27/08/2012

Benvinda


Num certo momento da sua vida, meu pai tomou a decisão de, em vez de comprar uma casa, abrir uma loja de material esportivo. Revendedor exclusivo da Tretorn, marca que patrocinava a sua carreira de tenista, em poucos meses confirmou-se o vaticínio do meu avô: encordoamentos de graça para o amigo querido que nunca lhe negara o ombro, bolas distribuídas pela rapaziada que amava tênis mas não tinha dinheiro para comprá-las, demonstrações de produtos que pouco rendiam – o tino comercial do meu pai abria um rombo incompreensível nas finanças familiares. 

Meu pai viajava, e eu muitas vezes com ele, para torneios e campeonatos. Não conseguia decidir-se: o que era ele afinal? Um jogador em competição ou um vendedor em busca de negócios? O jogador invariavelmente ganhava. E o vendedor esquecia-se de vender, e preferia distribuir faixas de cabeça para divulgar a marca e deixar os outros felizes com o presente. Não sei quanto tempo a loja durou, mas tivemos bolas e raquetes e bolsas Tretorn espalhadas pela casa durante décadas.

Numa dessas viagens a campeonatos, creio que ao Algarve, lembro-me de uma senhora, rosto emoldurado por uma espécie de capacete de cabelo louro, olhos azul cobalto e imenso entusiasmo com o tênis. Chamava-se Benvinda. Eu era pequena, e fiquei encantada com esse nome. Aprendi, com ela, a diferença entre substantivos próprios e comuns: próprio era o nome dela, Benvinda, invulgar e cheio de esperança, ela mesma uma pessoa invulgar, de hábitos diferentes da maioria das mulheres que me rodeavam. Andava sozinha, fumava uma longa piteira de prata e tratava todos os homens por “tu”, numa desenvoltura e alegria que insuflava vida a qualquer ambiente a que chegasse. Sentava-se nas arquibancadas com um chapéu branco imenso, e chamava-me para sentar-me ao seu lado. Ria, apertava-me a mão e comentava cada lance a um lado e ao outro da rede. Não tinha favoritos: eram todos seus favoritos.

Comum, especialmente para ela, era sentir-se bem-vinda. Contagiava-me, o espírito de Benvinda, e era também bem-vinda que eu me sentia por entre raquetes e redes, divertindo-me mais com a observação do público do que com o jogo em si, em liberdade quase absoluta enquanto meu pai jogava e torcia pelos amigos que também jogavam. 

A sensação de ser bem-vindo é poderosa. Uma espécie de sentimento de adequação, de certo no certo, um aquecimento interno que desenha um sorriso leve nos lábios. São horas preciosas, quando nos sentimos assim. Podem ser as cores de três vasos de flores simples que pousam anonimamente em cima da mesa da sala. Ou o pão de mandioca deixado à porta, embrulhado num paninho bordado, com dois galhinhos de flores lilases e o bilhete sem assinatura: “Bem vindas”. Ou o bem-vinda que se ouve, num sussurro quase em silêncio, a meio da noite, como a morada de um reconhecimento, um aquecer que adormece de sorriso interno. Desconfio que andei sonhando com o chapéu esvoaçante de Benvinda pairando por cima dos campos de saibro. Sorria-me, ainda de longe, e acenava-me com a mão, num movimento aéreo de “vem sentar-te comigo, sê bem-vinda!”.

23/08/2012

Hiatos e ditongos



Hiatos, diz-me Aurélio (Buarque de Holanda) são encontros – de duas vogais, uma no fim de uma sílaba, outra no começo da próxima. Criam-se, penso, a partir de um vazio, de um vácuo, uma falha no tempo comum – uma questão de tonicidade, dir-me-ão alguns, mas é muito mais do que isso. É um pulo no desconhecido, breve e rápido, quase imperceptível. As sílabas sentem-no, mas o nosso falar apressado quase que consegue suprimir a falta. E pensa-se que há som sempre, e o silêncio tênue dos hiatos não se escuta.

Usa-se falar de hiato também na anatomia dos corpos: aqui, o hiato é uma fenda ou abertura no corpo humano, um espaço entre duas realidades da carnadura concreta. E é ainda aplicável a qualquer campo semântico: uma lacuna, um intervalo. De onde vejo, um espaço de tempo dentro do tempo, onde quem sabe se respira melhor, onde quem sabe se vê melhor, onde quem sabe se sente com um sentir mais sentido. Isso, se há espaço para o silêncio, porque seja de som ou forma, um hiato é sempre sempre intervalo, fenda, abertura, vácuo. Quanto mais penso neles, mais eu gosto dos hiatos, espaços vazios imperfeitamente perfeitos. Como se uma perfeição feita de mil pequenas imperfeições – as nossas lacunas e falhas e intervalos e silêncios reunidos e em encontro uns com os outros.

Às vogais que se juntam numa mesma sílaba, unidas visceralmente, dá-se o nome de ditongos. Por vezes crescem, por vezes diminuem. Uma questão de entonação, de sonoridade, de ordem das coisas dentro do mundo próprio da palavra. Cresce-se ao dizer o ditongo que contém a palavra “quando”; e diminui-se (paradoxalmente) ao vocalizar o ditongo presente em “mais”. 

A poesia lida de forma livre com os ditongos: cria hiatos para conseguir o tempo e o ritmo certos. Camões assim fez - expandiu ditongos em hiatos, num processo a que tecnicamente se dá o nome de diérese. O poeta clássico, num de seus muitos sonetos, expande a palavra saudade para nos tornar mais palpável a distância que existe entre os olhos de quem ama e o seu objeto de amor. No terceiro verso (veja logo aí embaixo), expande o ditongo da palavra saudade para nos preencher  justamente de mais saudade, para que ela seja mais e maior do que parece à primeira e ditongal vista: primeiro, sau-da-de, depois, sa-u-da-de. Uma percepção sutil e fina do tamanho da falta que sente aquele que ama e está apartado do seu amor, em sílabas que só são 10, como deve ser um soneto, porque a saudade recebeu ar dentro dela.
                   
                     Têm feito os olhos neste apartamento
                     um mar de saudosa tempestade,
                     que pode dar saudade à saudade,
                     sentimentos ao próprio sentimento.


A vida embrenha-se numa sucessão de hiatos e ditongos. Às vezes, espaços que se abrem no vazio, e nos separam em sílabas que se juntam apenas pelo silêncio que se faz entre elas, a supressão do que é comum abrindo espaço ao divino. Outras, espaços que caminham juntos, alicerçados, amalgamados como vogais que não queiram largar-se jamais, mas onde a mão de poeta em cada um de nós escolhe inserir um tempo, um breve segundo de respiração suspensa, um hiato que se esgueira para dentro da cômoda vida dos ditongos, abrindo-a e fazendo-a respirar em liberdade. Porque o mais provável é que a perfeição resida mesmo no que é (ou parece) imperfeito.



O soneto de Camões, na íntegra:

Têm feito os olhos neste apartamento
um mar de saudosa tempestade,
que pode dar saudade à saudade,
sentimentos ao próprio sentimento.

Em dor vai convertido o sofrimento,
em pena convertida a piedade;
a razão tão vencida da vontade
que escravo faz do mal o entendimento.

A língua não alcança o que a alma sente.
E assi, se alguém quiser em algüa hora
saber que cousa é dor não compreendida,

parta-se do seu bem por que experimente
que, antes de se partir, melhor me fora
partir-se do viver para ter vida.

13/08/2012

Ainda a cidade nova...

As férias de julho de dona S. começaram bem. Uma sequência de bingos na paróquia perto da casa da sua amiga D., lá longe, outro bairro, distante do dia a dia. Abre um sorriso assim que me vê, espantada com as ausências maiores que as presenças. Viajo muito, reclama, como é que vou virar sua amiga... Vai bonita, arrumada, atrasada porque precisou fazer a unha. Se vai aproveitar pra namorar? Ora, minha filha, pra que isso? Tou melhor sozinha do que com outro igual meu marido. Gritava, irritava-se com qualquer coisa, queria tudo a seu tempo - seu tempo, e não o tempo do tempo. Muito menos o tempo alheio. Vejo-a andar apressada pela calçada sombreada, enérgica sob a ilusão dos cabelos todos brancos, até virar e desaparecer na esquina.

Queria que eu fosse com ela. Mas eu prefiro ir até o cemitério. Além de não morrer de amor por bingos, prefiro olhar para o tempo que escorre devagar por entre os túmulos, como se água calma que não espere nenhum meandro mais, sequer o desaguar no oceano.

Qualquer dia é dia de visitar cemitério, mas aos domingos há mais gente que se lembra de quem se foi. Aparecem todos armados de mangueiras e baldes, despejando carradas de água, como diria  seriamente minha avó, nas lajes enegrecidas pelas queimadas fora da lei que persistem apesar das multas. Esfregam, trocam a areia dos pratinhos dos vasos, benzem-se entre uma e outra coisa. Causam-me ternura duas velhinhas de preto, parecem um luto gêmeo, assim ao longe. Visitam seus maridos idos, conversam saudosas com as pedras como se elas tivessem os ouvidos deles, e ainda lhes sorrissem de volta, confirmando a saudade imensa que sentem nas planícies do Senhor. Arqueiam as costas de vez em quando, difícil viver assim agachadas, uma fé de coluna esmagada que dói só de olhar.

Vou armada de máquina, para registrar esse Cristo que se levanta acima do horizonte e contempla o infinito, onde o tempo nem passa, nem entra, nem escorre. Onde as coisas são. Plenas, limpas e simples. Imutáveis. Demoro-me, porque me faz bem. Quero o mesmo.

Dona S. volta do bingo agitada - conto-lhe da minha ida ao cemitério e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Afinal, diz-me, foi como ir ao cemitério. Com todos os defeitos, era melhor ir com meu marido e voltar para casa rindo das bobagens que dizia... do que assim, a casa vazia e ninguém pra conversar. E seu olhar é o mesmo das velhinhas de preto, apesar das unhas vermelhas. Talvez porque seja dentro de nós que as coisas sejam, em permanente sobrevivência. É mais fácil atravessar a noite dessa forma.



Mãos abertas


Tenho dois amigos queridos que decidiram abrir cada um as suas mãos para permitir que a vida se cumpra no espaço que formam. A meio de uma crise, encaram-na como oportunidade, como se fossem chineses acabados de desembarcar, e apesar das dores e das lágrimas, das dúvidas e dos tropeços, erguem-se em uníssono e caminham pela praia com leveza. Quase não deixam marcas na areia macia. Devem combinar percursos, só pode ser, porque parecem alinhavar os caminhos que percorrem lado a lado, e é bonito de ver o movimento de ambos, titubeante mas permeado de amor, escapando das ondas pequenas que querem refrescar-lhes os pés, como se voltassem a ser crianças dentro do espaço do seu sentimento. Estamos na praia, já se vê, esse lugar em que a atmosfera é mais clara e fresca, e onde os sentimentos e os sonhos são embalados pelo som das ondas ao longe. Eu me vejo melhor e vejo melhor os outros na praia, talvez por ter nascido quase dentro de uma, talvez porque o som das ondas ressoe na mata e não pare nunca.

Amor, há que explicá-lo. Este que se descobre diante de mim não é o amor que tolera e entende, mas o que se desdobra e respira o ar em volta a plenos pulmões. Amor que se constrói a quatro mãos, amor que se perpetua em outros que lhes servem de âncora e abrigo, amor que se espalha e ecoa nas árvores em volta, e é bom, e simples, e simplesmente é. Não há que dizer muito, e há mais de um tanto a calar, porque momentos assim são delicados e frágeis, qualquer palavra mal colocada assume um tamanho que não lhe corresponde, e desfazer os nós atados é uma tarefa cansativa e inglória. Melhor não os dar, os nós, já basta os que temos à nascença. Não há que inventar-se tristezas que não estavam no cardápio.

De tudo, neles, gosto especialmente da impressão de mãos abertas. Eles nem percebem, mas eu os observo, de dentro da minha própria solitária crise, e ao movimento das suas mãos, em vários momentos. Quando se esbarram num repente, quando se encontram sem terem combinado – e se abrem, em vontade de continência do que quer fazer-se seu. Fazem-me pensar no quanto é preciso abrir as mãos para receber o que a vida dá, o quanto fazem falta mãos que se estendam assim como as deles aqui sobre a mesa, abertas, para que as nossas individuais dádivas possam alcançar o seu porto. Triste, quando as ofertas são feitas e como chuva de verão escorregam para dentro dos bueiros das circunstâncias, mãos fechadas agarradas às próprias certezas e necessidades, todos os fantasmas encolhidos dentro delas, suplicando que não nos soltem, não nos soltem, deixem-nos no escuro onde nosso domínio é maior. Nada se guarda de mãos fechadas, e não tem a perder quem não as abre para ter.

Lavo as minhas mãos com cuidado, antes do jantar, limpando-as dos restos do que supus serem presentes – porque há presentes também que se recebem e não são nossos, e esses precisam deslizar pelo ralo da pia, lenta e decididamente. No fim de tudo há uma superfície de louça branca e limpa, recém lavada e ainda molhada. Por um instante, as minhas mãos estão tão limpas quanto a louça, dispostas a se abrirem virgens outra vez ao virar da esquina. Assim que as enxugo, porém, perdem um tanto da sua limpidez. Desço as escadas com elas à minha frente, para que meus amigos, e os amigos dos meus amigos, e deles seus amigos também, possam encontrar espaço para suas ofertas e conforto nas suas mazelas. E digo a meus amigos, mas sem usar as palavras de que tanto gosto e preciso, que nos demos as mãos, e que contem com as minhas, abertas, incondicionalmente. Para dar e para receber.

04/08/2012

Exercício: as aranhas de Isaura


De todos os suspiros que a vida tem-me arrancado, pensa Isaura, este foi o último. O derradeiro. Sentada no banco do ponto de ônibus, deixa o dia arrefecer as cores, indiferente aos demais que esperam, irmanados nessa intermitência entre estar em um lugar e dentro de pouco em outro. Não repara que de repente se senta ao seu lado um homem alto, de olhos grandes e negros, que a olha como se a reconhecesse. Isaura está perdida dentro do próprio pensar, equilibrando-se entre o coração intranquilo e a razão que lhe alfineta a alma. Diante de si não há rua, ao seu lado não há homem de desmesurados olhos negros, no seu passado não há mais ninguém. Tudo ao seu redor tem o sentido da voz de Armindo. E dentro dela, aflito e vazio como um barco que perdeu os remos em alto mar, um braço que luta por estrangular-lhe a voz que cria corpo na garganta. É aí que Isaura pousa a mão, da mesma forma que Armindo a envolveu com seus dedos longos e suas veias de cobre. Querendo mostrar-lhe o domínio que é preciso ter sobre o próprio fluxo de ar. Jamais perca o ar, dissera-lhe. E Isaura olhara-o atônita, o ar todo tomado pelo coração em chamas. Isaura só sabe viver de pequenas parcelas de ar; senão, vagas de fogo invadirão o seu ventre e a consumirão sem piedade.

É seu ônibus que pára diante de si e lhe abre a porta, num sibilar suave de engrenagem bem azeitada. E o motorista chama-a, e mesmo sem vontade Isaura embarca. Senta-se no último banco. Costume. Porque gosta de ver ao longe o caminho que as rodas percorrerão, a alternância de cores dos semáforos; sobretudo quando, como hoje, o dia morre nas ladeiras da cidade plana. Em casa, espera-a o silêncio. As coisas todas onde as deixou ao sair, as lentas aranhas do tempo desfiando um tempo enxuto de memória esquecida. Corre a espaná-las, esse será seu último suspiro, e nem a memória das coisas tecidas ela quer. Que os outros que venham sejam de outro tipo diferente deste, que me corrói o cotidiano até o último fio de osso, diz em voz baixa como se rezasse, enquanto se embrulha na pele quente das aranhas.

Não a espera nenhuma carta, nenhuma flor entreabrindo a maçaneta da porta, forçando um mundo que é só dela. Há muito que Armindo não faz nascer gestos onde se gestam universos – nunca os fez nascer, concorda Isaura consigo mesma em solidão. Os gestos são o meu universo particular.

Mas há uma janela aberta, e seu coração se encolhe, e depois se abre, e depois acena, e depois acende a faísca. E logo depois esmaga-se a si próprio na lembrança da própria mão abrindo a pequena tranca de metal, numa decisão de que o ar entrasse em casa na sua ausência. O ar que lhe falta e que a sufoca dentro da vida construída aos poucos. Não há ninguém nessa casa aberta, nessa morada atenta, nesse reino de sombras. O dia termina, flutua e despede-se. E Isaura deita-se ao comprido na cama, boca entreaberta de quem se quer de volta. Não suspira. O último suspiro já foi suspirado. Só as mãos, que se estendem abertas, teimosas, fazem crescer dentro de si esse peso, essa especiaria, essa forma desconhecida e lenta, a saudade suspirada.


03/08/2012

Dias curvos

Um dia curvo. Tal qual o define o dicionário: que não é reto, nem formado por linhas retas; que não é plano; inclinado para diante.

Curvam-se as horas, os tempos - nada de espaços retos e horizontes infinitos. Curva-se tudo o que vive, indisposto com as coisas que se estendem paralelas. Como se inadequadas.

Como as paredes que sobem retas, as grades dos portões que impedem passagens, as esteiras de um aeroporto infinito, avançando solitárias no meio de luzes sem cor da madrugada.

Um dia curvo. De sinuosidades da alma. De entregas sem respostas retas. Do futuro impregnado nos olhos,  às curvas pela montanha acima, desnorteado, em meio à neblina que transforma cada curva em espaço inóspito. Linhas curvas dos antebraços do passado, dobrados diante do que é inevitável no tempo. Linhas curvas das camisas que se dobram para guardá-las nas gavetas.

Por isso inclinar-se para diante: para que o abismo venha ao encontro e as curvas se transformem em retas, ainda que sejam daquelas que caem. Tudo, menos as linhas estagnadas e circunscritas: é disso que se fazem os dias em forma de curva.


29/07/2012

A quatro mãos

"Instável, mas com coragem", diz-me o amigo ao longe. Quase posso ver-lhe a alma inteira à escuta, na beira do caminho, recolhida atrás das pedras das escarpas, sempre à espreita, esperando ver se a ponte soçobra debaixo do peso das rodas de cada dia. 

Talvez seja mais fácil ter coragem ancorado em algum lugar, penso. E escrevo-lhe. Ele responde, lá no longe onde está: "o bom da âncora é que o barco pode deslizar um tanto...". Sem perder o foco, digo-lhe eu, o foco de onde está a rede que contém o peixe que alimenta o povo - mas eu queria mesmo dizer era da rede que contém o peixe que alimenta a sua alma. Mas fiquei tímida (inibida, se usasse as palavras que ele gosta de usar), mudei o fim, talvez fosse intimidade demais. Como é que se pode ter certeza de coisas assim? Ando receosa das palavras que escrevo aos outros.

Agora, aqui, ele fica sabendo. Que com ancoragem a coragem da alma se fortalece, nas âncoras em que cada um pode se segurar, cordas grossas e seguras onde se apoiar e descansar o peso quando a própria coragem faltar, manca como são todas as coragens quando o dia se põe. Âncoras em que confiar quando a maré levar o peixe pra longe, certo de lá estar quando ela de volta o trouxer. Âncoras que se agarram ao chão que não se vê, tão turvas são as águas que parece não haver mais lugar onde pisar sem cair. Âncoras que parecem nem ter peso quando descem ao fundo do mar, levando consigo a própria carga, trazendo consigo a vida alheia.

"Mas chega o dia em que se deve tirar a âncora, e retornar com as ondas à praia", diz ele, quase parece que me ouviu escrever nesta tela que não vê. A coragem que emerge, é ela quem fala através dos seus dedos que escrevem. Digo-lhe que não se esqueça de guardar a âncora dentro do barco. Porque sei o quanto a coragem se camufla e decide dormir quando menos se espera - quando menos se precisa. Assim:

Atravessa-se uma ponte, com a disposição certeira e a mente lúcida, a vida toda em forma de brilho, nítida e óbvia. Mas há uma curva, uma curva dentro do peito, tão igual à curva do braço de rio que revive na praia, tão do mesmo tom de verde dos lagos que não se mexem há muito. E a curva move-se, e num movimento de quem recolhe o lanço do trigo que afinal não se semeia, a curva recolhe a coragem daquilo que era tão certo, tão claro, tão firme. E aí a âncora. Aí retorna a âncora. Como um porto seguro. 

Há uma gaivota que veio entretanto sentar-se-lhe em cima - meu avô diria que para que me lembre de que há sempre quem nos cobice a fortuna (ele não gostava desses pássaros que roubam peixe aos pescadores). E o amigo diz "gaivota"; e a palavra primeiro não lhe desce, diz, agarrou-se ao cordame do barco, aos seus mastros, aos remos que usa para se manter à tona. E talvez porque lhe pressinta o tom enganador, a palavra não lhe desce, e a gaivota quase levanta voo. Mas não: meu amigo é um poeta em estado latente, e a gaivota dele vai na frente e a traineira atrás, pescadores de binóculo atrás da ave que sabe em que ondas se escondem os peixes. E assim a gaivota fica onde está, ornamento a preto e branco de uma âncora que permanece firme, ancorada no coração desse amigo que já foi, já dorme o sono dos justos e dos corajosos. Amanhã, que é sempre outro dia, lerá.


Da saudade, em estado bruto

Desloquei a minha vida de continente, várias vezes, e deixei perdidas, por entre idas e vindas, pessoas que não encontro mais. Um desterro perpétuo, uma inadequação absoluta por entre os passos dados.

Estou acometida do mais português dos sentimentos: saudade. Saudade específica, do que foi e já não é, de quem foi e já não está, dos que se foram sem despedida, dos que se despediram sem anteciparem o caminho do reencontro. Flutuam ao meu redor todas as Lailais, as Vanis, as Xinhas, as Anas, os Pedros, os Antónios, os Paulos, os Carlos, os Laranjos, os Césares - seres que a cada dia se tornam mais ficção na memória que lhes guardo. Não lhes encontro o rastro - ou é ténue como uma sombra.  E talvez seja melhor assim, porque serão outros, se porventura os encontro. Enquanto isso, enquanto adio a vontade quase incontida de revê-los, reedito-lhes as presenças, sinto-as lado a lado, com as tantas milhas náuticas exaustas de distância de por meio que me impedem um passo, um movimento, um ir ao encontro.

Entenderá o que digo quem se ausentou do próprio passado, quem se absteve de ficar onde estava e se decapitou para novas e longínquas paragens. É preciso inventar-se a si próprio, nessas mudanças, e a reedição nem sempre equivale ao que se perde, nem ao que se pensou que se era. E por isso a saudade, esse sentir atávico da alma que se desprendeu do seu substrato e que ao mesmo tempo sobrevive naquilo que reedita, como um arqueólogo numa expedição das coisas mortas. Em dias como os de hoje, de céu luminoso que não encontra similar dentro do peito, sobrevivem as células que se lembram. E todas elas doem, engolem-se a si mesmas procurando incessantes o que jamais conseguirão encontrar, diluindo ao mesmo tempo as saudades imediatas do que ainda é,  mesmo incompleto. E o amanhã, que não nos pertence e obedece à lei do tempo, de que cor tingirá o oceano quando amanhecer?

Foto do Carlos Marzagão da casa da rua Monte Olivete, em Lisboa

28/07/2012

"Do que em si não se conhece"


“Cada dia de filho que eu tenho descubro dois pais que não tinha.” 

Nem lhe pergunto o que quer dizer com isso, mas um dos filhos além-oceano escreve-me assim, um dia desses. E reconheço o quanto é verdade, porque eu mesma, ao espelho, descubro-me várias que não sabia. Às vezes, reedições. De vazios que imaginava puro preenchimento, espaços que pensei haver deixado atrás de mim, quem sabe resolvidos. Mas não: eles voltam, fantasmas feito plumas que insistem em acordar-me a meio da madrugada. Às vezes assumem nomes, transformam-se em pessoas de ficção, falam e falam e irritam-se porque não lhes entendo as intenções. E aos poucos, conforme me vejo descoberta nessa que pensava não ter mais em mim (essa que de repente meu filho intui existir), eles acalmam-se e deixam que durma. Quando já é dia claro, e os vivos e de carne e osso arrancam-me da cama porque é da sua natureza a fome e a vontade de me ver de pé. O sono, esse alívio, atrela-se com força aos dias em que o universo conspira que assim seja. 

É assim que uma destas noite, em meio à chuva que cai no rio logo ali embaixo, quando me decido a atravessar a ponte estreita que conduz à praia, procurando o sono que me foge, reencontro-me no pavor noturno de ser engolida pela profundeza marítima, no abandono insuportável de quem se esqueceu de me estender a mão. Coisa antiga, de menina ainda sem memória. Eu sequer conhecia, penso, e quase não sei para onde correr o pensamento, sou uma só inspiração aflita, buscando escapar dessa mim mesma desconhecida, em voltas desgovernadas em torno de um qualquer centro.

Aplaco o pânico como sei: dou-lhe palavra. Nome. Escrevo-lhe a história, em meio à chuva e à escuridão densa, à solidão absoluta de um mundo despovoado. E me desdobro em outra, que carrega as várias outras de mim, todas já acordadas e inquietas, para dentro de casa, e lhes dá banho quente para que parem de tremer diante da própria sombra. É assim que nasce, nestas noites de julho, a nova pessoa que andava escondida, que não se mostrava, só difusos sinais noturnos, sopros de partes desagregadas desintegrando-se em ar na noite. Metade do tempo que o sono não atravessa, ocupo-o com palavras, porque de repente ela quer dizer-me tanto, e diz-me, e eu preciso registrar para entender e voltar a dormir.

Quando acordo, dia seguinte, nada disso foi: só um sonho a meio de uma noite mal dormida. As anotações, ainda assim, estão a um lado da cama; ao outro, um espaço imenso vazio, ainda quente e moldado na forma do corpo longe e ausente.

Foto: Tai Ribeiro