25/08/2011

Sem título, por opção


Há tempos que ando com vontade de escrever a respeito de uma palavra que me abalroou uns meses atrás – fiquei atônita olhando para ela, mal acreditando no que me fazia pensar. Chegou-me às mãos via os gregos e chama-se sphalmatos. Associada a perigo, aplica-se (ou aplicava-se) às situações de caída ou desgraça.  E isto a propósito de que? De duas coisas.

Uma, a crônica de Clarice Lispector que decidi reler um dia desses, uma das suas mais bonitas: “Estado de graça”. Deu-me a ideia, há alguns anos, de um daqueles exercícios que por mais que se repitam mais prazer dão: neste caso, ir ao encontro de palavras derivadas a partir de uma determinada raiz, descobrindo às vezes parentes e significados ímpares, num brainstorming linguístico que adquire maior sentido à medida que avança no espaço. Como o tal estado de graça, que os gregos readquiriam, para evitar a queda (ou a desgraça), somando à palavra o prefixo a, que tudo nega. Portanto , asphalmatos – aquilo que impede a queda ou a desgraça.

“Desgraça” faz parte do campo semântico que se abre com a palavra “graça”, um espaço de limites longínquos, cheio de sutilezas e encantos. Graça é aquilo que criança faz, e nos faz sorrir (mais do que rir); graça é aquele presentinho simpático que recebemos de quem menos esperávamos, e que nos provoca o “que graça!”. "Graça" oferece-nos palavras tão diferentes quanto gracioso e engraçado; gratidão e ingrato; agradecido e desgraçado. Estar em "estado de graça" é um pouco levitar do duro chão da existência, ser alçado àquelas alturas a que as paixões às vezes nos remetem (e das quais, quando caímos em desgraça, ganhamos um tombo proporcional ao grau anterior do estado oposto).

As coisas que são "de graça", contrariando todas as lógicas capitalistas, inclusive as bem intencionadas, são aquelas que não têm preço e que por isso mesmo nos deixam a alma naquele já dito estado de levitação. Aquelas coisas que chegam assim, do nada, sem que se esperasse ou previsse, e de repente se nos oferecem, leves, lisas e ternas. Um brinde da vida.

Pois os gregos sabiam disso. Usavam tanto asphalmatos que, por economia da língua, tornou-se asphaltos, acabando por batizar aquilo que, para dezenas de civilizações, dos próprios gregos aos sumérios, passando pelos assírios, pelos babilônios e pelos egípcios, serviu para impedir que as coisas caíssem (literalmente) e se desgraçassem. Noé usou asphaltos para calafetar sua (nossa) Arca. Literalmente, ainda em grego, está cunhado como “aquilo que evita a caída”.

Isso fez-me pensar, e num volteio repentino fiquei matutando se não nos estará faltando justamente aquilo que negamos tanto tempo – no plano concreto, palpável, o sempre-dito asfalto (assim, na grafia que conhecemos, sem o ph que o original grego oferece), aquilo que pode impedir que os nossos caminhos se desintegrem, se esboroem, criem buracos e levantem poeiras que nos intoxicam e nublam a visão clara do que está à nossa frente - ou às nossas costas. No plano das ideias e dos afetos, que foi para onde esta história me catapultou de fato, é como se nos escapasse o estado de graça, porque negamos, através do distanciamento, a nossa proximidade; porque perdemos a cordialidade; porque entendemos que a luta precede o entendimento e que a construção do nosso sentido parte da negação do sentido alheio, e não do seu caráter complementar.

Sinto falta, nestes últimos tempos, não só de conhecer as tantas diferentes pessoas que moram hoje à minha volta, e encontrá-las nas festas simples onde dinheiro não era moeda, mas também de re-conhecer aquelas que já estão aqui há muito – sem que a falta de tempo, de espaço, de disponibilidade ou de desprendimento nos impeçam de levitar, achar graça sobretudo em nós mesmos e ser gratos. Clarice, nos momentos da depressão que sucedeu o incêndio que quase a matou, queixava-se da solidão das coisas do mundo, e refugiou-se nessa solidão que ajudou a construir. Não gostaria que lhe repetíssemos esses passos.

23/08/2011

Fome



Contava eu hoje pela manhã a um grupo de jovens que a desgraça alheia ajuda-me desde pequena a lidar com a própria – sempre e por todo lado menor. Às vezes (agora, por exemplo, em que escrevo) chega a parecer-me quase um utilitarismo: pensar no infortúnio dos outros para consolar-me do meu. Mas não é consolo. É dimensão.

Dimensão do abismo insuportável que me separa da dor do outro, que eu quero sentir para poder aplacar, mas não sinto, e não aplaco. Insuperável , insondável, intransponível, inalcançável. Qualquer dessas palavras serve-me para o mesmo: para a dimensão desse abismo entre o que eu quero e o que eu posso, que em tudo se assemelha ao que todos queremos e de fato podemos. Meu grão de areia insuportável e intransponivelmente irrelevante. Naquilo que posso, a minúscula contribuição ao (quando muito) resgate de alguma parcela da dignidade alheia, essa que falta e escasseia - subtraída, escondida, roubada. Haveria de inventar palavras que falassem dela.

Por isso, a importância de nestes nossos dias ouvir a poesia e o canto somali, as narrativas etíopes que se perdem nos confins dos tempos em que viviam a rainha de Sabá e o rei Salomão. Aos meus olhos e ouvidos, resgatam do seu anonimato esses rostos desfigurados pela fome e pela desventura; tornam-se o semblante humano da arte, aquilo que os faz, de forma altiva e silenciosa, meus mais desgraçados irmãos – irmãos que sorriem e dão graças a deus porque de seus nove filhos dois chegaram vivos ao campo de refugiados para onde caminharam durante semanas; irmãos que dão graças a deus porque nesse dia têm uma xícara de arroz para compartilhar entre oito; irmãos que não choram mais porque as lágrimas secaram nas areias dos desertos que habitam; porque nesse dia o carregamento de água trará a ilusão de que a sede acabará; e porque amanhã a mesma coisa, até não caber no corpo nem sequer uma ilusão.

Repito a cada noite os nomes etíopes e somalis que conheço: Asad, Meseret, Mihret, Oumed, Amina, Erasto, Ayanna, Selassie, Dalmar, Nadif. Muitos podem chamar-se dessa forma, e a todos quero incluir na minha noite em que não existem nem sede, nem fome, nem quilômetros de sol à frente de meus passos nus, nem crianças mortas a cada lado da estrada, nem uma continuidade inacabável de sofrimento às minhas costas.

Repito-os para que tomem forma e me lembrem em sonhos da imensidão que é a raça humana, e a sua capacidade de sobrevivência em face do desespero alheio. A cada morte de cada um a minha existência perde algo da sua humanidade, e eu preciso da arte, desesperadamente, para lembrar-me de que o seu sofrimento é o meu também, e de que enquanto eles, tão longe de mim no tempo e no espaço, não deixarem a um lado a fome e a sede, cada meu prato de comida pesa-me uma tonelada, e jamais saciará a fome que sinto em seu nome, e da qual me lembrarei a cada noite ao dormir, a cada manhã ao levantar. Como um fardo que ponho às minhas costas porque quero e porque assim, bem mais egoísta do que gostaria de ser, posso dormir.

11/08/2011

Saraus

Na época em que eu fumava, tive um amigo que me apresentou a uns cigarrinhos curtos e finos que vinham da Índia, num pacotinho pequeno em forma de cone. Nada mais eram que uma folha de tabaco enrolada e presa com um fiozinho de linha colorida, esses "beedies" que na altura se compravam em Marrocos. Foi uma época intensa, essa. Por obra do destino, eu me via junto a um grupo de pessoas que se reunia para ler e ouvir poesia, e que, a meio dessa atmosfera densa, enfumaçada e sombria, fazia silêncios que duravam a eternidade que nos separa dos bandos de cavalos soltos pelas praias da península ibérica. Não sei do que eu mais gostava, se das palavras ou se do silêncio que ampliava o que elas diziam. Ouvia-se o riscar dos fósforos, o gorjeio das garrafas quando se esvaziam, e de repente mais uns versos de tantos poetas que, reparo, não me couberam na memória. João Cabral vem-me daquela época, em alguns poucos versos que, quando reaparecem, trazem de volta, como um presente, todos os encontros em um só, e eu agora sozinha, porque todos quase já se foram, ou porque se foram de fato, ou porque eu me fui deles e não posso mais reencontrá-los. Reinvento-os na solidão da minha mesa, cada um de seus olhares de pálpebras fechadas.

 Esse amigo, que se foi há anos, lia Lorca e Valéry como se lhe habitasse as veias, e a mim me acontecia aquilo que alguns chamam de alumbramento. Alumbravam-me as rimas, o ritmo, as palavras de escolha certeira, os que avançavam pelo que era concreto e os que se perdiam no que não era. Apareciam os surrealistas, não se discutiam nem se interpretavam. Vinham os imagéticos, os duros como pedras, os incisivos como tempestades de areia dentro dos olhos.

Ficou-me dessa época a vontade de ouvir e não dizer nada, essa substância volátil que em nossos dias é tão rara, que são os silenciamentos da alma que foi e se sabe tocada. Relendo João Cabral, descubro-lhe novos poemas, novos versos, novas imagens, percebo-lhe a tarefa imposta – a mais dura, a mais difícil. E penso em como será que sobreviveríamos se eles não estivessem em guarda para nos salvar da torpeza que é a insensibilidade humana.

Não havia convites, nem saraus a serem combinados, arranjados, preparados. Era a palavra pura que se capturava num instante para soltá-la logo a seguir. Um dia certo na semana, uma casa onde ir, e mais nada. De onde apareciam todos aqueles amantes da poesia, ou como, eu não sei – talvez combinassem, afinal, eu era menina demais para perceber o que a vida adulta demandava, tinha todo o tempo do meu mundo ao meu dispor e hoje vejo como nada disso era fácil, ainda que parecesse. Mas a lembrança ficou dessa forma, ela própria também um alumbramento, e acompanha-me nesta tarde, que prepara o derramar-se de hoje à noite, quando João Cabral nos visitar e com ele a legião de poetas que vivem do outro lado à espera de que os chamemos. Em silêncio, com cuidado, de olhos fechados e alma aberta.

29/07/2011

A crônica

Foi durante um almoço num dia desta semana. Um rapaz simpático chegou-se à minha mesa e perguntou-me por que o ritmo das minhas crônicas tinha diminuído; incomodava-o essa redução, porque ele gostava de abrir seu dia com uma passada por este blog, e sem novidades isso perdia o sentido.  Além de (meio sem jeito) lisonjeada, disse-lhe que era uma boa pergunta, e prometi-lhe uma resposta ainda por estes dias, porque não era óbvio e batia mais fundo do que ele podia imaginar. Não podia responder-lhe rápido como gostaria. Como com todas as encomendas, a responsabilidade parece-me bem maior, pode ser que o resultado desagrade, fique aquém do que se esperava... enfim: justificativas que digo, a quem me procura querendo escrever, que não é preciso (nem conveniente) oferecer.

Fui ver as estatísticas de leitura do blog. Instrumento interessante, mas aflitivo, sobretudo quando se consulta. Após um dia de muitas leituras, um outro em que quase ninguém entra. E quem entra? Será que leu? Ou foi por acaso, num zapping blogístico de quem não tem outras coisas a fazer? E se leu, aborreceu-se? Fez-lhe bem? Decidiu nunca mais voltar... ou virá todos os dias? E o comentário, que não escreveu? Foi porque não se atreveu? Ou porque não ficou com vontade de dizer nada? Ai...

Mas as minhas preocupações estatísticas hoje são com o que eu publico, e não com o que os outros leem. Frequência, quantidade, coisas muito mais objetivas de medir do que qualidade. E vejo que, de fato, em junho foram seis crônicas, em julho esta é a segunda... Tem razão o leitor de se chatear com o assunto, deve ser deprimente abrir-se o tal do blog, como se de livro se tratasse, e descobrir que as páginas a seguir à última que se leu estão em branco. Quase uma fraude.

Mas há um motivo, e eu explico. Depois de uma semana inteira em oficina de crônica, lendo, escrevendo, discutindo, comentando, rindo, respirando e mastigando crônicas, tornou-se mais fácil perceber a ausência que o ambiente crônico tem tido em mim. O tempo mudou de espaço e lugar desde que, de repente, se abriu uma ponte em direção a lonjuras narrativas. A crônica é breve, efêmera, rápida, quase inconsequente. As narrativas mais longas, que demandam reflexão e uma espécie particular de planejamento, são objetos que se organizam; os contos, os romances, reescrevem-se vezes sem conta, absorvem, abrem crateras na alma, subjugam o dia a dia, penetram pela vida toda como seres com ação e pensamento próprios e capacidade invasiva autônoma. Difícil (ao menos para mim) sair do fluxo da narração, tão ficcional como eu própria, e tornar-me leve, aérea, sutil como uma pluma a quase perder-se no espaço – e ser crônica, e ser 1ª pessoa.

Ainda por cima, a minha alma está mais aguda do que crônica – aliás, está empenhada num movimento exaustivo que a liberte das dores e dos desejos crônicos, e com certeira agudez caminhe e avance em direção ao que será. Essa alma menos crônica quer o que é profundo e interno, o que é longo e introspectivo, o que avança pelos terrenos da ficção a plenos pulmões, de formas que a crônica jamais poderia ser, hoje, aqui. 

Escrever assim, como vem acontecendo nas últimas semanas, causa-me uma inquietação interna que não sossega ao final de uma página – não: paro porque estou cansada e preciso dormir, comer, beber, atender aos compromissos alheios e com hora marcada, esses que vêm roubar-me à escrita e devolver-me ao mundo, depois de horas mergulhada num outro espaço, com outros seres e outras dores.

E sinto saudades, é claro que sinto, do descompromisso diário da crônica. Que não articula personagens, não elabora cenários, não estuda e inverte pontos de vista, focos narrativos. Ou de repente o faz, e ri-se por dentro, porque a crônica ainda por cima é rebelde e não aceita regras constrangedoras. Faz-se da minha fala breve e da reflexão curta, mas também da saudade longa que se sente das coisas que fugiram de nós sem que sequer as tocássemos, e não sabemos se somos felizes porque o toque quase se deu (e só isso já é tanto!), ou se porque sentimos saudade, e saudade é uma forma de felicidade. A crônica faz isso: suspende-nos dentro dela mesma, faz-nos girar em torno de uma indagação, e, a mim,  dá-me a liberdade de, se eu não quiser, não chegar a lugar algum. Ainda que seja à resposta da pergunta amável de um leitor atento.


26/07/2011

Ver (ou não) as caravelas


Contaram-me um destes dias que quando as primeiras caravelas chegaram à costa brasileira nem todos as perceberam na linha do horizonte; grande parte de quem já estava deste lado de cá percebeu apenas a nova e diferente ondulação das águas do grande Oceano. Daquele grupo que esperou, nas areias da praia, o primeiro desembarque, fariam parte aqueles que as descortinaram ao longe e por isso as foram receber, entre curiosos e temerosos. Ou não, que disso Caminha não nos dá notícia, e é a partir dele que recolho o longínquo acontecimento.

Aqueles que perceberam as velas e seus mastros não o fizeram por terem melhores olhos, mas maneiras particulares de verem “as formas invisíveis na distância imprecisa” – como escreve Pessoa que são os sonhos, aquilo que é sem ainda o ser. Aqueles que perceberam os ventos novos foram em sua direção, enquanto que os outros viram (apenas) no que conheciam um leve agitar-se. Mas, ao que consta, ninguém se incomodou com o que o outro via. E nem impediu que quem visse registrasse que o fazia, muito menos que disso falasse.

Os ventos acompanham-nos, vindos do mar que é o que nos separa e une – como todas as pessoas e coisas que não se limitam a apenas uma possibilidade, mas estão abertas a várias. “Bons ventos” trazem-nos alguém, “novos ventos” reacendem-nos o entusiasmo e a chama que nos mantém de pé. Vemos (e ouvimos e cheiramos e percebemos) o que é novo por um simples motivo: porque temos olhos e ouvidos e narinas e sentidos que nos permitem ver o que outros, às vezes, não veem nem ouvem nem cheiram nem percebem. Porque não podem.

A carta de Caminha é uma crônica de viagem que dá gosto ler – um precioso, aberto e humano relato do encontro dos navegadores com esses novos homens “pardos, todos nus”, que “traziam arcos com suas setas” e que assim que se “lhes fez sinal que pousassem os arcos, eles os pousaram”. Ao recebê-la, o rei de Portugal não teve dúvidas de que aquilo que lia era verdade – que aquelas pessoas e aqueles lugares, aquelas ervas e aquelas paisagens existiam e estavam agora a apenas umas letras de distância. A confiança regia a relação entre o rei e seu cronista. Ainda que lhe pedisse provas: uma pedra, um barrete de penas, outras evidências, todas elas a caminho, provavelmente junto com a própria carta de achamento.

Entre os que ouviram os relatos das grandes navegações, houve aqueles que viram (porque tinham sentidos para fazê-lo), e aqueles que se agarraram às certezas que tinham e não conseguiram ver, a não ser quando a evidência esteve ao alcance das suas mãos. Entre estes últimos, houve aqueles que encolheram os ombros e foram à sua vida, e aqueles que se levantaram indignados de que outros dissessem ver aquilo que eles não viam (ainda). Entre estes últimos, uns discutiram entre si acaloradamente durante um tempo, ocupando-se com novo assunto assim que ele chegou; outros, exigiram providências imediatas, espumando em segredo, saudosos dos bons tempos da abolida inquisição. Entre estes, uns sobreviveram, e vivem ainda entre nós. Outros, também - mas calam-se e esperam com sorrisos falsos pela melhor oportunidade de espalhar o seu medo do novo.

29/06/2011

Umuntu ngumuntu ngabantu

Tenho tido muito assunto para escrever, muita vontade de o fazer, e quase nada de capacidade. Demoro a digerir o que acontece, perco-me à procura do elo de ligação entre o que insiste em parecer irreconciliável. A dor alheia soma-se à própria, transcende-a num grau inimaginável, mas é como se todas fossem a mesma, e por isso nada encolhe, nada diminui, nada assume uma potência compatível com a vida de todos os dias. Passam-se as horas e o incômodo fica ali, à espera, um alicerce feito espinho.

A visita a Robben Island tem sido um desses assuntos sem canal de saída. Cada tentativa de transformá-lo em palavras, só papel em branco e olhos cheios d’água. E, enquanto não escrevo, a alma pesa-me toneladas, não consigo bater as asas. Em silêncio e em solidão - porque cada vez mais a minha escrita se faz dessa forma, que preciso aprender a reconhecer como minha - é muito aos poucos que consigo tornar matéria cada forma que sinto.




Robben Island foi, durante anos, um leprosário. Afastada do continente milhas apreciáveis, oferecia as condições ideais para o confinamento da doença que não se entendia. Coisas que não se entendem, e se temem, vivem melhor se longe, fora de contato. Os restos de um cemitério testemunham mais de 15000 mortes de uma só vez. Ao ser fechado, graças à descoberta da cura para a hanseníase, teve seus edifícios demolidos e enterrados, ainda sob o regime do medo ao contágio acidental.

O segundo destino da ilha cheia de focas (daí o nome Robbe, foca em holandês do século XVII) foi o de prisão comum – a mesma distância, as mesmas vantagens. O primeiro preso foi um líder do povo Khoi, de nome Autshumato, preso em 1658 por ter conseguido reaver seu gado, tomado pelos europeus. Foi um dos raríssimos capazes de fugir da ilha, a nado pelas milhas repletas de correntezas contraditórias e congelantes.

Assim que o regime do apartheid se apercebeu da necessidade de isolar seus opositores, Robben Island foi mais uma vez a escolha perfeita. Mandela foi seu prisioneiro mais famoso – número 488 a entrar em 1964 – mas há outros: Sobukwe, Sisulu, gritos no escuro que nunca ouvimos, porque a história que aprendemos não os conhece. A sonoridade da palavra africana sobe artérias acima carregada de oxigênio, em direção ao meu coração pesado.

Tinha todas as informações necessárias sobre a ilha-prisão. Filmes, livros, documentários e o meu interesse pessoal pela figura de Mandela fizeram-me reconhecer os lugares, as situações. A cela, o pátio, o barco – tudo é reconhecível. Poderia pensar que, por isso mesmo, o impacto fosse menor, mesmo considerando que ao vivo as coisas sempre diferem das que apreendemos à distância.


Mas nada me preparara para o encontro com Yolande e com M’tumela.

Yolande foi a nossa guia no ônibus que rodeou a ilha – as várias casas onde moram hoje os funcionários do museu Robben Island, e onde moraram os guardas e todos os funcionários da prisão; o grande buraco em que Mandela trabalhou durante todos os anos da sua estada aqui, uma imensa cratera branca a refulgir  dolorosamente ao sol; os resquícios da II Guerra em forma de postos de observação e um canhão que jamais foi disparado; as focas; os pinguins. Entre uma coisa e outra, os silêncios de Yolande, marcados e profundos. Sucumbi-lhes e quase não consigo ouvi-la ao nos mostrar a casa em que Sobukwe, primeiro líder do Congresso Nacional Africano, ficou confinado, a seu lado os canis dos muitos cães que guardavam a ilha. Cada canil é maior que as pequenas celas dos presos políticos.

 O que mais ouço é seu silêncio ao mostrar-nos a pequena caverna ao fundo da cratera de calcário, onde cada um que sabia ler ensinou um que não sabia. Uma nação moldada na areia do chão, sobre a base da solidariedade, do amor ao próximo e do estar pronto a morrer por ela.  Nem me ocorre fotografar-lhe seu belo, expressivo e sereno rosto. Prefiro guardá-la na lembrança. A palavra com que a defino é uma das preferidas do meu avô: altaneira.


M’tumbela esperava-nos à entrada do prédio principal da prisão. Os cicerones de Robben Island são seus ex-prisioneiros; têm a dor tatuada por baixo da pele, e percebe-se, a cada explicação, a expurgação dos maus tratos e das injustiças de anos. M’tumbela ficou preso 8 anos; guerrilheiro, sua função era trazer os revoltosos da fronteira com o Zimbabwe até os locais onde as armas estavam guardadas. Foi preso numa dessas operações. Alguns meses depois de aqui estar, foi destacado para a cozinha. Levou o jantar a Mandela durante anos, sem nunca trocar uma palavra.

M’tumbela fala muito, depressa e com um forte sotaque Xhosa. Faltam-lhe alguns dentes, os olhos foram vítimas de muitas surras e por isso não se concatenam muito bem. Mas tem uma clareza imensa sobre a história do seu país e seu próprio papel, passado e futuro, na sua reconstrução.

Mostra-nos a cela coletiva onde viveu, e a diferente dieta a que estavam submetidos os presos tipo B (“bantu”) e os prisioneiros tipo C (“coloured-asiatic”): a uns, uma fatia de pão; a outros, duas fatias, manteiga e geléia; a uns, uma tigela de sopa; a outros, duas. Até mesmo aqui, ou justamente aqui, as premissas do apartheid vigoravam com força, separando e segregando. Também as roupas diferiam – short e camisa para os presos B, calça comprida, camisa e sapatos para os presos C.

As tentativas de separação foram vencidas com persistência e educação – um povo educado é um povo soberano, dono de seu próprio destino, e o estudo era atividade prioritária, precisando driblar a vigilância e se contentar com o que escapava aos censores.

Aos líderes estava reservada uma seção com mais de 20 celas individuais, cada uma da largura dos meus braços abertos. 18 anos da vida de Mandela passados aqui. Sem comunicação, confinado a uma solitária por qualquer erro: falar no corredor com outro preso, sentar quando deveria levantar, levantar quando deveria sentar. A solitária sem luz e apenas um copo de água por dia. 


M’tumela quer mostrar-nos a cozinha. Conta com detalhes todas as tarefas que realizava, e parece revivê-las e mais uma vez e sempre livrar-se delas, pelo poder da palavra que enumera e reconta. M’tumela orgulha-se do seu país, da luta que é a sua, de cada grão de sofrimento pisado. Não consigo perguntar-lhe mais nada – metade de mim enche-se de lágrimas assim que imagino abrir a boca, a outra metade emudeceu.

Voltamos para o barco a pé, e devagar, arrastando os pés porque ainda há tanto a entender. O percurso da África do Sul, conturbado e incompleto, pulsa em todas as esquinas; os poucos anos que nos separam da barbárie estão vivos nas lajes do chão, nas paredes de pedra, no andar das pessoas, nos sorrisos abertos, nas mãos estendidas, no interesse pelo outro. Ubuntu reina e ressoa: eu sou quem eu sou por causa do que todos somos. 


Umuntu ngumuntu ngabantu







Uma pessoa é uma pessoa através das outras pessoas - provérbio Zulu

21/06/2011

Khayelitsha

Khayelitsha, “nova casa” na língua Xhosa. Quarenta e poucos quilômetros do centro de Cape Town, é a maior das antigas townships da África do Sul. Durante os 46 anos de apartheid, as chamadas townships abrigavam todos os “non white”: negros e “coloured people” - uma categoria tão frágil e difícil de lidar que numa mesma família não era difícil encontrar alguém "catalogado" como “white” e outro como “coloured”. Como tudo, mas literal e absolutamente tudo estava demarcado e separado em termos dessas divisões, dá pra imaginar os (no mínimo) contrasensos diários que as pessoas viviam. Dos bancos das praças às próprias cidades, a lógica era white pra cá, non-white pra lá. Bem pra lá, no caso das townships.

Vamos de trem, fugindo ao turismo dos “township tours”, as maneiras “seguras” de ver a vida real da esmagadora maioria dos sul-africanos. É muito fácil ter uma ideia bastante equivocada da vida, por aqui. A presença do império britânico é, claro, muito forte (claro porque, por todos os lugares do planeta por onde esteve, deixou marcas indeléveis), e, num lapso de tempo, parece que estamos em plena Londres. Por isso é preciso sair deste centro, deste miolo de vida como a conhecemos, da vida que parece normal e tão a nossa mesma de todos os dias. Aqui, 5% vivem assim. Vamos à vida dos outros 95%.


Viajamos em terceira classe; pouco difere da primeira, como pudemos constatar logo à chegada a Cape Town. A terceira classe comporta mais pessoas em pé e menos pessoas sentadas, é mais apinhada de gente, e é só. Como o nosso interesse são justamente as pessoas, apreciar a sua proximidade, é o ideal. Com 6 Rands e pouco mais de uma hora, estamos lá. O guia turístico alertou-nos com gravidade de que é arriscado e perigoso ir sozinho, mas mais perigoso será, parece-nos, entrarmos na vida dos que mal têm dinheiro para luz elétrica bem acomodados num aquecido ônibus de turismo. A eletricidade em Khayelitsha é pré-paga, através de cartões à venda em tantos lugares que logo se percebe que é o comum de todos. Os mercados da região vendem  também grandes galões de parafina, usada para iluminar, aquecer e cozinhar, numa alternativa à luz elétrica.

Aguarda-nos um mar de casas, a perder de vista. Postes centrais de iluminação, altos e potentes, garantem luz geral.  De longe e de noite, parece quase uma cidade fantasma: as pequenas casas de folha de flandres iluminadas de cima por essa luz mortiça, km e km em todas as direções. 

A alvenaria começa aos poucos a suceder a lata, mas esta ainda predomina. É frio no inverno e calor no verão. Há pouco espaço entre uma e outras, e todos se mantêm mais fora do que dentro.

As crianças, claro, estão por toda a parte. Aliás, todos estão por toda parte – é fim de tarde de feriado. Apesar do frio, as pessoas reúnem-se na rua, as crianças brincam e passeiam em grupos; querem saber quem somos, o que fazemos ali, de onde viemos, quando tempo vamos ficar. Ficam contentes, até orgulhosos, de nos verem ali, uma visita pouco usual nesse mar de ébano – “estou feliz de ver vocês aqui, é bom que não tenham medo, porque este é um lugar de paz”. O inglês, precário, não permite muitas conversas, mas é comovente o abraço que recebemos de todos, o calor que as pessoas emanam e nos deixa muito longe de sentir o perigo e o risco que o guia turístico anunciava. É provável que tenhamos perdido todas as atrações de Kayelitsha - a igreja anglicana que centraliza a imensidão de trabalho solidário feito aqui, as vistas da Table Moutain que já figuram em roteiros internáuticos, os pequenos mercados e as centros de produção de artesanato... Ainda assim, foi melhor desta forma, sem esquemas nem organizações, sem segurança nem preparação, a não ser a interna, aquela que pede, imperativamente, que nos desagraguemos e desacomodemos de nós mesmos, para voltar ao nosso mundo, tão pequeno, tão privilegiado, tão assombrosamente desigual, mais preparados para guardar as lentes de aumento quando em face dos nossos desesperozinhos.

No centro da cidade, os supermercados têm vendedores e compradores de todas as cores e feitios. Em Khayelitsha, todos os empregados e clientes são negros. Na ida, na volta e em todo o tempo de estada em Khayelitsha, estamos cercados unicamente por non whites.  Ainda que o movimento dos “colourblind” cresça (e se exiba em faixas e camisetas que tentam lidar com décadas de um efetivo apartheid), a separação permanece, baseada em fatores agora econômicos.  Conversando aqui e ali, as opiniões divergem. Lindiwe, que trabalha na catedral da igreja anglicana de Cape Town, vê as feridas abertas sem cicatrizar - feridas que as Comissões de Verdade e Reconciliação abriram por todo o país e não conseguiram fechar. Sente-se esquecido por quem governa hoje, esquecido pelos  que considera seus irmãos de luta e que agora ocupam o espaço do poder, lentos demais  para a sua urgência diária. Como Lindiwe, muitos querem respostas e ações rápidas, num processo que demanda necessariamente tempo e serenidade. Fácil pra quem está de fora, e observa com admiração o processo de pacificação deste país imenso. Nem tanto para quem convive com a desigualdade todos os dias, e a teve como sua companheira a vida inteira.


Em Kayelitsha, grandes container’s de carga naval oferecem instalações comerciais populares. Curandeiras para todos os males, pequenos salões de beleza de onde saem verdadeiras esculturas de tranças e dreadlocks, matadouros onde cabeças de porco e bode observam de cima a atividade das pequenas ruas, pequenas mercearias que vendem o que se pode comprar. A presença das políticas públicas dá ânimo ao resto da visita – são escolas, creches, ruas asfaltadas, calçadas, as próprias casas de alvenaria que se levantam parecendo palácios, ainda que o banheiro seja externo e diminuto.

A maioria deste quase meio milhão de pessoas trabalha onde o dinheiro está: o lado da cidade em que o branco se sente à vontade e não precisa de guias turísticos. Viajam todos os dias, numa rotina que repete o que acontece há meio século. Dos vendedores ambulantes que ocupam os espaços desocupados, levo comigo, das ruas de Khayelitsha, 3 cd’s de african jazz, house e Black Mambazo. Ganho, de quebra, uma Miriam Makeba e um sorriso feliz e escancarado, como todos os desta terra - não sei se pela venda, se pela conversa interessada na sua vida.

Perdemo-nos pelas ruas intrincadas e sem planejamento, preocupados com o horário do último trem. Como tudo, nada é como parece, e andar em direção à estação que se vê ao longe não é nenhuma garantia de se conseguir efetivamente chegar nela. Um pouco de bom e saudável estresse! 

Ao chegar à estação, bilheterias fechadas. Perguntamos ao guarda ocupado em conversar com um vendedor ambulante a que horas abrirá. Descobrimos que só no dia seguinte, embora ainda haja trens passando hoje.  Conversa vai, conversa vem, seguimos o conselho do próprio guarda: “olha: vocês vão ter de ir sem pagar”. Em Cape Town, hora e meia depois,  é preciso o bilhete para sair da estação - entregamos os de ida, e o guarda me olha de alto abaixo: "E a volta? Vocês acham que não precisa pagar?". Explico o que aconteceu, o ar que se queria severo se desfaz e lá vem, mais uma vez, o sorriso aberto que me anestesia: "Foram visitar Khayelitsha para conhecerem como vivemos de verdade? Então não precisam pagar!". E abre os braços num gesto que me faz querê-lo abraçar, mas ele só quer mesmo é abrir-me o caminho da saída. Sem que ele desconfie, saio sorrindo com os olhos cheios de lágrimas, todos os caminhos abertos.


Sikelel' iAfrika!

19/06/2011

Khulumani


Cape Town está tranquila e quase deserta, neste feriado de 16 de junho – o Youth Day. 35 anos atrás, a maior das townships de Johanesburgo, Soweto, testemunhou o massacre de suas crianças e adolescentes. Aqueles que sobreviveram a essa semana de horror convivem hoje com as sequelas da brutalidade que a vida lhes ofereceu: cegueira, paralisia, desastre psicológico. Os que não sobreviveram deixaram para trás os que ainda olham por eles e os choram.

Neste 16 de junho algumas lojas estão abertas, outras ficam fechadas. Aqui, cada regra encontra na esquina o seu contrário. A caminho do District Six, imensa região do centro da cidade com sua própria história de arbitrariedade, injustiça e destruição, um grupo movimenta-se ao longo da principal avenida. Andam rápido, todos. Corremos atrás. 


Mulheres de sorrisos e corpos amplos, cabeças coloridas protegidas do vento, olhos despertos prontos a fazer todo seu corpo reverberar com seu riso, mesmo que lhes sobrem motivos para o contrário. Homens cansados, mas dispostos a andar.

Este é parte do grupo ligado à organização Khulumani, vítimas e sobreviventes das décadas de apartheid. Esperam ser incluídos entre aqueles que têm direito às reparações reconhecidas pelo governo da África do Sul. Perderam maridos e mulheres, filhos e filhas, netos e netas, irmãos e irmãs, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas. Perderam, nas suas palavras, as próprias vidas, e não têm tempo para recuperá-las – precisam da sua dignidade roubada, e o apoio financeiro é a porta de entrada num mundo que lhes foi negado e roubado durante anos.



Juntam-se aos poucos, mas com rapidez. A cadeia montanhosa que rodeia a cidade, a Table Mountain, ameaça chuva ao longe, mas os guarda chuvas estão a postos. Não são as ameaças dos céus que estas pessoas temem – na verdade, não temem mais nada, porque não têm mais nada a perder.

A língua Xhosa ouve-se de todas as bocas, bem mais forte do que o inglês ou o africaans. Nos cartazes rudimentares, e sobretudo nas canções que as mulheres começam e que nunca mais terminam, é a presença dos sons dessa que é uma das línguas nacionais que convida a cantar junto com as demais vozes. Todos, sem exceção, cantam, explorando as possibilidades de segundas e terceiras vozes, sons guturais que transmitem urgência, lábios em explosões sonoras.



As mulheres cantam, e agora é impossível virar as costas ir embora. Como um feitiço, o ritmo contagia o corpo, os pés não querem parar, o balanço acontece sem querer. A dor que existe por trás de cada alegria reveste-se de bom humor e simpatia, da alegre musicalidade africana que não é só feita de sons mas também de movimentos. Há muito espaço para a dor no meio do canto, mas é uma dor que se dança e se exorciza.




De repente, ao meu lado, a memória ensombrece um rosto, como se fosse um fantasma que voasse por entre nós, fragmento da história do apartheid de cada um. É bom que o faça, porque é preciso que a memória seja reconstruída, percebida, resignificada, para que todos sejamos pessoas inteiras mais uma vez.
 










Mas foi só um lapso: a alegria retorna, no rosto que segura o cartaz que diz ao governo “estamos morrendo agora – respondam-nos, por favor”.


Cape Town engana, assim como o fazem as grandes cidades da África do Sul – quem não se dirigir às fronteiras que ainda dividem os mundos em cores, ficará de fora das lições vivas da história. Estas pessoas, caminhando tranquilamente no centro que agora lhes repertence, passaram uma hora nos vagões de um trem de subúrbio para chegar até aqui. Muitas vivem em Kayelitsha, a próxima parada do nosso roteiro. Por enquanto, parece que estamos no caminho certo.








 

Mais sobre Khulumani
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