30/03/2011

Vidros lavados

Começou com a súbita vontade que me atingiu hoje, de forma extemporânea e urgente, de limpar todas as janelas de casa. Há meses que isso não acontece – nem eu tenho essa gana sintomática, nem as mesmas são limpas. O motivo é simples, ou pelo menos a desculpa: as crianças ganharam de presente canetas de escrever em vidro, e estão todas as janelas decoradas (estavam, a bem da verdade, porque agora eu já passei por elas) com flores, fadas, borboletas, gnomos, estrelas e árvores com balanços.

Mas isso já tinha semanas e mais semanas, e o que sobrava de espaço estava tomado por teias de aranha e seus eloquentes resquícios, dedadas, marcas de bolas que se desviaram do rumo pretendido. Por isso, dispus-me a tornar todas as superfícies transparentes, desejando muito ser como a minha avó, que criava vidros imperceptíveis aos meus olhos de menina. Mas eu não sou a minha avó, e já percebo daqui, de onde estou, uns trechos embaçados.

Era já noite, quando esta vontade súbita chegou. Deixei as luzes de fora todas acesas, como se fosse dia de festa, para poder ver na contraluz os lugares em que, completamente livre de outras coisas, já vive essa minha urgente transparência.

Deixei as cortinas abertas. Gosto delas; muito, até – espécie de barreira que corta o olhar do outro e me oculta quando quero. Mas hoje deixei-as abertas, o respirar da Demétria sossegado vencendo os minutos noturnos. Cortinas diminuem a intensidade com que a luz de fora atinge o dentro, desbota as cores dos tecidos, corrói as duras madeiras de lei que fazem os móveis mais queridos desta casa. Gosto de cortinas, pela proteção, o acalanto, o ninho silencioso que criam ao redor nas noites frias.

Uns meses atrás, outra súbita urgência fez-me fazer as cortinas com que sonhei meses a fio, numa influência clara da coleção de catálogos Laura Ashley herdada. Umas, ganharam pequenas flores; devolvem-me à atmosfera da sala de uma austiniana Elizabeth em pleno Hampshire. Outras, severas, num vermelho escuro de sangue coagulado, lembram-me as da sala de Miss Marple - também ela tinha uma espaçosa janela de vidros grandes na sua sala, seu posto de observação, e também à atenta velhinha as cortinas diminuíam o tamanho da sala. A diferença é que isso era para ela um problema, e para mim é solução: tornam-na do meu tamanho, escurecem as luzes que acendo e recriam o éter de que gosto quando alguém abre o piano e toca.

Isso, na sala. Na cozinha não há cortinas – não porque se engordurem, ou sujem, mas porque as janelas olham em várias direções, e, assim, quem cozinha, descasca, tempera, lava ou seca pode olhar em volta, ver o verde que rodeia e apascenta os olhos nos intervalos da vida lá de fora. Foi pensado, tudo isso, quando nos debruçamos sob a planta desta casa. Porque, quando se cozinha, dá-se vida ao que cogita dentro, num santuário silencioso e solitário. Da cadeira da cozinha onde me sento agora, vigilante às janelas limpas e com o fogão apagado, vejo todas, de todos os lugares, e sinto-me rodeada por tudo o que já foi e tudo o que agora é, duas formas da mesma coisa, numa absurda e concreta diferença.

As janelas limpas e abertas, hoje, provocam um movimento inverso, de clareza e semelhança. Quero poder olhar para elas e através delas, ver a escuridão da noite lá fora, porque já apaguei as luzes e agora são só os reflexos azulados da noite a entrarem pelas pupilas da casa. Cheiram bem, as janelas – a limão, porque o pus na água com que as lavei, e um leve traço de álcool, para o brilho que quis perseguir mas tanto fugiu que desisti.

Não sei como estarão amanhã, mas espero que tanto elas quanto eu mantenhamos o cheiro a limpo e o jeito de quem não estranha o vento que bate, o sol que reflete, a luz que atravessa. Não corro as cortinas para impedir que os vidros fiquem sozinhos do lado de fora, entre elas e a noite que avança, sem poderem ver que eu os olho e os percebo. As estrelas que vejo no céu da minha cama brilham mais por detrás do brilho do vidro. Mas não são elas, percebo, mas o próprio vidro, que afinal consegui que brilhasse como brilhava sob as mãos da minha avó.

12/03/2011

Despedir

Despedir é verbo estranho, antigo e desafiador. Despedir só é possível quando se esgotaram em nós todas as necessidades do pedir. Quando nada em nós clama ou chama o outro, quando já não se lhe confere o lugar de alguém que está ali para estar conosco e por estar conosco. Quando se deixa de pedir, des-pede-se.

Hoje, porém, surgiu-me outra percepção dessa palavra – a de que aquilo que se despe em mim é o que permite ao outro ir. Despe(d)ir. Para mim, neste instante, essa lição de palavra me basta. Uma lição de palavra que me subtrai ao acrescentar e me transporta para dentro daquele lugar onde diz Drummond morarem as palavras em estado de dicionário: paralisadas, sem desespero, em calma, frescura, superfície intacta. É suficiente, agora à noite, que despedir seja aquilo que em nós se permite ausência – e que permite ao outro, só por isso, o seu necessário ir. E assim me desvisto nesta noite fria. Enquanto o outro vai, em direção ao que lhe pertence.

No entanto, despedir pouco tem que ver, na história do mundo dos homens, com essa percepção que correu ao meu encontro, das portas do futuro em direção ao presente. Das linhas do passado, despedir conduz ao pensamento latino, e a expetere, parente imediato do nosso verbo que diz adeus. 

Expetere é o verbo que pede, o verbo que levanta os olhos ao céu que a todos nós cobre e não suplica, mas aspira. Sob esses olhos, o ato de despir reveste-se das cores do aspirante, daquele que inala, daquele que mergulha dentro da própria dor e apenas pede que a do outro seja poupada. Apenas inspira, e nada mais.

Mas expetere tem raízes mais antigas, que se realizam com menos sons e menos letras em petere. Os mais antigos que os que pediam expetere, diziam petere,  e era assim que queriam procurar, e através da procura, desejar. E assim, nisso que hoje é um adeus e ontem era um pedido, é uns dias antes uma procura cheia de desejo. Não um desejo qualquer, mas aquele que aspira ao próprio despir para permitir a partida sem dor do outro.

A despedida conduz-nos para mais longe, porque as despedidas existem desde o nascer dos tempos, numa torrente contínua que nos envolve e às vezes trucida, implacável como é tudo o que apesar de permanece. Mas falham os registros - os homens mais antigos que os antigos ainda não precisavam escrever, e nada nos diz o que a raiz –pet provocava nos corações e nas mentes daqueles que se despediam sem dor 7000 anos antes de nós. Com certeza olhavam estrelas, talvez outras, talvez diferentes das que brilham hoje sobre nós, mas diante do mesmo espaço imenso, infinito e escuro da noite fria, tiritavam em silêncio ao se despir, despedindo sem dor os que sem dor partiam em busca do destino.


Com o pensamento em João Alexandre Cortesi Lempek, onde quer que esteja

07/03/2011

História feita de emails

Passei horas hoje à tarde fazendo história: lendo e relendo mensagens enviadas e recebidas há anos, todas guardadinhas na minha caixa de emails. Para dias que despertam com uma aura de melancolia que não se apaga, mas ainda assim não oferecem riscos de tristeza, como esta segunda gorda de Carnaval encaminhando-se para o frio noturno, é um prato cheio.

Assim, fui passear pelo passado da comunicação virtual, à procura de pequenas pérolas que a frequentaram e se deixaram guardar – um novo projeto em curso. Como caixa de Pandora, levanta-se de tudo à minha aproximação, e é preciso que me mantenha alerta e vigilante, para que afinal a tristeza não se agregue ao dia cinzento e me derrube da precária rede em que vim cair.

Poderia compor uma história de vida com fragmentos de emails; as frequências e as infrequências, o que não deveria ter sido escrito (mas foi e, pior, enviado), o que deixou de ser lido e que agora dói nos olhos por não ter tido a resposta que merecia, e agora é tarde, tanto que arde, como queria o coelho da Alice.

Há de tudo pelo caminho, pedras e plumas, sonhos compartilhados, planos vários, uns concluídos, outros abandonados. Convites bem humorados, feitos e recebidos: uns respondidos, outros desconsiderados. Pedidos de ajuda, tentativas de conquista. Sugestões de leitura, indicação de remédio para mil e uma ocasiões. Opiniões sinceras e amigas ao lado das farpas que quase encaminho para a lixeira, mas cuidado: o que não vale hoje, valerá amanhã quem sabe, e por isso a minha lixeira não guarda quase nada, porque tudo eu devo ter merecido, acho até que o que chegou por engano.

Entre os bem antigos, com data de outras décadas, encontro o aroma de quem já se foi; não fossem dois ou três emails trocados e guardados, nada teria ficado que me fizesse chorar, e o choro não me entristece, antes revigora e ilumina todos os que estão ao meu lado.

Ainda assim, volto rápido ao passado mais próximo, porque eu já sei de que cor está hoje a minha alma. Retomo caminhos abandonados. Mas não sei quem abandonou quem - e se fui eu, será que volto? O dia não está para dúvidas, nem meu coração para retomadas sem motivo, mantenho-me no registro histórico e nada preciso mudar do presente quase pretérito ainda não futuro.

Descubro coisas minhas que esqueci, textos que imaginava para sempre perdidos. Uns, até, que nem lembrava ter escrito, e pelos quais me alegro (imensamente!) ter sido a única destinatária. Não valem a leitura alheia.

Pesquiso por nome: comprovo que a memória é fraca, e espanto-me com a quantidade de coisas que nos dizemos e depois esquecemos. A quantidade de perguntas sem resposta. As respostas a perguntas que sequer foram feitas. E um espaço aberto, imenso, gigantesco, feito do mais puro esquecimento. Uns silêncios diferentes daqueles que se deixaram tão somente de dizer: aqueles que foram criados para que do outro lado se mastigue pelos ouvidos um “não vou dizer” que nunca se dirá. E por isso sem resposta. Esse espaço abre-se como chaga, e esse eu não tenho intenção de suportar.

Dirijo-me ao setor das alegrias, das risadas, do humor rosa e negro, das mensagens sem sentido defendendo as causas mais indefensáveis, os sofistas de plantão, os hábeis argumentadores, as ofertas de produtos e serviços.

Entre toda essa teia, há presenças que se mantêm por anos; há os que me frequentaram durante um tempo e depois se afastaram – uns de repente, outros mansos e lentamente. Sinto saudades e falta de alguns – ou do tempo em que estavam, aquele hoje irrecuperável. Ainda assim, porque estou diante deles e a cor é a mesma, porque o amarelado do tempo não marca as telas dos computadores, posso imaginar que está tudo ainda vivo, e forte, e pulsante e entusiasmante. Um dos milagres da virtualidade, quem sabe. 

05/03/2011

Sólidos, em todas as suas acepções

Se você decidiu ler esta crônica para passar o tempo e distrair-se sem precisar pensar muito em coisa nenhuma, sem modéstia devo dizer-lhe que corra a fazer outra coisa. Eu mesma sentei-me para escrever com essa intenção (passar o tempo e distrair-me), e acabei enredada nas palavras acrescidas de sentimentos. Portanto, nem é preciso se desculpar, que a vantagem de ler é que a nós apenas compete e ninguém tem nada com isso.

Sinônimos são coisas estranhas que desde pequena me incomodam. Na primeira aula em que quiseram ensinar-me (pior: que eu repetisse) que sinônimos eram palavras que queriam dizer a mesma coisa, eu mexi-me inquieta na cadeira com tamanho despropósito. Nenhuma palavra quer dizer o mesmo que outra, o que aliás seria de cara um perdulário contrasenso: pra que duas palavras para dizer uma mesma coisa? Pra que gastar em dobro para nada dizer a mais ou a menos ou diferente?

Para provar o que me escapuliu de repente dedos afora, assim que comecei a escrever, fui-me em busca desse paquiderme bastante roído pelas traças a que damos o nome de dicionário. Abri-o assim, ao acaso, e lá estava, como sempre, um bom exemplo do inútil que é pretender saber o que são sinônimos. Como se existissem.

Sólido – verbete imenso, com um corte a meio (presente das larvas que dividem comigo a leitura dos livros), diverte-me. O que teria a humanidade em mente para conferir a uma palavra tão simples uma quantidade tão impressionante de pretensos sinônimos? Sinônimos que, como sempre, raramente entregam aquilo que prometem. Posso até, condescendente, achar que as palavras queiram dizer a mesma coisa, o difícil é que nós queiramos o mesmo. E como quem as usa somos nós, fica o caso resolvido.

De pronto: sólido. Define-se por negação: o que não é vazio e oco. O que não se deixa abater por uma força externa. Que tem consistência, é encorpado. Forte, robusto. Que tem fundamento real, seguro. Duradouro. Sério. Que não se altera ou afeta com facilidade. Bem aplicado, enérgico, adequado. E, por fim: corpo que tem três dimensões e é limitado por superfícies fechadas.

Bem sei que o campo da semântica correrá a contradizer-me, a cada palavra seu âmbito de uso, mas havemos de ver que as coisas, no mínimo, não se completam. Facilmente alguém advogaria que poderíamos usar uma dessas palavras em lugar de sólido, como um seu sinônimo. Será...?

Supondo que um sólido seja um corpo que tenha três dimensões e esteja limitado por superfícies fechadas, não pode estar nem vazio nem oco. Supondo ainda que todos nós, pessoas, tenhamos três dimensões (temos) e estejamos limitados por superfícies fechadas (estamos, ainda que sejam as superfícies permeáveis), não somos nunca, por definição, nem ocos nem vazios. O que, já se sabe, precisa de uma observação atenta do entorno, mas é fato. Há até quem pareça oco, vazio – mas quem está do lado de fora é que acha, do lado de dentro, em circunstâncias psiquiatricamente normais, ninguém se acha nem uma coisa nem outra.

Portanto: não somos ocos nem vazios. Abater-nos por forças externas: depende da intensidade, direção e intenção das mesmas. Do momento nosso. Da companhia, às vezes. Ou da falta dela. Dos silêncios. Ou do excesso de ruídos. Nem ocos, nem vazios, porém suscetíveis às forças que nos rodeiam. Adiante.

Consistência: temos, ou procuramos. Encorpados: uns mais que outros, como no mais (e, veja bem, encorpados são mesmo é os vinhos.)

Fortes e robustos seremos todos um dia, que a tendência à robustez aproxima-se conforme os anos se distanciam. Robustez que, em termos de sinônimos, pode até ser um eufemismo...

Agora vêm as coisas complicadas: que tem fundamento real, é duradouro e sério. Mesmo tendo as três dimensões, mesmo não sendo nem oco nem vazio, mesmo robusto e forte... nem sempre o fundamento é real, nem a seriedade e a duração se coadunam com muitos de nós. Sérios e duráveis, nós?!

Que não se altera ou afeta com facilidade. Bem aplicado, enérgico e adequado. Depende, é claro, assim como depende o que pensemos que seja algo “bem aplicado”, que talvez esteja distante de “ enérgico” e a léguas júliovérnicas de “adequado”... Consigo pensar assim, sem sequer pensar, em pelo menos três exemplos, que aliás não vêm ao caso nem ao espaço que aqui se quer exíguo, de situações pretensamente bem aplicadas, até enérgicas e nada, mas nada mesmo, adequadas. Pense: todos temos exemplos fáceis.

Creio que todo o meu empenho conduzir-se-á, a partir de hoje, pelo desejo e necessidade de ser sólida. Serei plena e preenchida, robusta e forte (e estou ficando, infelizmente, graças às últimas e ainda em curso aventuras gastronômicas...), séria, duradoura, visível nas minhas três dimensões, o que é uma grande vantagem, num mundo em que, se você consegue ver uma delas, já é uma grande sorte. Terei fundamento real e não me alterarei com facilidade, sendo no entanto aplicadamente enérgica - e ainda conseguindo a proeza de o fazer da forma adequada. Só de imaginar, precisei deitar e descansar, para pensar nas prováveis vantagens de ser como os vidros e viver num pouco aparente estado líquido.


Ana Vieira

03/03/2011

Semiótica no dia a dia


Alguns anos atrás, tive a oportunidade de participar de várias disciplinas graças ao então doutorado em curso. Uma delas, com o prof. Izidoro Blikstein, foi-me especialmente proveitosa. O tema era a propaganda fascista, e o ponto de observação valia-se das teorias semióticas – aquelas que estudam as maneiras como o homem confere significado àquilo que o rodeia.

Temas caros a Blikstein pulavam em todas as aulas – estereótipo, preconceito, manipulação e muitos outros conceitos foram discutidos à exaustão, contrapostos, conferidos. Maioria esmagadora de alunos judeus, criavam-se discussões acaloradas, apresentavam-se argutas leituras dos pequenos sketches de propaganda nazi, assistiam-se filmes memoráveis - por exemplo, “O julgamento de Nuremberg”, versão a preto e branco com Spencer Tracy e elenco de peso, incluindo Marlene Dietrich.

Desse curso, incorporei à minha bagagem (repertório, na linguagem de Blikstein) um olhar interessado em encontrar nas mensagens à minha volta aquilo que dizem sem parecer dizer – o campo da semiótica ganhou um espaço em mim que eu desconhecia. Interessou-me particularmente o mecanismo que nos faz ser engolidos por informações que nos distorcem a visão, embaçando, delimitando, transvestindo a realidade com as cores que convêm ao emissor. Nós, os receptores, se não estamos atentos, somos abalroados e às vezes não nos recuperamos. Como não há como ter controle sobre o emissor (a não ser que sejamos nós mesmos, é claro), melhor será que se desenvolvam capacidades receptoras, a postos para nos auxiliarem a clarear aquilo que vemos. Com tempo e prática, essas capacidades (espera-se) poderiam tornar-se quase automáticas.

A web acumula uma quantidade imensa de informação, nem sempre verídica, nem sempre nas suas reais proporções. Facilmente se deturpam e propagam falsidades, e facilmente se lhes dá cunho verossímil e respeitável. A democratização da informação que proporciona demanda, por outro lado e a passos largos, o desenvolvimento daquelas capacidades receptoras e de uma forma de estado vigilante, que nos impeça de propagar involuntariamente inverdades, tendências, preconceitos.

A petição que circula na internet sobre um suposto filme, com estreia breve na América do Norte, que mostraria Jesus mantendo relações homossexuais com seus discípulos, serve de exemplo acabado. Pede o email que se assine a petição contra “Corpus Christi”, dizendo que “a omissão é uma forma de aplaudir as aberrações” e que “a paródia repugnante de Jesus” precisa ser contida, através de muitos nomes que impeçam a exibição do filme.

Com um pouco de pesquisa (por desconfiar dos termos da petição), descobre-se que nem esse filme existe, nem existiu nem anda em projeto. Existe uma peça (do mesmo autor dos livretos das peças “Ragtime” e “O beijo da mulher aranha”), e um documentário sobre ela – porém, embora tenha causado certa celeuma, apresenta um personagem de nome Joshua que seria uma “atualização” de Jesus – nasce num bairro degradado de uma cidade do Texas, onde convive com mulheres que apanham do marido, sexo pago e outros.

Essa petição circula há décadas pela web – em 1985, primeira ocorrência de que encontrei registro, acumulou um milhão de assinaturas, só nos Estados Unidos. Gerou protestos do movimento gay, assim como de entidades de defesa da liberdade de expressão. E, a cada cinco ou seis anos, reaparece.

O que me fez procurar informações foram justamente as palavras “aberração” e “repugnante” – sinais de que, no contexto, algo subjaz àquilo que o texto diz dizer. Uma leitura mais atenta alerta para a conexão imediata que se faz entre essas duas palavras e as relações homossexuais (supostamente) mantidas por Jesus com seus discípulos. São as relações homossexuais que se pretendem aberração repugnante.

Nenhum de nós está a salvo do engano, como é óbvio; dependemos do nosso repertório, o que inclui nossas experiências de vida, a religião que professamos (ou não), os livros que lemos e os filmes que vemos, as conversas que temos, as viagens que fazemos e, em muito larga escala, as escolas que frequentamos – escolas que com urgência precisam voltar-se para a construção da observação atenta, do discernimento autônomo e da capacidade de nos fortalecermos solidariamente no encontro com o outro.

01/03/2011

Procrastinações à parte

No dia 3 de fevereiro começou, finalmente, o meu novo ano.

Adepta recente da procrastinação, embora deteste a palavra, decidi aderir ao ano novo chinês, basicamente porque começava num então longínquo 3 de fevereiro. Chegou o que estava longe. E hoje ainda fico com a impressão de que talvez quem sabe eu devesse ou pudesse aderir ao ano novo judaico... mas descubro que isso só acontecerá lá para fins de setembro. Hosh Hashaná vai ser um pouco demais.

Ainda bem que aproveitei meu filho que viveu seis meses na China e me diverti celebrando o dia 3 de fevereiro no melhor e maior estilo. Para comemorar o novo ano, além de cogitar mais uma vez repor o coelho assassinado pelo gato de casa, sucumbindo aos apelos do filho que mo pediu as férias inteiras, decidi aventurar-me pela culinária chinesa. Pãozinhos no vapor, com recheio de carne e legumes. Baozi, diz o chinês de seis meses que me assiste, não é exatamente a estrela do ano novo, mas enfim... antes isso que nada.

Vamos, enquanto isso, conversando animadamente sobre o coelho, animal de rege este ano de 4710. Dócil e paciente, símbolo máximo da longevidade, abençoa os anos que se lhe dedicam com apenas coisas boas – um dos noticiários de Macau (em português, graças a Camões entre outros) diz que os cataclismos, mesmo que os haja, não terão as dimensões catastróficas que tiveram neste ano que se acabou, regido pelo Tigre. Espero mesmo que todos os cataclismos se atenuem, inclusive os da minha vida pessoal.

Lembro-me de ter decidido, nesse dia, colocar de lado todos os comportamentos procrastinadores dos últimos tempos, o que não foi exatamente o que aconteceu, e prova disso é esta crônica, que estava toda no presente e agora preciso convertê-la aos tempos pretéritos. Um exercício de  colagem que espero me satisfaça ao fim.

A palavra “procrastinação” tem uma origem etimológica simples e tranquila, que não faz jus, ao menos não aos meus ouvidos, à sua sonoridade horrorosamente desagradável. Pro, prefixo que sempre significa adiante, e cras, dia seguinte para os romanos, e aí está – deixar para o dia seguinte. Convenhamos que é melhor procrastinar do que postergar – este último para data imprevisível, que pode ser nunca. Procrastinar é, via de regra, apenas deixar para amanhã, mesmo que se devesse fazer hoje.

Uma das maneiras de deixar de procrastinar pode ser, para não sairmos do espectro das palavras horrorosas, defenestrar: em vez de deixar para amanhã, atirar tudo pela janela, para depois inventar novas obrigações, novos compromissos, novas surpresas que se acumulam diante da porta de cada dia, tudo pronto a ser procrastinado com alegria.

24/02/2011

Distorções ideológicas


Tive um professor querido de História, muitos anos atrás, que me explicou de forma exemplar o que é ideologia. Ideologia, dizia ele, é o seguinte: você passa muitos e muitos anos (por exemplo) odiando ler, repudiando tudo o que seja matéria impressa; num certo momento, percebe a importância da leitura, e passa entusiasmado ao estatuto de leitor contumaz. Porém, o mundo lá fora, que tudo observa, permanece com o você antigo, aquele que não gostava de ler, e por mais que você diga, prove, leia!, nada convence ninguém de que você mudou, que as coisas mudaram, que agora não só você reconhece o valor e o prazer de ler, mas lê o dia inteiro. Ideologia é isso: a permanência de uma determinada forma de pensar a respeito de uma realidade que,entretanto, já mudou e não é a mesma. Hoje eu sei que ele se apoiou nas reflexões de Marilena Chauí, mas na altura essa explicação me cativou.

O pensamento ideológico tem uma missão importante, ainda que inconsciente: convencer o resto do mundo que a mudança não aconteceu. O pensamento ideológico sai às ruas enérgico para comprovar, constatar, convencer e provar o que lhe parece óbvio: você não lê e não gosta de ler. Os fins, aqui, justificam os meios, e por isso a liberdade é irrestrita para camuflar, distorcer, omitir ou corroer fatos e informações. Vale tudo, porque há uma missão em jogo, há uma luta em campo que não é racional, mas absolutamente passional. O ser humano tem problemas com a desacomodação e a mudança – por isso, mais fácil garantir que nada mudou e que podemos continuar reclamando, eternamente, das mesmas coisas. Ainda que não existam mais. A sorte é que, como agora você gosta e lê, sabe disso e não se incomoda tanto. Até entende, quem sabe se magnânimo...

Os caminhos do pensamento ideológico são muitos, e todos estamos à sua mercê. O email que circula há algum tempo pela internet, com uma redação de uma aluna da UFRJ, pretensa ganhadora de um prêmio concedido pela UNESCO entre outros 50000 estudantes, é uma prova fantástica deste assunto. Ora vejam:

O email em questão conta que Clarice-alguma-coisa, aluna do último ano do curso de Direito da UFRJ, ganhou um prêmio concedido pela UNESCO, pela sua redação sobre o fim da pobreza e da desigualdade. Segue-se o email com o texto na íntegra, e ao final solicita-se que se encaminhe adiante, e assim “aos poucos vamos acordar este Brasil!”

Convém saber que o texto da estudante não ganhou o concurso, mas foi selecionado, com outros 100 textos, para integrar uma publicação da Folha Dirigida em parceria com a UNESCO (ou vice-versa, para não me acusarem de distorção!). Foram 42.000 estudantes, e todos eles brasileiros universitários, porque o concurso, que dá a impressão de ser mundial, aconteceu apenas no Brasil. A publicação tem a data de 2006-2007, e está disponível no site http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf.

A intenção da UNESCO não foi destacar o bom uso da língua, a clareza na exposição das ideias, a articulação equilibrada, a coesão trabalhada. Talvez, se fosse, a estudante de 26 anos tivesse uma nota razoável, apesar de não ser um texto exemplar e de, dependendo do ponto de vista, ter as qualidades necessárias a uma prova de ingresso à universidade e não as que se presumem necessárias a uma já-quase advogada.

A intenção foi justamente dar relevância a boas ideias que combatam e a pobreza e a desigualdade, conforme reza o título da publicação, e não a habilidade para “construir belas frases com palavras simples”, como elogia anonimamente quem coloca o texto em circulação. É claro que vemos e percebemos da realidade aquilo que a nossa percepção e história pessoal informa; é claro que a pluralidade de opiniões é a garantia da nossa democracia. Mas choca-me que a UNESCO consiga entender representativas da realidade brasileira as ideias expressas pela estudante, por muito irrepreensível (e não é) que seja seu texto. Se ainda penso que é uma aluna de último ano de Direito, mais me espanta e incomoda. E quando vejo que é aluna de uma universidade federal, pior ainda.

"Abundância de falta de solidariedade" e "exagero de falta de caráter" (para não passar do primeiro parágrafo) são expressões fortes demais para caracterizar um país onde precisamos de muitos e muitos dedos de muitas mãos para contar exemplos justamente do contrário. Eu sei (e por isso aquela introdução no início deste texto) que dificilmente se constrói um discurso ideologicamente livre, mas há limites, e uma estudante de último ano de Direito deveria ter construído, ao longo do seu tempo de estudo, a capacidade de olhar em volta com os olhos abertos. Seu texto está repleto de lugares comuns e chavões como aqueles que ouvimos repetidamente, que elegem o Tiririca como exemplo acabado do congresso que acaba de ser eleito, ignorando os tantos e tantos deputados capazes e honestos que povoam a Câmara. Joga-se o bebê, a água do banho e a própria bacia. Bastante fácil levantar bandeira por revoluções e reformas estruturais, sem perceber as que estão em curso, e que permitiram, inclusive, que a autora do texto chegasse a seu último ano de um curso de Direito do calibre do curso da UFRJ, "vítima" dos investimentos fantásticos que o Governo Federal fez nos últimos 8 anos no ensino superior público.

O texto de Clarice tem, no entanto, um aspecto positivo, e a sua circulação irrestrita e distorcida pela internet idem: são bons exemplos do que é preciso fazer com textos lidos no ambiente virtual. Por um lado, desconfiar, a partir do exercício do pensamento crítico e da análise da realidade, da veracidade dos fatos que veiculam, confrontá-los e confirmá-los buscando outras fontes; por outro, descobrir a imensa riqueza democrática que esse mesmo espaço virtual carrega em si, acessível por caminhos que lhe são próprios e peculiares e que precisam ser aprendidos e explorados nos últimos anos da educação básica, justamente porque são isso mesmo: básicos. As nossas salas de aula estão repletas de alunos que usam a internet e o universo virtual diariamente, de forma limitada mas muito intensa. Faltam-lhes recursos que lhes permitam dominar as ferramentas de pesquisa, faltam-lhes capacidades para poderem encontrar, nessa gigantesca caixa de Pandora, aquilo que necessitam e aquilo que ainda nem sabem que existe. Quem sabe possamos contribuir para que as próximas gerações de alunos da UFRJ consigam desenvolver textos mais articulados, maduros, reflexivos, inteligentes e bem escritos. O lucro será de todos.

09/02/2011

Por que ler os clássicos?

Italo Calvino é um escritor profícuo e variado. Nascido em Cuba, de pais italianos, transformou-se num dos mais importantes escritores do século XX. Desde o curioso diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan, “As cidades invisíveis”, provavelmente seu romance mais conhecido, a “Seis propostas para o próximo milênio” (conjunto de palestras que daria em Harvard se não tivesse morrido antes, deixando-as providencialmente escritas), Calvino transborda os atributos que queria ver conferidos à literatura futura: leveza, rapidez e multiplicidade. Essas propostas sofreram críticas várias, entre elas que antes o romancista Calvino ao literato Calvino; que nada trazem de novo, estas palestras; que ainda por cima parecem muito desorganizadas... Ainda assim, quando as li, gostei delas, como gostei de tudo o que, até hoje, li do mestre italiano. A crítica literária está aí para isso mesmo – tecer comentários elaborados, que esbarram em outros e nos ajudam a chegar mais próximos a uma ideia própria, flexibilizando o nosso processo de pensar através do pensamento alheio.

Lembrei-me de Calvino porque fui, agora à tarde, em busca de outro de seus livros, “Por que ler os clássicos?” – tomo-lhe emprestado o título. Divaguei na direção dessa pergunta por precisar elaborar alguma espécie de ementa de curso que contemplasse respostas possíveis. As de Calvino seriam as primeiras. Lembro-me que a impressão que esse livro deixou em mim foi o balançar das certezas (literárias) que tinha, e a descoberta de que todas (literárias e não só) sempre e a qualquer tempo são contestáveis.

Não achei o livro – emprestei-o a alguém, ainda não voltou. Uma sorte: a sua falta fez-me pensar em contrastes entre semelhantes, não sei bem por qual associação de ideias. Passeando as gemas dos dedos pelas quinas das prateleiras, fui dar àquela em que se enfileiram todos os Machados de Assis aqui de casa. Não a frequento muito, ultimamente, e a percepção da falta fez-me parar. Decido retirar da mesma algo conhecido, emblemático, quem sabe se alguma coisa que todo vestibulando (por exemplo) esteja fadado a ler. “O alienista”, portanto. Por que lê-lo? De novo, ainda mais?

Não é suficiente, falta-me algo que me absorva a tarde inteira. Quero os contrastes, mas não os evidentes, antes aqueles que se camuflam nas dobras das coisas. Da prateleira de cima, acena-me insistente “Pai Goriot”, ao lado das “Ilusões perdidas” que prefiro não ler agora. Balzac. Há anos me pergunto, sem ter tido antes tempo de pensar em solucionar a dúvida, porque esses dois escritores parecem-me tão diferentes. Ainda que as ideias de base sejam comuns, o ideário realista solidamente presente em ambos, fruto provável de seu tempo (diriam eles com certeza). Imagino que, sendo ambos clássicos, possam responder-me a pergunta que Calvino se fez e para a qual não encontro a resposta que deixou escrita.

“Pai Goriot” em uma mão, “O alienista” na outra. Pareço, ao passar pelo espelho da entrada, disposta a qualquer coisa. Antecipo o prazer de afundar na poltrona da sala e ler até os olhos me pedirem trégua. Um prazer que devo honrar – nem todos os que querem podem fazer o mesmo, e os que não querem ainda não descobriram, entre outras coisas, por que ler os clássicos.

15/01/2011

De Isidoro de Sevilha




Isidoro de Sevilha atrasou-me as boas intenções que tinha de descanso noturno. Cismada há semanas com essa criatura, dia a dia descubro mais alguma coisa. Hoje, numa amálgama de pensamentos que à primeira vista pareciam caóticos e sem nexo, surge-me de repente a luz brilhante desse pensador andaluz.

A etimologia teve uma consistência toda especial durante a Idade Média, uma espécie de “busca persistente da transparência da palavra”. Entre os que, naquela época, se interessavam e dedicavam a essa parte da gramática, Santo Isidoro foi um dos mais importantes – muito do que pensou e viu está reunido em sua obra “Etimologias”, vinte livros dedicados a cada um dos campos do conhecimento. Isidoro escreve sobre basicamente tudo. A medicina é um dos campos a que mais dedica a sua atenção, oferecendo descrições minuciosas de doenças, tratamentos, instrumentos; mas Isidoro fala também de pássaros, construção de estradas e edifícios, moda, mobiliário, naves, meditações teológicas... Tão versátil e abrangente que o Vaticano aceitou a sugestão e declarou-o, em 2000, santo padroeiro dos internautas.

A linguagem ocupa-lhe parte substancial, mais como alumbramento do que como convenção. Por entre os excertos que leio, fiapos do santo, percebo que Isidoro sabe que a palavra nos alerta para o verdadeiro sentido da vida. Discorre, por exemplo, que ao dizermos “obrigado” demonstramos saber que a gratidão impõe vínculos entre as pessoas, sejam eles de retribuição ou de puro reconhecimento.

Por causa de Isidoro descobri, dia destes, que animi custos (“guardião da alma”) é a raiz primeira da palavra “amigo”. Ser amigo é exercício diário, às vezes um chamado insistente, daqueles que nos mantém acordados por horas em que sensatamente deveríamos dormir, impede-nos de comer quando a fome se insinua, retira-nos de repente do nosso movimento programado apenas porque é preciso, sem se explicar. Porém, acrescenta-nos: faz com que agradeçamos o poder guardar uma alma que precise de nós, e pensar nela mesma como nossa guardiã recíproca, porque o tempo passa e a vida muda, e tudo o que foi um dia voltará.

Antonio Cícero, o poeta, diz que em cofre não se guarda coisa alguma, porque se perde a coisa à vista; que guardar é olhar, admirar, fitar. Por isso guardar os amigos, e as suas almas: olhá-los e admirá-los sob a luz do sol ou sob as sombras dos dias, abertos ou sufocados, libertos ou aprisionados; ao longe se necessário for, envolvendo-os em laços feitos das rotas dos pássaros, transparentes e ousadas na sua existência silenciosa e invisível. Ou de perto tão perto que se confundam em nós as linhas dos rostos. De uma ou de outra forma, manter os olhos pousados sobre eles, os amigos, para que em dias de trevas eles repousem apoiados em nosso olhar.

Agora, não quero fazer mais nada. Apenas deitar-me, fechar os olhos e ver ao meu lado, como se ao alcance do desejo da minha mão, os amigos que não se incomodam com a distância e se fazem cada vez mais presentes, e aqueles que mesmo perto decidem ser longínquos. Os amigos que me frequentam, aqueles que me esqueceram e aqueles que ainda não conheço. Através dos meus olhos fechados e da escuridão, abraço-os a todos na proximidade íntima que a minha alma cria nesta noite. Espero que nada me acorde tão cedo e que Isidoro de Sevilha descanse em paz, assim como todos os amigos que dela precisam nesta noite.

(Foto: estátua de San Isidoro, diante da Biblioteca Nacional, Madrid.)