20/02/2012

Esquinas


Acordei plural, hoje. Sete janelas de texto abertas à minha frente: a primeira, uma série de poemas vazantes a meio da noite, um turbilhão de palavras tentando explicar-me na madrugada; depois, um artigo com destino certo, sério e relativamente denso, que confesso hoje me cansa (mas tem prazo...); uma tradução, instigante graças a deus; uma revisão curta, mas dura; um romance a caminho do fim, trabalho redobrado; outro livro, surpresa com a qual ainda não sei andar ao lado; e uma carta, que não sei como terminar. Pulo de uma para outra, sem saber por onde continuar, tudo em estágio de pensamento que sei é preciso respeitar. Por isso, abro mais uma, esta, como se fosse um refúgio, um sopro de ar sem compromisso, um encontro inesperado.

Andei de manhã cedo pela cidade, nesta nova opção urbana de vida que não me retirou a insônia do caminho. Tem seus atrativos, a cidade. Descubro que se compram esquinas: paro e rio, como é que pode uma coisa dessas? Ainda assim, penso, talvez essa seja a solução: uma esquina na encruzilhada, para que possam haver dois horizontes, duas calçadas, duas vias de chegada e partida. Uma forma plural de vida, que consiga saber atravessar a rua sem atropelos, venham carros de um lado e do outro; passa-se de uma calçada à outra sem tumulto, suavemente, como um estado de amor a tudo. Demanda o triplo de atenção, provavelmente, qualquer deslize pode ser fatal. Há mais barulho, nas esquinas, e por isso se preferem às vezes casas a meio de quarteirão. Onde a vida corre mais calma, há vizinhos a ambos os lados. E os carros só passam na frente, sem surpresas.

Ruas convergem inevitavelmente para esquinas. E as esquinas tendem a deixá-las passar, livres, em seu caminho reto; às vezes as ruas sequer olham para ver quem vem do outro lado. Mas há as que param nas esquinas e olham de um lado e do outro, sobretudo antes de atravessar e seguir caminho. Exercitam mais a atenção, estas. O estado de presença. Às vezes demoram-se, vontade de serem lentas. São ruas presentes, de olhos abertos e sorrisos silenciosos. E algumas ficam, e deve ser bom tê-las na própria esquina.

Pergunto-me o que levará um sujeito a vender a sua esquina. Cansou-se do mundo? Desiludiu-se? Caçaram-lhe a vontade de atravessar para o outro lado? Ou talvez tenha atravessado. E tenha se mudado de esquina. Não é preciso viver a vida toda na mesma calçada de sempre. Os caminhos estão abertos ao querer dos passos: basta querer andar e atravessar a calçada. Ou comprar uma esquina e viver nela com a tranquilidade possível, dois endereços diferentes à escolha, duas direções que não se anulam nem se impedem. Nada de singular nelas: tudo plural, como eu hoje, aqui diante da tela.

17/02/2012

Vida virtual

A noite ofereceu-me bons papos, daqueles que nos mantêm acordados sabendo que o lógico seria um deixa-disso-vai-dormir. Quando a distância impede que os olhos se vejam, as letras que surgem aos poucos nas janelas de conversa parecem fios tecidos com a presença cheia de afeto do outro. 


Como é que se interrompe uma coisa assim? A saudade se atenua. As dores se dividem. As alegrias se espelham. E o bem que um faz tranquiliza o coração do outro.

Prestes a uma cirurgia em pleno carnaval, um amigo antigo, daqueles sem data, nem de produção nem de validade, embarca numa conversa que parece falha de sentido – mas há um senso por trás, e eu sinto-o enquanto primo as teclas que desenham o que escrevo na tela. De repente a vida virtual tão real, as palavras querendo ser, não há vazios, mas excessos de sentido. Um exagero concreto de tudos. 

Uma outra presença flutua pelos mesmos céus por onde eu mesma flutuo, e encontramo-nos lá, assim como nos encontramos neste canto de tela. E de repente a presença se concretiza, frágil e convicta ao mesmo tempo. Leem-se as entrelinhas, o que deixa de ser respondido, não se insiste, e aprende-se o tempo, o senhor de tudo, o tempo, o tempo.

Tenho recuperado, graças aos recursos virtuais, amizades que o tempo fez questão de iludir. Da primeira infância, pessoas que demoro a reencontrar na memória, as fotos ajudam mas não parecem da minha vida. Já outras são reencontros tão alegres, tão pouco comedidos, que parecem ser de fato de pele e osso, sangue e músculos que se reencontrassem num abraço caloroso. E ainda assim, mesmo sem o corpo a corpo que valeria um beliscão, é tão bom saber que estão lá, que não nos perdemos achando que não nos encontraríamos.

Amigos que só existem aqui inspiram-me um tanto de pensamentos. Alguns conhecem tão bem a minha escrita que a saudação já os faz perceber o meu estado de espírito. Vejo o que me dizem, com a liberdade que confere o nunca nos encontrarmos frente a frente, uma intimidade que se pode mais forte, e tanto se me dá que seja ilusão ou invenção o que contam, o que dizem, o que respondem. É alimento da mesma forma, e eu seleciono e aproveito tudo o que aos meus olhos posso aproveitar. E é muita coisa - são muitas, muitas palavras, que se juntam às que já vivem em mim e me fazem desaguar em forma de escritura no mar de papel que me rodeia. Só me resta agradecer.

16/02/2012

Calmante de ânimo


Nada como um dia após o outro, sobretudo quando os que se vivem parecem ter 48 horas - parece até que o dia é o mesmo, mas na verdade verdade não: já é outro, dentro do mesmo. O texto anterior deixou muitos incomodados. Uns me aconselham ao longo deste dia que são dois a arrumar gavetas, receita infalível da avó do missivista, que via na atitude uma predisposição a arrumar a própria vida. Outros se espantam e soltam um “Como assim, você muda e tá desse jeito?! Volte, corra!”. E tem os otimistas: “Relaxa, Ana, é claro que você vai se adaptar!”.

E tudo isso me cria uma orelha na frente da pulga. Melhor escutá-la (à pulga).

Adaptar tem a sua origem lá atrás – lá onde a raiz vivia sozinha, solta no espaço, pronta e adequada ao uso. Uma palavra apta. A ela juntou-se esse sufixozinho tão pequeno e simples,um ad que parece uma brisa de verão, leve e tão fina que mal se sente já se foi. E que se apresenta em outras palavras, que vêm até ao caso.

Como admirar. Lá está o sufixo a introduzir uma das palavras mais bonitas e evocativas do latim clássico: mirari. Surpreender-se, encantar-se, aturdir-se.  Se recuamos um pouco mais, chegamos a mirus, aquilo que é maravilhoso, estranho e digno de nota; nem sempre agrupamos essas três palavras numa mesma intenção, mas pensando bem... quantas coisas que nos rodeiam são maravilhosas, notáveis... e tão, tão estranhas. Tanto que quase as deixamos de lado, ou olhamos para outro lado fazendo de conta que elas não estão ali, tentadoramente maravilhosas e notáveis. (Os falantes de castelhano têm sorte: quando olham alguma coisa, siempre la miran!)

E, assim que a tudo isso se junta o ad, junta-se um “além disso”, um “para”. Admirar é por isso um "para se surpreender", "para se encantar", "para se aturdir" com tudo o que é maravilhoso, estranho e digno de nota. Esse olhar com encantamento é justamente o que se precisa quando o assunto volta – ou seja, quando é preciso ficar apto e pronto outra vez. Explica-se essa necessidade insana de se adaptar, o tempo inteiro, a tanta coisa. Tanto que até inventamos um "readaptar", para que fique claro que é preciso lembrar de se aturdir de novo com aquilo que já nos aturdiu antes. Ufa!

Para tornar-se apto mais uma vez (seja lá ao que for, à vida, ao cotidiano, ao amor, a si próprio) é preciso ajustar, modificar, encaixar e fazer caber. Movimentar a alma e o corpo na direção nova que se manifesta; sair da zona de conforto; penetrar no desconhecido; aceitar as mãos estendidas sem saber o que é mesmo que elas contêm; aprender novos números de telefone; conhecer as outras pessoas que fazem parte do próximo futuro. Tanta coisa. Mas sobretudo admirar e admirar e admirar. Pra que fique mais fácil o adaptar.

E é assim que as palavras nos salvam. J

Nuvens


Nem adianta o céu azul lá fora, menos ainda o calor que se anuncia para perto do meio dia: há muito pra fazer e quase nada daquele ímpeto necessário ao cumprimento das coisas. Passeio pela casa como se não me dissesse respeito tudo o que precisa acontecer. Faço listas que posso imaginar cumprir, mas só até o momento de terminá-las. Rasgo-as. E começo outras.

Ao menos comprarei o que falta. Embora disso dependa sair, andar e escolher. Não quero nenhum dos três: quero o estado de parada atenção interna, e mais nada. Há um vulcão dentro de mim em processo de doma, e eu quero perceber o exato momento em que o que é não basta e o vulcão consegue galgar-me a superfície. Para que aprenda qual é o momento, e o momento não me surpreenda ao abrir a porta.

Alguns dos filhos aparecem a intervalos regulares. Não posso ajudá-los, cada um de nós numa solidão de compartilhamento difícil.

Há experiências de vida assim; descem lentas como orvalho a meio da madrugada, escorrem como luzidios fios de cristal quando a alvorada se anuncia, e se transformam em mil cores boiando num lago em que mergulho a minha sede, mas sem conseguir saciá-la. Porque o lago é um espelho, e deste lado só vejo o reflexo. Sem mergulho. 

Só nuvens num dia cor de azul celeste.

14/02/2012

Cratera de caixas


Consegui encontrar um espaço no meio desta casa-em-mudança-e-obra para escrever. Parece uma cratera brotada no meio das caixas – olho em volta e só há caixas e caixas, uma certa penumbra e um silêncio que (descubro) só o papelão provê. Um silêncio de base sepulcral, naquilo que de sagrado e eterno tem um sepulcro. Sinto-me em casa, rodeada das coisas que a constituem.

As montanhas de caixas não obedecem ordem alguma, é mais um caos criado por todos os que descarregamos o caminhão e precisávamos andar rápido sem saber qual a direção – servem-me de apoio para todos os papeis, diagramas, listas, desenhos, folhetos que me acompanham nos últimos meses. Mantêm-me ancorada à história que escrevo, que se desenrola diante de mim de formas surpreendentes e que aguardava pacientemente por um pouco de espaço qualquer que lhe permitisse permanecer em estado de desdobramento. Um lugar em que pudesse deitar-se ao meu lado e continuar o seu andar. Estou feliz por termos nos reencontrado.

De vez em quando alguém vem me visitar – espreita por cima das caixas e ri. Ainda não acredita que, de fato, seja possível que eu esteja trabalhando. Estou. E quando saio preciso esgueirar-me por entre duas caixas, apertadas e sinalizando que a vida é provisória o tempo inteiro. É de tal forma apertada esta cratera de escrita que ninguém me acompanha, porque não cabe. Como diz minha amiga Suzana, porque não tem cabimento mesmo. Estão estreitos os meus lugares.

Gosto de ficar aqui, e perco-me olhando as caixas, todas da mesma cor, todas paradas esperando o tempo voltar e olhar para elas. Gosto da ideia de criar uma margem de tempo que me faça esquecer o que contêm, para que a cada uma aberta eu sorria e me divirta com a infinita e proverbial capacidade da minha família de guardar todos os inúteis e ricos detalhes da vida. Mas para isso é preciso que o tempo faça seu caminho de forma ampla, e enquanto isso eu vivo dentro do mundo que se criou dentro de mim, esta história paralela, onde me dou ao luxo de ser vários, que absorvem de mim partículas esparsas, personagens a quem as contradições nem criam problemas nem afligem. Aparecem-me como fantasmas amigáveis, têm nomes e biografias, e apresentam-me as suas dores e os seus sonhos para que, de formas que desconheço, os converta em meus próprios.

As caixas à minha volta permitem que pense o passado uma e outra vez, que reveja na sua opacidade baça as cores dos milagres cotidianos. Encosto-me a elas um pouco como se fossem a salvação dos pedaços que em mim vou desencaixotando aos poucos, ainda surpreendida pelos rumos que a vida toma sem nos perguntar quase nada. É um alívio ter onde me apoiar sem sentir perigo.

10/02/2012

Dia de casamento



À Mainara e ao Thadeo

Dois amigos queridos casam-se neste sábado à tarde em Botucatu. Espero que o sol sorria de manhã, menos inclemente talvez do que nos últimos dias, e que quem sabe à tarde a brisa da serra nos alcance, e possamos refrescar os pensamentos para melhor acompanhá-los.

Convidam-me para madrinha, e ao Ricardo, meu companheiro de vida, para padrinho. E automaticamente penso em nosso próprio casamento. Não no dia em si, mas no seu processo, no seu deambular pelos anos, nas idas e vindas, voltas e contravoltas. Se me perguntam se é difícil manter um encontro de tantos anos, encolho-me para ver mais de perto o que são esses anos - sou pequena perto deles. Não sou mais a mesma, nem ele é mais o mesmo. Parece-me que ele se transformou mais do que eu, à medida do que foi preciso, à medida do que as urgências pediram, do que as dores exigiram. Mas dizem-me que não, aqueles que nos conhecem, balançando a cabeça como se eu dissesse alguma bobagem – mudamos os dois, em consonância conosco mesmos.

Casamento é processo de mudança a tempo inteiro. De conquista de controle dos próprios fantasmas, para que a existência do outro possa ser a que deve, a que precisa; um interregno em que espaço e tempo abrem-se para a compreensão de que o caminho mútuo é composto de dois caminhos em separado. E que os caminhos em separado estão abertos, mas precisam de proteção, para que os tropeços não provoquem dores desnecessárias.

Porque casamento dói. Claro que dói. O tempo às vezes não é um uníssono, nem sempre a sinfonia é harmônica. Mas é música, o tempo inteiro, é Palavra e som entrelaçados em dois corpos que dançam sempre, de frente ou de costas, e seus ouvidos precisam acolher as músicas de cada um sem julgamento. Tem um quê grande de entrega, e pouco espaço para tudo o que é raso. Aqueles que se aproximam devem saber disso, porque ao chegarem à anteporta estacam e pensam de novo se vale a pena fazer-se presente. Quando o fazem, sabem o que arriscam, porque o reino da intensidade vive do lado de dentro, compromisso de vida que se quer acima de aparências e convenções.

Penso no que poderei ofertar a esses dois amigos, qual das minhas mãos devo aproximar para que o peso do tempo ao passar se torne mais leve, para que o coração sossegue quando o descompasso for a regra, quando o que parece falta alheia seja a grandeza daquele que se reconstrói todos os dias. Porque tudo isso será, e é bom que o seja, porque depois de cada tempestade a bonança é cada vez mais gloriosa. A mão que aproximo é a que previne o sentimento de posse desmedida, a que alerta a vontade diferente inevitável – uma mão que acolhe e diz que tudo faz parte. E que às vezes é preciso deixar o tempo passar, respirando até o âmago de si próprio para que o outro possa ter oxigênio. E, nunca, jamais, aquietar o próprio coração na dor do coração do outro.

Enquanto preparo a roupa que vestirei no dia de seu casamento, penso em meus dois amigos, no seu encontro, nas voltas que a vida deu, bem à minha frente, para que o avistar-se mútuo fosse possível. Testemunha ocular da história, posso dizer-lhes que a predestinação que sei sentirem está exposta em muitos momentos partilhados – o universo conspirou enquanto respiravam as próprias vidas. Que a vida que escolhem neste sábado seja amparada pelos universos da luz e que, enquanto dure, pese o quase lugar comum da poesia, seja eterno e chama o amor que sentem.

09/02/2012

3 tempos


Anteontem

Lição de casa de filosofia: mãe, preciso saber o que você pensa: como você prova que existe? Descartes aflora rápido mas os lábios se controlam. Descartes não sabia de tudo, e filho quer saber o que eu penso. Portanto, ele sabe que penso, não adianta apelar para máximas abstratas. E não é só essa pergunta, mas uma série delas: como você prova que o que você vive agora não é só uma lembrança? Como você prova que isso que você vive é real?

Olho para dentro de mim mesma, e não consigo provar-me que existo. Procuro-me por todos os lados, perdida que fiquei dentro de um outro, e aí respondo-lhe: é o outro que prova a minha existência, que sou eu sem o olhar do outro? Quase lhe falo de alteridade, mas não vem ao caso mais um conceito jogado no espaço.

Ontem

Os sons do mundo ficaram mais fracos – apesar dos dois ouvidos congestionados pelo excesso de água dos últimos dias, piscina, chuveiro, piscina, tentando driblar o calor que assola por poros e veias, descubro que são todos os sons do mundo que ficaram mais fracos, e não apenas aqueles que dependem dos ouvidos para se fazerem ouvir. Os sons do mundo ficam mais fracos e eu mais fraca diante deles.

Hoje

Conceitos desfeitos como pó. Um estado de desconceituação. A mente não gosta, sai em passeio de buscar respostas. Porque eu não as tenho, e aviso-a: deixei-as dentro do outro. Desfiz-me de mim mesma, e meus olhos não dizem tristeza, só dizem que não estou. Não estou nada.

Porque durmo e acordo com a certeza de estar, mas um vento áspero vem e me derruba a alma, um hálito acre atravessa-me a pele e me desconcerta, me desalinha. E me diz que é perfeito. Mesmo sem ser. Porque a perfeição só existe a caminho. E as palavras tornam-se estátuas de pedra entre os meus dentes, salitre queimando o céu escuro da minha boca, vazio das estrelas-palavras que o povoam. As palavras secaram-se. Calaram-se. E eu com elas. Eu com elas num limbo, o silêncio pesado, angústia por trás das hélices de um ventilador ligado.O lugar de onde nascem fechou-se, inerte, à espera não sei de que: morte, torpor, agonia? Há um voo de pássaros sem sentido defronte da minha janela, um sem razão repentino, tempo e espaço escoados de repente para fora da minha pele. Desrevisto-me com uma sensação de peso que não conforta. Estou sozinha dentro de mim.

06/02/2012

Vulnerável


Diziam-me hoje (falava-se sobre procedimentos cirúrgicos, talvez) que há cortes que parecem pedir não só precisão, mas também leveza, uma espécie de ternura na sua forma mais lenta, que deixe o sangue escorrer sem violência e sem trauma. Uma forma de dor que mais fortaleça do que determine o princípio do fim. Não sei – cortes são cortes. 

Questão de vulnerabilidade, parece – no caso da conversa, até mais a percepção da vulnerabilidade do outro, ali à flor da pele tão pronta ao corte, do que a consciência da própria. Talvez seja um cheiro diferente, um certo tom que se torna visível assim que os focos da mesa de operação se acendem. Um repentino abrir-se de portais que a mente não explica, e na maioria das vezes nem a medicina. E quem consegue percebe e, além de preciso, é leve e terno e lento. Talvez demore mais tempo, talvez acaricie ao de leve a pele antes de a cortar, para alertá-la, prepará-la, fazê-la saber que a mão que corta é a mão que afaga. Para que o corpo que não é carne deixe de estar vulnerável e se torne pronto. Cortes são cortes, mas há mãos que sabem cortar e mãos que ainda não aprenderam.

Tudo aqui em casa está, esta noite, vulnerável – tudo atento ao amanhã mais que ao hoje, a começar por mim. Quantas perguntas, daquelas que encobrem mal a ansiedade que se instala, pequenos corpos para grandes almas de repente em suspenso sobre a própria vida. Ou nem tão de repente, se pensarmos que estamos todos em suspenso, levitando sobre as razões de cada coisa, às vezes apoiando um pé, uma mão, e percebendo o infinito. Todos vulneráveis, perceptíveis, atentos, como nos quer essa lua quase cheia aqui fora. O mesmo céu que a todos cobre, noite fechada, ruídos ao longe, a esperança equilibrada na aurora que vem chegando. Afago-os nessa escuridão que se formou, minha mão querendo ter aprendido o corte, mas eu mesma sem saber exatamente onde e como estou, sem saber até onde e quando e onde e como ir, para que a vulnerabilidade não se torne insuportável e me faça tropeçar no que não existe.

04/02/2012

Mudanças

Em trânsito. Entre um lugar e outro, o coração entre o batimento e o descompasso, sem lugar certo ainda, oscilando como um pêndulo sem haste. Mudanças são bons momentos para se vislumbrar o que acontece quando se vai e ainda não se chegou. Nada que seja desagradável - muito pelo contrário. A vida no fundo fica mais simples, mais clara, como se se carregassem menos coisas dentro da mala - ainda que a mudança pese toneladas e precise de um caminhão do tamanho do mundo pra carregar o que se parece com uma vida, mas não é a vida. Porque a vida é o que fica do lado de fora, lá e aqui. A vida não cabe. A vida não sobe no caminhão. A vida fica ao nosso lado, este de dentro, respirando em surdina.

As coisas que valem não cabem no caminhão, nem sequer dentro da palma da mão. São instantes fugazes, imperceptíveis, minúsculos, quases nadas que se perderiam não fosse um estado de comoção repentino. A mão não os colhe, são avessos a caixas, têm horror a cadeados, fogem se os tentamos fazer durar além da sua própria natureza. Mas de repente o estado de comoção se anuncia, e aí sim um instante entra dentro de nós, torna-se nossas entranhas, nossas vísceras mais escondidas, essas que poucos veem, poucos ouvem, quase ninguém colhe por entre os dedos sem deixar que caiam e se diluam no cotidiano apagado.

E nesse de repente a casa esvaziada de mim enche-se do mundo do outro, das coisas do outro, das lembranças do outro. Não sei se pedem licença para entrar, mas eu concedo-a, se me compete. E peço, a quem possa competir a licença, a permissão necessária. Em silêncio, de olhos fechados, sem que ninguém ouça ou sequer responda - é o pedir que importa, nem é preciso se ocupar da resposta. Pedir para que a despedida não o seja, mas presença. Para que a ida seja mais chegada que partida. Seja mais encontro que distância medida em quilômetros - desses que se estendem pelas estradas afora, cada uma numa direção, cada uma numa intenção, e o pensamento em uníssono acima do que separa e parte.