07/10/2012

Trapézios


Especialmente no verão, acontecia assim: andava até o fundo do quintal, empoleirava-se na figueira velha, galho ante galho até chegar aos troncos apoiados no muro. Uma perfeita plataforma de lançamento para o outro lado: um descampado com duas relevantíssimas  funções. De um lado, a cadeia pública, envolta num mistério proibido que fazia fervilhar a imaginação; do outro, o espaço onde todo e qualquer circo que viesse até à cidade montava seu acampamento. Outra forma de formigamento, mais acessível ao pulo furtivo de cima do muro caiado de branco.

Andava ligeira até o círculo de trailers e carros, a lona esticada e firme ao centro. Rodeava, rodeava, aflita sem saber como raios faria para se infiltrar e pertencer. Ir-se embora sacolejando numa casa sobre rodas, com uma tarefa importante que tanto podia ser dar de beber ao elefante como fazer brilhar com afinco os sapatos do palhaço. 

Mas o que ela mais queria era ser trapezista. Sentada num dos lugares mais baratos do circo, porque dava razão à avó, "de qualquer lugar se pode ver o mundo", a única coisa que a interessava (além de espreitar os garotos do circo, de quem queria com urgência ser irmã, prima, amiga, qualquer coisa) era o momento em que os trapézios se iluminavam. Antes mesmo de que os trapezistas avançassem pelo picadeiro, a falta de ar subia-lhe da base da coluna e penetrava em seu cérebro como se alguém das profundezas dela mesma a avisasse de que aquilo era ela fora de si, e era bom que parasse até de respirar para prestar muita atenção.

Passou anos com essa vontade de trapézio. O que não lhe garantiu estar sempre atenta aos que foram se apresentando. Alguns passaram sem aviso nem notícia. Quase não lhes guardou memória, esquece-se dos nomes, não sabe bem em que cidade. Os que apareceram sem redes de segurança foram com certeza o seu maior desafio e desacomodação, e talvez seja desses que ela mais goste. Outros, compoem-se com leveza e tranquilidade, um balançar dos tons da espera suave, como se o tempo passasse por cima da tenda e não alterasse o momento interno. Há por vezes os que, de súbito, se misturam e multiplicam - nesses, há vários trapezistas nos mirantes, observadores que esperam que algo lhes chegue às mãos. Quando acontece de um trapézio se aproximar vazio, puxam-no com habilidade com as mãos e formam linhas oblíquas em seus olhares. Ela está atenta do outro lado da estrutura de ferro, mas raramente se mexe.

No fundo, teme os trapézios furta-cor. Atraem-na, são-lhe irresistíveis, uma espécie camaleônica de natureza, um tempero orientalmente agridoce, uma vagem de tamarindo que se chupa até o fim para aliviar o travo amargo que provoca, e que as pessoas nem sabem o quanto gostam - mas querem. Furtam-lhe as cores tanto quanto lhe furtam o sossego; mas o pior de tudo é quando lhe furtam aquilo que ela chama de confiança, e que responde ao impulso que a faz largar o trapézio sem sequer pensar se haverá quem a alcance do outro lado. A meio do voo, descobre atônita que é bem possível que não haja braços que agarrem e segurem e protejam e se façam atentos, e que apenas a aguarde um vazio cor de tarde triste sem chuva. Que pode ela fazer, sem a rede de segurança que nunca guardou na bagagem, com a confiança que se esfuma e o salto que já deu?

Os trapézios furta-cor divertem-se com a confusão que provocam. São alegres e bem-aventurados, mas escapa-lhes um dom: o de se fazerem eternos nos gestos pequenos de um dia após o outro, porque quando nunca nada se espera, é muito pouco o que se oferece.


Imagem: Mariana Gouveia/2009

30/09/2012

Cabelos de sereia

Hoje de manhã decidi arrumar papeis. Colocar em pastas o que pertence a projetos acabados - tão  mas tão recém acabados que me olham espantados de que os queira guardar. Mas é preciso, inclusive para abrir espaço na minha mesa para os que já batem à porta, insistência mansa de algumas semanas. Descubro, a meio dessa lenta arrumação, atentamente lenta em tudo o que me ocupa inteira, que tenho um trânsito poderoso no meu céu: um marte em  conjunção com mercúrio natal, coisa que, aprendo, só acontece de dois em dois anos, e que me trará a sensação de ter bebido dez xícaras de café. Céus! Já devo estar já na quinta, penso. E canso, só de imaginar o que trarão esses próximos vinte dias, tempo que dura o tal trânsito.

Por isso decido andar pelos campos, para quem sabe diminuir toda essa cafeína astral dentro de mim. Não é fuga, repito pra mim mesma, é vontade de procurar. Volto ao mesmo lugar de ontem, na expectativa de recuperar a impressão já passada, mas acontece como tantas vezes: o passado está lá, consigo quase senti-lo com as pontas dos dedos, de mãos dadas com o presente, mas eu não estou. Olho em volta, deito-me ao comprido na relva, como me recomendaria Caeiro, fecho e abro os olhos, mas nada: o mundo em mim mudou. Ouço a minha filha gritar, num entusiasmo que lhe é bem característico: "Caramba, um campo de cabelos de sereia!", mas é o seu grito de ontem, a sua reedição em meus ouvidos treinados em reeditarem os sons. Rio-me quase como me ri ontem ao ouvi-la, nesse êxtase que vê à sua volta, e vejo-a correr para cima e para baixo, flutuando leve por cima dessas hastes que lhe sorriem tentadoras. Mas ela está em casa, desenhando cabelos de sereia, e quem está aqui sou, mais a minha memória feita de tato e ouvido e gosto.

Volto para casa horas depois, fotografias a tiracolo, um atraso já presente do que é preciso fazer hoje. Olho a minha mesa, a pasta que deixei entreaberta para que o passado terminado respire seu último oxigênio. E de repente penso que o passado são conchas que se escondem dentro de si, estrelas do destino em forma côncava. Ele, o passado, sai por uma porta, trazendo atrás de si o futuro; eu permaneço de pé, mãos estendidas querendo esse presente impalpável que insiste em se tornar mais matéria quando já se foi. Como um corpo que crescesse de repente, num trapézio de rugas que aprendo a interpretar quando se faz noite, um corpo feito de hastes maleáveis de silêncio impenetrável, a que a minha filha deu o nome de sereias.


24/09/2012

Luzes e sombra


É de Jaú, a meio caminho entre Araraquara e Botucatu, que me chegam as palavras mais sentidas que tenho lido ultimamente. Abro uma pausa para relê-las e relê-las e relê-las outra vez. Aproximo-me delas por todos os quadrantes, deslizando nesse trapézio oscilante em que se oferecem, sem chão sob seus pés. Quase posso tocá-las, de tão tênues, pequenos fios na direção de um outro que pôs um fim a si mesmo. Para não dizer de quem são, uso-lhe a inicial: R. Personagem de si mesmo, dizendo-se despreparado num tão absoluto preparo, daquele tipo de que apenas as crianças sabem os caminhos. R. estende-me a mão desde o seu vazio, triplicando a força de um ponto final, transformando-o em reticências - reticências que se abram numa maiúscula que lhe inaugure um tempo novo. Mais pleno. Menos doído.

R. escreveu-me de manhãzinha: o que faço com isso tudo que sinto, pergunta. Resposta padrão, a que dou a mim mesma quando me sinto assim (e quando não também): escreve, R., escreve. Em primeira pessoa, jogando-se nas palavras como se seu mais caloroso leito, jogando-as sobre si como se tivessem (e têm) o poder de lavar-lhe a alma, mergulhando na sua densidade, deixando-se permear absorver resolver. Depois vemos, digo-lhe. Lemos juntos. Em pouco tempo, recebo de volta as suas palavras de limpeza e desabafo. Um texto lindo - pena que não posso publicá-lo, penso.

Desculpa-se de há muito não escrever, e ainda e sobretudo da sua "gramática terrível". E eu fico matutando nesse "terrível" que usa com um peso que pressinto; imagino que pense na pontuação atribulada, na concordância invertida, em todos aqueles sintomas que advertem (e curam) uma alma em conflito. Digo-lhe que não há nada de terrível; terrível é ver-se a si mesmo refletido numa tela de palavras que não sejam suas, e que nada digam a ninguém; terrível é ver-se entalado e afogado em pontos e vírgulas e reticências quantas reticências, que não pertencem ao momento da sua alma, e que mais a anestesiam que a inebriam, e mais a afastam do outro do que potencializam o seu juntar-se. Terrível é sentir-se terrível no campo aberto da linguagem, sem conseguir libertar-se de tanta limitação e interdito. E R. não se sente nada disso - portanto, digo-lhe, não use terrível. Deixe-se ressoar.

Gosto da subversão com que as palavras e as pausas seduzem e instigam, aliciando rebeldias desde o miolo do papel. Gosto do gosto que lhes sinto quando se oferecem assim, tão nuas e virgens, e se deliciam entre nossos dedos pelo simples prazer de estarem entre eles, espremidas e molhadas e inteiras e aos pedaços. Nada há de terrível na vírgula que tão bem se coloca entre duas frases que saem entrelaçadas como morte e vida, agarradas a qualquer trapézio, sublinhando toda reticência para que se abra e seja mais e melhor e sempre.


Foto de Álvaro Guedes. 
Exposição "Lágrimas de São Pedro", no Sesc Araraquara, em agosto.

21/09/2012

Urgências e premências

Era uma padaria, hoje de tarde, e ambos pareciam estátuas. Ângela e Mauro sequer se mexiam. Precisei dar-lhes nome, explico a minha interlocutora, sentada ao meu lado: para não afundar nessa tensa presença do esgarçar de um pano, lançada desde onde se sentam, à minha esquerda. Ocupam uma mesa redonda que, em vez de congregar, distancia. (Minha interlocutora alterna um olhar espantado entre o casal sentado à mesa e eu, que não consigo explicar-lhe mais nada e tenho dificuldade em entender o que me diz daqui em diante.)

O pé de Mauro dobra-se, escondido por baixo da cadeira numa vergonha surda, e é imperceptível o movimento que faz, muito de vez em quando. Ângela, olhos verdes que se enchem de água ao de leve, fixa seu olhar na janela, no trânsito da avenida lá fora, nas pessoas que passam através do vidro. Não vê nada, mas ainda assim fixa-se, procurando um ponto de apoio na solidão que a inunda. A sua blusa branca não transpira paz, só uma espécie de substrato do medo que se sente diante do precipício que ela batizou, hoje de manhã, de futuro.

A mão de Mauro está entre as suas, por entre as unhas vermelhas cuidadas. Como o cabelo pintado, destacando o tom marítimo dos olhos. Sim:  olhos verde-marítimo. Como as águas que não rolam do seu peito, depois da descoberta. Sei que os olhos de Mauro estão presos aos dela, ainda que ele esteja quase de costas para mim. Vejo-lhe as hastes dos óculos, e pouco mais. O cabelo ralo, o corpo inclinado num desejo aparência de reconciliação, a jaqueta azul escuro combinando com os tênis em seus pés cansados.

Não há palavras, e a minha aflição cresce. Digo para mim mesma (e descubro que foi em voz alta, porque a minha interlocutora olha-me surpresa) que não irei embora antes deles se movimentarem e resolverem as suas pendências.

Como se me ouvisse, Ângela move-se. Afasta-se do encosto da cadeira, abandona as coisas vidradas lá de fora e embala a fixidez das suas retinas nas de Mauro. Não há nada, em seu olhar, a não ser mágoa. E talvez uma palavra entalada na garganta, aquela que a sua boa educação, contida, calada, não permite tornar-se audível. E talvez algo que poderia soar parecido a "como você quer que eu consiga respirar debaixo da pedra que você colocou em cima de mim?". Mauro é um pequeno animal apanhado em flagrante, a  respiração alterada por baixo da jaqueta. Não tem pedras em suas mãos, seus pulsos são fracos, frágeis, débeis. Quase desprezíveis, ouço-me pensar. E preciso escrever, ouço-me dizer.

Passa-se muito tempo, o suficiente para meu cappuccino esfriar. (A minha interlocutora ri-se. Também ela, creio, escreverá ao chegar a casa. A escrita é uma entidade contaminadora.) Vou-me embora antes que a situação afinal se resolva - tenho horário, o trânsito paulistano não perdoa, os alunos estão à espera, há coelhos frenéticos de relógio ao pulso por todos os lados. Mas não posso deixar de carregar esses dois seres, que mais que provavelmente nunca conhecerei, dentro dos meus dedos. Preciso desembrulhá-los, descarregá-los, desembarcá-los assim que chego ao meu destino, numa brevidade urgente de escrita. A eles e à sua tensão sofrida, ao fim que seus olhares prenunciam e que as mãos querem a todo custo retardar retardar retardar.

É assim, às vezes: como se um risco fugaz de ideia pulasse do que está em volta e se acoplasse aos nós dos dedos, e de lá precisasse sofregamente pular novamente, em busca da caneta, do lápis, do teclado. Mais forte do que a própria vontade, os nomes ficcionais  agarram-se aos  neurônios,  criam vida, independentes de repente dos seres de carne e osso que os fizeram emergir das sombras; colocam-se em contato por mil sinapses desenfreadas. A mim, são capazes de me atormentar por horas a fio, a um canto escondido do cérebro que vive dentro do meu coração, até que capitule. Aí, então, sento-me e escrevo até que algo em mim diga "estou satisfeito". E me deixe descansar, todas as Ângelas e os Mauros em silêncio por algumas horas.


19/09/2012

Flores de ontem


Meus amigos acharam estranho o nome: alstroeméria. Fui conferir e, de fato, o nome da flor que levei de presente é esse mesmo. A culpa é de Claus von Alstromer, um sueco barão que em 1753 recolheu suas sementes e as levou para a Espanha - lá, ficaram conhecidas como Lírio dos Incas. Ainda assim, o barão deve ter gostado de lhes dar o seu nome, tanto quanto eu gostei de tê-las oferecido.

Flores são presentes que gosto de dar. Especialmente de corte, porque demandam o cuidado e a atenção de buscar-lhes um recipiente. Entre todas, gosto especialmente delas, as alstroemérias - além de lindas, duram uma eternidade (ou quase). Associam-nas, aqueles que gostam da linguagem das flores, à felicidade que pode unir as pessoas. As suas folhas crescem ao contrário: a folha torce-se ao sair do talo e ao final elas ficam todas viradas ao contrário, suaves contorcionistas. Como as amizades e outros sentimentos assim, que precisam torcer-se vezes sem conta sobre si mesmos para sobreviverem. Não precisam de tanto contorcionismo, estes amigos: a amizade entre nós não se interrompe, apesar da distância e do tempo que escasseia e impede que nos encontremos como gostaríamos.

Gosto de pensar que as alstroemérias que lhes levei permanecem no jarro da sala, seu recipiente físico, e aí ficarão durante muitos dias, viçosas, coloridas e sobretudo resistentes. O recipiente maior, no entanto, está dentro dos meus amigos, naquele lugar que abrem para o nosso encontro. É aí que esse símbolo que escolho com cuidado, as alstroemérias, encontra seu lugar de verdadeiro acolhimento. Quando há espaços internos para receber e ser recebido.

Como elas, resistimos, alicerçados uns nos outros. Para não sucumbir, para não permitir que o cansaço, a falta de tempo, as voltas que a vida dá impeçam que se veja diante dos olhos, luminoso e altivo, o entrelaçado da vida. À distância, os olhos dos meus amigos abrem-se para a permanência que as alstroemérias conferem ao lugar em que estão, e sei que sentem, por entre as suas flores, a presença concreta da nossa amizade. Tão concreta quanto as alstroemérias da foto: ontem, tentei reeditar essa forma de sentir. E as flores repousam dóceis  e resistentes na janela da sala.

13/09/2012

Suspiros

Dia desses, numa das aulas de Escrita Criativa, uma escritora querida contou-nos a seguinte história.

Seu neto encontrava bastante dificuldade na leitura em voz alta (e em voz baixa, consequentemente): desconsiderava todo sinal de pontuação (especialmente as vírgulas) e, coitado, perdia o fôlego frequentemente. Zelosa, a avó disse-lhe que, sempre que encontrasse uma vírgula, respirasse - que parasse para respirar. Ele retomou a leitura, fazendo da sua respiração, a cada encontro de vírgula, um profundo suspiro. Ela achou graça, claro, mas resolveu não dizer nada. Era um sábado, esse dia, e a leitura prosseguiu entre suspiros virgulados.

No dia seguinte, foram ambos lanchar a uma padaria perto de casa. A avó perguntou-lhe o que queria e ele  respondeu sem titubear: - Ali, aquele doce de vírgulas! Os olhos da avó brilham ao nos contar, e faz um silêncio profundo. Olhamos todos para ela esperando a explicação. - Não entenderam? Ele queria um suspiro!

Uns dias depois, em outra aula de um outro grupo, conto a história. Porque o tema em mãos era, justamente, pontuação. Coisa que as pessoas acham que não sabem - embora ninguém se atrapalhe com ela ao conversar... Chegamos à conclusão de que as vírgulas são silêncios, espaços de tempo em que os sons dão um tempo dentro da gente para se ouvirem melhor. Logo me vem o silencioso instante antes do nascimento, o segundo anterior ao primeiro respirar, ao primeiro suspiro que integra um novo ser à vida terrestre. Quem viveu na Idade Média falava em spirare, e tanto podia querer dizer respirar, quanto soprar, quanto viver. Esse intervalo de silêncio, o sopro, o respirar, mantém-nos vivos e à tona.

Cada aula poderia, tranquilamente, render um texto. De tanto que todos se ensinam, sobretudo quando o olhar atento à palavra se desencontra da lógica da regra, quando a intuição assume a liderança e as palavras se soltam de dentro de cada um, falando elas mesmas do que tratam, do que fazem, do que são, do que querem - quando de repente a escrita se resume a um espaço em aberto, livre, solto, disposto a se doar à nossa mão imaginativa. O diálogo transforma-se, nessas horas, e emerge a impressão de que sabemos muito mais do que achamos que sabemos. Sobre pontuação, e sobre muitas outras coisas - sobretudo quando conseguimos deixar que as regras repousem tranquilamente a alguns metros de distância da vida, essa matéria oxigenada que compartilhamos enquanto respiramos.

10/09/2012

Escanteio

Futebol não é coisa que me entusiasme. Gosto das finais, mas mais da festa das arquibancadas, seu colorido exagerado, do que dos movimentos do campo em si. Divirto-me observando torcedores empolgados, mas nada que além disso realmente me tome por dentro. O que me toma por dentro é essa reunião de pessoas que se reconhecem em coisas simples.

De tudo o que acontece, porém, gosto dos escanteios. Porque se parecem com a vida, naqueles momentos em que é preciso reiniciar uma partida, depois que a bola saiu completamente de campo pela linha do fundo - sem ter, obviamente, marcado gol. Respirar, perceber quem tocou na bola pela última vez e decidir quem, da equipe contrária, baterá o escanteio. São bons momentos para marcar um gol, que uns defendem e outros tentam conseguir. Não sei de estatísticas, mas parece-me que na maioria das vezes (feliz ou) infelizmente não há gol e a partida continua. 

Às vezes, na vida, a partida parece parar indefinidamente. Ninguém se mexe, como se campo e arquibancada decidissem suspender a ação e esperar que os deuses descessem do Olimpo para decidir a vida. Eles não vêm, há séculos. Entregaram-nos a batuta e não se imiscuem mais. Cabe-nos decidir pra onde a bola, pelo pé de quem, e se sairá de uma intersecção de linhas que parece uma encruzilhada, ou da tranquilizadora reta sem desafios.

Curioso que, se a bola sai por uma das laterais, deva ser relançada ao jogo do lugar por onde saiu. Uma saída rápida, um retorno rápido também, sem maiores consequências - essa a tranquilidade da reta. Mas quando sai pela linha de fundo, quando alguém tentou (eu sei, nem sempre, mas muitas vezes) marcar um gol, arriscar-se à vitória, ao sublime, precisa obrigatoriamente voltar ao jogo pelo canto. Deve ser mais fácil, à equipe adversária, tentar um gol nessa posição de lançamento, e por isso qualquer saída pela linha de fundo representa um risco - e se não se acerta o gol, e quem o faz é o adversário, na cobrança do escanteio? Está-se mais perto da baliza, como diriam meus conterrâneos, numa inclinação que a um leigo parece bem interessante.

Como na vida, penso de novo. Dependendo de por qual linha a bola saiu, dependendo do ímpeto, do nível de risco, da avaliação das chances, o retorno acontecerá. O gol que tentou ser marcado pode ser como os burros n'água, pode ser que de repente tudo se volte contra, dentes arreganhados num sorriso quem sabe se de escárnio, ameaça pairando no ar. Nessas horas, não há solução, não adianta olhar em volta à procura de ajuda: parte-se para a defesa, cotovelos com cotovelos, esperando que o salto no ar, cabeça em direção à bola, seja o suficiente para desviá-la do caminho da rede. Quando não é inevitável, costuma dar certo.

06/09/2012

Palavras perigosas


Avanço noite adentro olhando de soslaio para as tarefas que preciso cumprir – seja terminar o romance em mãos até o dia previsto, seja dar andamento à tradução com prazo. O olhar que tudo me devolve é esse: tarefas sem cor a serem cumpridas no tiquetaque do relógio. Por isso, faço uma pausa para inventar outra coisa, para que as horas que se aproximam me sejam produtivas. Palavras em forma de crônica às vezes servem para isso – para desempoeirar a noite, para temperar as horas de qualquer sabor que se invente mais colorido e transforme tarefas em alvos a serem atingidos alegremente.

Passei o dia com uma ideia em movimento dentro de mim: dos vários perigos que rondam as palavras, o maior deve ser o que ronda as que agregam no seu começo o prefixo sub. Tudo o que vem depois dele, antes mesmo que comece a ser, apresenta-se logo diminuído. Como uma maldição, uma sentença, um aviso em letras garrafais. Casas subavaliadas, por exemplo: moradias às quais não se presta a atenção devida. Palavras subentendidas: correm o risco de nunca serem realmente percebidas tal qual se queria, e tornam-se menores em importância. Atitudes subreptícias: esgueiram-se por onde não devem, e tornam-nos menores do que esperamos tornar-nos. Propagandas subliminares: atingem-nos sem que possamos nos defender, e esmagam-nos até sermos menos do que somos.

Estimar é gostar de alguma coisa, ou pessoa, e cuidar dela. Da maneira como ela precisa, que às vezes não é muito exatamente a nossa própria maneira. Uma arte, desapegar-se de si mesmo para agregar o outro, dar-lhe o valor que tem, partes diferentes confundindo-se num todo maior, sem subs de permeio. Quando se gosta menos do que o outro merece, e quando se cuida menos do que o outro precisa, subestima-se o que ele é. E ele diminui. 

As palavras podem fazer-nos definhar. Por isso o perigo.

Em momentos assim, é como se mergulhássemos o ouro que temos nas mãos em águas turvas. Perdem-se as mãos e perde-se o brilho. Desperdiça-se tempo, dedicação, atenção, pensamento. É preciso, a todo custo, equilibrar opostos, desviar de contradições, aproximar o que é diferente através da aceitação – e talvez a mais difícil seja aquela que nos diz respeito, a nós mesmos, as nossas pequenas diferenças, agulhas espetadas em nossos pontos mais sensíveis. Não somos iguais o tempo todo, mas não precisamos ser subnada: como vários eus que se encontrassem e transformassem o espaço entre si numa festividade alegre.

Às vezes antíteses, às vezes paradoxos, nossos sentimentos tendem ao inteiro, mesmo quando os tentamos converter em subprodutos da nossa matéria. Não se pode viver em subtração, em subdivisão, num subtempo que tenta a qualquer preço converter-nos em subpessoas, vivendo às metades cada parte do dia, deixando para logo mais o que deveria estar e ser, estendido em nossas mãos, a todo momento.

É preciso guardar o ouro no lugar em que brilha, e não nas profundezas do que subjaz. É preciso sobreviver. E as tais tarefas, que de longe pareciam submeter-me a uma prisão sem grades, reluzem diante de mim como a própria sobrevivência. Deixo tudo em mim em aberto, e avanço para cada uma delas como se de ouro puro se tratasse. Limpando os sub que se interpõem entre a vida e eu. Arejando os quartos onde a vontade mais profunda se detém, à espera.

05/09/2012

Exercício: a personagem, ao acordar

Como se a pele descamasse para dentro, lembra-se Isaura ao acordar. Como se todos os toques do mundo, os sutis e os mais densos, fossem absorvidos por uma camada de derme invisível, interna, que os microscópios insistem em não detectar. Deve ser assim, pensa, que as pessoas se compõem. Das marcas por baixo da pele evidente.

Isaura demora-se na cama. Procura dentro de si os toques mais antigos, aqueles que a fizeram nascer e brotar para a vida, os primeiros dedos que imprimiram as suas dobras infantis. Estão lá, pressente, como condições que outros impuseram ao tato que construiria durante a vida inteira. Lembra-se da mãe, dos irmãos, da vida de pequena, tão fácil de ser vivida enquanto sequer era pensada. Uma maciez que acoberta os bruscos redemoinhos da vida, todos eles prensados nessa pele de dentro, escamada, transparente.

O cheiro que cada tamanho de amor plantou por entre os seus poros está lá, nessa fina película de memória táctil. Encostam-se uns aos outros, esses cheiros feitos de poros alheios, filtrados e perenes. Descansam imóveis, numa forma quase intacta de memória. Isaura só pode vê-los de fora; perderam o aroma, são só formas estelares de escamas de pele que entraram dentro de si em vez de se espalharem no cosmos.

Não podem ser trazidos à tona, e é essa percepção que faz com que a presença morna do cobertor contraste com o frio de fora. Isaura deveria levantar-se, de um pulo, concretizar-se no dia de hoje. Mas demora-se, como raramente faz. A sua pele de fora ainda se ajeita no dia de hoje, incapaz de relacionar-se com a teia de vibrações antigas que a faz ser quem é. E sem querer, muito sem querer, Isaura incomoda-se. E sofre. Sofro de mim mesma?, pergunta-se de olhos fechados, resistindo à tentação de abri-los e perceber o quanto a sua pele de fora está dentro do presente.

Talvez se soubesse o que fazer com o seu tato de hoje. Talvez se as rugas que colecionou vida afora não a lembrassem da passagem inabalável do tempo, seus começos e fins anunciados. Talvez se houvesse viço nessa pele seca pela falta de chuva. Talvez se seus olhos tivessem a capacidade de ver através de todas as camadas. Talvez se conseguisse reter dentro do espaço que formam os seus dedos a presença etérea de Armindo, Armindo longe, Armindo não sabe onde, Armindo que a deixa de rastros, Armindo que se ausenta e lhe oferece com mãos quentes um vazio feito de luz e solidão. Mas a vida acorda toda sins e nãos, os talvez não têm espaço e Armindo, Armindo escapa por entre os dedos, desliza pela palma da mão e escorrega para o silêncio.

E Isaura levanta-se. Toma banho. Arruma as suas coisas, quase maquinalmente, preparando-se para vestir a pele com que o mundo a reconhece. E pergunta-se, enquanto fecha a porta à chave, se conseguirá suportar-se ainda muito tempo.