entre dois cotovelos, entre nós, o tempo todo.

Persiste imóvel e assiste. Recolhe no espaço todos os movimentos intensos daqueles que amou e a amaram, e neste dia que é de alegria, ela ri e joga a cabeça pra trás, olhando de soslaio para a felicidade de que faz parte. O irmão que agora se gradua num lado do mundo, o outro que hoje conquista sonhos sobre rodas a milhas náuticas de distância, estão esquecidos deste dia, mas a alegria com que vibram é parente daquela que semearam junto a ela e se manteve viva durante 18 anos.

Ao contrário de David, vi e abracei a minha filha vezes sem conta. Não sei o que será pior ou melhor, que quem sabe das dores é quem as sente. A falta ou a presença escassa? O nunca ter visto ou o ir perdendo a memória do que se viu? Ter impressa na pele a marca da passagem do beijo, ou imaginá-lo suspenso no ar e agarrá-lo sempre sabendo-o ilusão? Alisar a roupa que se vestiu, ou ter as palmas das mãos livres para o tecido feito de éter? Lembrar do sapato que não se comprou, ou não ter dentro essas ínfimas lamentações que fazem da vida um purgatório?

As transformações que a chegada e a partida da minha filha permitiram não têm fim, sucedem-se através dos tempos e dos anos, e é um luxo, uma sorte, um enigma, uma passagem tê-la assim tão perto, sem tristeza nem lágrima, sem peso nem desassossego, permitindo-lhe a vida naquilo que não acaba. O tempo passa e alivia os fardos de todas as árvores que somos. Dos nossos ramos caem folhas ano a ano, e só a nossa procura de sol impede que percebamos que cada folha que nos cai nos devolve à terra imortal.

Imagem: a inspiração, David Mourão Ferreira