29/05/2013

Homeostase

Minha vida é uma homeostase entre o que eu quero, deixei de querer, e o que sei que nunca vou ter.
Moreno Ribeiro

Entre as várias bençãos que se anunciam e se estabelecem ao se terem filhos, algumas estão no campo do imponderável. Um dos que tenho a sorte de ter trazido ao mundo aponta-me, desde o outro lado do mar, uma porta de saída para a aflição do momento: homeostase. Demorei um tempo até conseguir acessar a vaga gaveta onde foram alojar-se as aulas de biofísica. E o que lá encontrei foi  algo relativo a equilíbrio, o que é bom e necessário, e eu diria até que urgente e inadiável.

Acontece em sistemas abertos, a homeostase, e dedica-se a regular o ambiente interno para manter uma condição estável. Quem anda por perto de mim nos últimos dias deve estar gargalhando da precariedade homeostática que vem observando...

Os sistemas homeostáticos, que são abertos, e por isso se deixam permear, às vezes até invadir, além de extremamente estáveis são, ao mesmo tempo, muito imprevisíveis. Tão imprevisíveis, coitados, que passam a vida imaginando e organizando formas de manterem sempre e a todo momento o próprio equilíbrio. Parecem gente. Nessa doidice de se manterem balanceados, usam duas formas de se estabilizarem. Uma positiva, outra negativa. Ou colocam em ação uma força contrária que discipline aquela que se descontrolou, ou dão o gás todo a essa descontrolada, até que ela se canse dela mesma e decida parar de causar (espero ter entendido direito...). E assim os incomodados se retiram e o belo do sistema mantém-se aberto e equilibrado. Parece um sonho. Um tanto paradoxal, já que essa coisa aberta é, ao mesmo tempo, estável e imprevisível...

É assim que anda meu coração, para quem se pergunta a troco do quê tudo isto. Como de praxe, aberto: quem quer um coração fechado?! E, como sistema que é, porque composto de tantas partes, busca tenazmente o equilíbrio e com a mesma tenacidade perde-o de vista a toda imprevisibilidade que se apresente. Costumava, nos tempos idos do antigamente de uns anos atrás, ocupar-me do retorno à estabilidade através da retroalimentação positiva. Mas de repente (dizem-me aqui no bate-papo que deve ser da idade, só não sei de quem) parece que me dedico com afinco a retroalimentar-me negativamente, dando o gás todo àquilo que me desnorteia e, pasme-se, fere!

Este meu filho, com poucos minutos de nascido, olhava para mim com olhos de não reconhecer o mundo a que chegava. Hoje, que não tenho seus olhos por perto, olho-o nas palavras que escreve e vislumbro dentro de mim o mundo que quis construir no dia em que ele chegou. Graças às suas palavras, e ao meu coração que teimosa quero manter aberto e pulsantemente amoroso, tenho as minhas de volta. Com alívio imenso, porque o silêncio dos dedos que escrevem é o pior de todos os silêncios, próprios e alheios.


(Para quem sentir falta de saber a que propósito essa página de um livro, fotografado há semanas em São Paulo, eu sugiro que leia de novo e crie o seu próprio propósito. Vacas são seres que ruminam, e que precisam digerir as coisas várias vezes até estas se tornarem  parte delas mesmas.

22/05/2013

Escavação de memória



Marisol desembarcou em Guarulhos hoje à tarde. Uma mistura de sentir-se perdida e haver-se encontrado. Está sozinha, tudo lhe parece grande e lhe é desconhecido, mas ainda assim consegue encontrar um espaço para si mesma numa cidade em que a memória está por todos os cantos. Com a mente cheia de imagens, começo da ação da memória, acaba de sentar-se na mesa ao meu lado no restaurante espanhol para onde me deslocaram nesta noite paulistana.

Marisol olha o escuro noturno pela janela, protegida pelo voil da meia cortina. Encolhe-se na cadeira em que se senta e está vestida de negro. Ninguém a seu lado. Balança a perna cruzada com o ritmo de quem espera algo que não acontece. Pediu, como eu, um triângulo alto de tortilla. Neste momento, ocupa-se em esmigalhá-lo com o garfo. Seus dedos lembram-me outros, distraídos e espanhois como os dela. São eles que meus olhos recortam, depois de recortá-la a ela, dentro deste espaço onde as pessoas se acotovelam e pedem, ao balcão, mais um tinto de verano. Apesar do frio.

Marisol abre-me este buraco côncavo escavado dentro dos ossos a que chamamos memória. Depende do osso a quantidade da dor. Os sólidos e espessos são os mais fortes. Ou talvez as memórias mais sólidas e espessas. Não sei. Difícil é andar os dias no trabalho de processar as memórias alheias - digestão lenta, incomum, gritando por enzimas que reduzam com mais rapidez essa amargura com gosto de término que leio nos papeis que me entregam. Cavam buracos convexos, absurdos paradoxos anatômicos que a razão não tem ferramentas para deglutir. E assim, do osso, migram ao coração, que em desespero as engole e faz passar de um a outro ventríloquo, uma e outra vez e outra e uma ainda.

Restaurantes, que são justamente lugares onde as memórias e as digestões confluem, são bons lugares nesses momentos de aperto. Este, em especial, e hoje com Marisol como testemunha, é um desses bons lugares - o tom certo do barulho que fazem as vozes na conversa, os copos ao serem lavados atrás do balcão, a porta da cozinha no entra-e-sai de pratos. Copos cheios, talheres ocupados, mente sossegada. Pode ser que não resolva, mas alivia, enquanto se espera pela próxima manhã.


O Maripili ("tasca española"), fica na Alexandre Dumas, 1152, zona sul de São Paulo. Vale a pena pelo acolhedor salão, nem pequeno nem grande, os garçons atenciosos na medida certa, os preços que não pedem fígados e, sobretudo, a variedade de pratos espanhois de fazer pedir por mais. A tortilla, essa que Marisol e eu comíamos, é das verdadeiras, como se nos sentássemos em Sevilha diante da Giralda e pedíssemos uma igual. Difícil é ficar no primeiro pedaço apenas...  Como de todas as vezes que lá cheguei estava lotada, vale a pena o telefone: 11-5181.4422)



26/04/2013

Liberdade

Era essa a sua escolha. Vago, vazio, ocioso e desocupado. A qualquer ameaça de transbordamento, embalava-se. Como uma caixa hermética. Não lhe interessava nenhuma ocupação de traçado compromisso, e por isso passeava entre aventuras, até o momento em que começasse a pensar que o "a" poderia transformar-se em "des". Não lhe ocorria que a palavra um dia prescindisse de prefixos, talvez porque entendesse que a sorte não é coisa que ande aos sorrisos pelas esquinas, e mesmo que o fizesse... Seus olhos embalavam-se tanto quanto, e nada via, assim todo embrulhado. Aos olhos, seguiam-se todos os sentidos. Apenas o maior de todos, a pele, lhe segredava outras coisas, mas ele estava tão bem treinado no olhar silencioso e vago e vazio, que a pele calava-se e sofria suas dores dentro dos poros.

Esses, às vezes, choravam. Ele diria aos amigos que no verão suava demais. Mas era choro incontido. Talvez ele sequer soubesse disso. Habituou-se a andar com uma toalha dentro do carro, e enxugava sobretudo a nuca. Depois, porque até a pele é daquelas coisas que perde a memória, as lágrimas paravam de suar e a vida parecia voltar ao normal. A tudo as pessoas se habituam. Essa coisa vaga e vazia e ociosa que ele chamava de normal.

Quando ela chegou, e a partir daí sempre que chegava, era a pele que dava o sinal. Não em forma de suor, porque não era choro, mas em forma de calor, porque era desejo. Os olhos não perceberam, estavam entretidos em outras coisas. O gosto ficou-se por ali mesmo: ainda não a havia provado. Mas de repente ela chegou, e chegou de fato, ela própria sem saber a que vinha e a que chegava. E com ela aquele calor que só parecia encontrar sossego e refresco na companhia.

Amoleceu. Abriu espaço, do tamanho possível. Todos os pequenos nadas deixando o que é vago com sabor de preenchido. Mesmo que ele não soubesse dizer, e nem se arriscasse a saber. O que era melhor, isso de tentar nem saber. Poderia acordar aquela necessidade aprendida de ser hermético.

Demorou muito. Mas a pele não tinha pressa, só a do desejo, e essa não é inimiga da perfeição. Abria as portas e ventilava a vida. Por tempo pouco, talvez, e durante um sempre misturado à sonoridade dos poucos instantes. Mas ainda assim era como correr em campo aberto, sob a luz do sol e com os braços desprotegidos de par em par. A pele permitia-se respirar, e penetrava a outra com ousadia e firmeza, como se nunca o medo houvesse feito casa por entre as suas cicatrizes. Então, e durante toda essa eternidade, a felicidade reinava plena, e ocupava.


Imagem: grafite no banheiro feminino do 1º andar da ECA/USP.




18/04/2013

Coisas sem peso

"Ó Ana" - diz-me uma amiga próxima ao coração - "é melhor que escrevas sobre coisas leves".

Gosto de conselhos, e gosto tanto da pessoa que me oferece este, que só por isso vou em busca de coisas leves. Dessas que têm o poder de deixar as pessoas numa espécie de estado de graça que, mesmo não sendo aquele da crônica da Clarice Lispector, dão a impressão de que sim. Apetece-me pesquisar sobre editoras, por exemplo. Estou mesmo à procura de conhecer algumas que há anos aprecio, este é um excelente momento. Vou começar pela Peirópolis.

Ora bem: antes de chegar à editora, descubro que Peirópolis é um bairro rural da muito mineira Uberaba (assim é o google: querendo uma coisa às vezes caímos em outra). Bonito, parece. Pela foto. Durante anos famoso pela extração de calcário. Chama-se assim por causa do espanhol que lá pelos idos de 1911 o explorou: Francisco Peiró. A ferrovia, que naquela época já atravessava o triângulo mineiro e levava os peiropolinenses pelos 21 km que os separam até hoje de Uberaba, passou quase 90 anos colorindo a paisagem com essa linha em movimento que são os trens. Depois, o mundo (essa coisa que nunca sossega, segundo Camões) precisou de energia elétrica, e lá se inundou um pedaço de chão para o lago de Jaguara nascer, hidrelétrica acoplada. Metade da ferrovia virou um ser subaquático.

Anos passados da morte de Francisco, Peirópolis recebe a visita do gaúcho Llewellyn Ivor Price. Nome nada comum a um gaúcho dos pampas. Mais precisamente, de Santa Maria. A mesma Santa Maria enlutada da boate Kiss.

Llewellyn foi estudar no país de seus pais. Em Harvard, USA. Tornou-se professor de lá mesmo, paleontologia. Quando voltou ao Brasil, porque nada lhe conseguia acalmar a saudade do cheiro das terras do sul (e se não sabe do que se trata leia Érico Veríssimo que descobrirá), lá passou as décadas de 40 e 50 em expedições por todo lado. Hospedou-se no Colégio Centenário, escola só para meninas, lá na sua cidade natal, chamado assim por ter sido fundado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, cem anos passada a Independência. Llewellyn devia gostar de ouvir as aliterantes Miss Louise e Miss Eunice, as missionárias americanas que fundaram o colégio, discorrer sobre a sua nobre e grandiosa tarefa, até chegarem à frase que conseguiu sintetizá-la: educar a mente a pensar, o corpo a agir e o coração a sentir. Se eu quisesse pensar em educação agorinha mesmo, escolheria essa frase, o ano em que foi dita e o tempo que nos separa dela para tecer algumas ideias. Mas como eu não quero, só reparo ainda que o Colégio Centenário mudou: na década de 70 (a mesma em que a ferrovia uberabense foi engolida pelas águas) passou a admitir meninos, e o pequeno chalé cresceu tanto que hoje chama-se também FAMES (Faculdade Metodista de Santa Maria). As bandeiras a meia haste ainda ressoam a consternação pelos alunos e pelas famílias soterradas pela dor do início do ano.

Mas eu estava em Peirópolis e para lá retorno, pela mão de Llewellyn. Literalmente. Eram seus os dedos nodosos que desencavaram de dentro das rochas e do calcário ossos e mais ossos, num destino arrastado que todos os palentólogos devem ter em comum. Pacientemente, organizou esse quebra cabeças de uma só cor. Dias e dias. Quando terminou, afastou-se alguns metros, coçou lentamente a orelha esquerda e segredou a seu assistente, um jovem de óculos de aro de tartaruga que mal lhe cabem no rosto estreito: 

- Lars, esse é o Uberabasuchus terrificus. 

Durante todo esse dia, que era de verão mas não de calor desmedido, Llewellyn ficou-se por ali, enamorado da própria recriação, imaginando os 300 quilos que um dia animaram aqueles ossos, os seus movimentos sinuosos de antepassado crocodílico. 

No dia do ano de 1980 em que Llewellyn descansou desta vida, o homem que escavou o país sentiu em si mesmo o peso dos anos e o peso dos ossos. E chegou à conclusão, antes do último expirar, que de nada adianta tentar fugir ao peso com que a vida nos persegue. E eu, que procurava coisas leves com as quais ir-me deitar descansada, acho-me agora com uma meia dúzia de sites que quero ler. Todos sobre dinossauros. E nem um que me dê notícias da editora que me apetecia.



(Para bem da verdade, não foi Llewellyn que nomeou o dinossauro uberabense. Desde as suas escavações em Peirópolis precisaram passar-se muitos anos. O Uberabasuchus terrificus nasceu para a posteridade perto do ano 2000.)

15/04/2013

Questão de discurso

Se tem um assunto que me encantava na faculdade era análise de discurso. Com colegas bem afiados no assunto, era fantástico ouvi-los enquanto se enfiavam por entre os meandros e as dobras do discurso alheio, num strip-tease forçado daquilo que mesmo sem querer se entrega. Basta prestar atenção ao discurso: as palavras entregam, seja pela falta, seja pela presença, mais frequentemente pelas escolhas que se fazem sem mesmo se saber que se fazem.

A imagem ao lado tem circulado no facebook nos últimos dias. Muitos de meus amigos a compartilharam. Alguns são professores. Revoltados com os resultados da análise do Forum Econômico Mundial com relação à educação em 116 países, onde o Brasil se situa abaixo "até" do Azerbaijão (e Chade, e Suazilândia). O "até" é matéria importante, aqui. Deve parecer óbvio, penso, revoltar-se porque os azerbaijonenses tenham escolas e professores melhores que o Brasil - sejam lá eles quem forem e onde exatamente no mapa múndi se situarem. Irrelevante não saber com qual das mil facetas possíveis se reveste a expressão "qualidade de ensino". (Com tudo isso, descobri que os azerbaijanos têm uma questão séria, que é a de como se chamarem uns aos outros: são também azerbaijenses, azéris, azerbeijanos, azerbaidjaneses e azerbeijaneses. Não fosse o tal estudo do Forum, e a coceira que me deu na ponta dos dedos, eu não saberia disso.)

Abaixo da imagem, bem clarinho, está o link da matéria do Estado de São Paulo. Vejamos do que se trata, afinal. As preocupações do Forum dizem respeito à capacidade de adaptação ao mundo digital e ao ensino de ciências e matemática na educação básica. O Brasil não está só "atrás" do Azerbaijão, do Chade e da Suazilândia, mas também  de Lesoto, Tanzânia e Venezuela. Apesar dos "avanços em infraestrutura e de um certo dinamismo do setor privado", a estagnação impera, e um dos motivos é a "qualidade do sistema educacional (...) que não garante as habilidades necessárias para uma economia em rápida mudança em busca de talentos". 

Depreende-se, portanto que 1) o problema não é do governo federal (já que a educação básica é responsabilidade dos municípios e estados), como induz a imagem de Lula e Dilma; 2) nem sequer da educação pública (já que há setores privados dinamizando o cenário, e foram considerados pelo estudo); e 3) nem exatamente uma "vergonha", já que investimentos foram e são feitos, e o Brasil subiu de fato algumas posições desde a pesquisa anterior (da 66ª para a 60ª posição). Isso sem pararmos para pensar de que "Brasil" estamos falando, com estados que ainda não pagam o piso salarial sequer, situação radicalmente diferente do sul e sudeste.

Que a educação enfrenta desafios e nos deixa perplexos de segunda a sexta dentro de sala de aula, não é novidade. Em todos os lugares, isso não é Brasil: é mundo. A adaptação ao novo universo que a tecnologia abre, e à velocidade que o faz, e às mudanças que processa de um dia para o outro, é tão dramática quanto a introdução da imprensa de Gutemberg a seu tempo, respeitadas as diferenças. O mais importante, que de repente esquecemos com frequência maior que a possível, é de quem mesmo é a responsabilidade. Meus amigos professores hão de desculpar-me, mas cada aula abonada, cada aula mal preparada "porque essa molecada não aproveita nada mesmo", cada hora mal gasta em sala de aula fazendo o que já se sabe não significará nada na vida dos cidadãos sentados diante da lousa, cada encolher de ombros para o que se pode fazer mas não se faz, cada desmerecimento oferecido às famílias que "não fazem a sua parte", cada "deixa disso" quando aparece uma possibilidade de mudança, é um tiro no pé de todos nós. Nós, os professores.

Meus filhos estudaram, há pouco tempo, em escolas públicas. Das 6 aulas que teriam no seu período escolar diário, raros foram os dias em que as tiveram. As às vezes quatro "janelas" passadas no pátio sem ter nada para fazer tumultuaram seu processo pedagógico, sua crença na capacidade dos professores de ensinar e na deles de aprender. Relativizaram a importância da escola e desmotivaram a assiduidade.

Não há governo que consiga reverter esse quadro, especialmente se todos os nossos dedos forem ingenuamente apontados para ele. Uma escola de qualidade demanda compromisso e mais compromisso, e o compromisso é, no dia a dia, de seus professores e diretores e secretários e merendeiros e faxineiros, que dentro de uma escola somos todos educadores. É árduo, intenso e altamente estressante. Mal remunerado. Socialmente desprestigiado. Todos os dilemas da sociedade estão dentro da escola, latentes e prestes a explodir. Todas as desagregações, todos os desmantelamentos, todas as desigualdades, todos os pequenos e grandes infernos, todas as carências, infelicidades e sentimentos de inferioridade. Assim como todas as possibilidades.

Se olharmos para trás, a remuneração dos professores teve aumento expressivo nos últimos dez anos (16% em 2011; 22% em 2012, por exemplo). O estado decadente vem de há muito tempo, não é recente, nem provavelmente solucionável a curto prazo. A abertura do processo escolar a todos trouxe mudanças e desafios, e é preciso olhar para o passado sabendo o que se vê, fugindo de discursos tendenciosos e sensacionalistas. As infraestruturas precisam ser utilizadas com sabedoria e as decisões precisam ser compartilhadas. Livros em caixa e computadores trancados dentro de salas fazem sentido? Sistemas de ensino particulares, apostilados, uniformizantes e reducionistas, tomando quase de assalto as salas de aula da escola pública, são o caminho?

Agora, a aula de amanhã, e a de depois de amanhã, precisa fazer sentido, precisa ser o caminho e precisa ser possível. A qualquer custo. A imagem que prega "Seja diferente: não derrube. Ajude a levantar" tem quase o mesmo número de postagens que a cara da "vergonha". Os mesmos murais as exibem, as mesmas cabeças compartilhando coisas tão díspares. Como se não houvesse relação entre elas.

A matéria do Estado de São Paulo:

12/04/2013

Ó Botucatu!

Essa ferramenta absorvente chamada facebook há semanas me pede que defina em que cidade moro. Já me mandou a pergunta de várias formas: parece haver inteligência por trás dessa tecnologia. Hoje, foi uma espécie de enquete: três possibilidades com a bolinha para clicar em cima da minha escolha. Uma delas é Botucatu.

A minha vida tornou-se uma forma itinerante. Há dias em que, se me perguntam onde vivo, direi que no carro. Na estrada. A caminho de. Indo. Voltando. É claro que minha sagitarianice diverte-se com tudo isso, mas outros aspectos do meu mapa franzem o sobrolho e disparam um tsc tsc tsc como se fossem personagens de gibi: "Até quando, filha, você vai aguentar essa toada?". Hoje, curiosamente, o sotaque parece ser de Botucatu.

Poderia ser a cidade escolhida. Ainda mais esta semana, que faz aniversário e completa 158 anos. Mesmo sendo ela a aniversariante, vou-me dar um presente: se o facebook me perguntar de novo  por estes dias onde afinal eu moro, responderei em alto e bom teclar: em Botucatu.

E só tem vantagens. Os bons ares, logo de cara. Mas mais ainda as nuvens, que não encontram congêneres em lugar algum do planeta. O céu noturno, pelo menos este aqui da casa onde vivo, sem luzes nem barulho nem quase pessoas em volta. Gosto da impressão de "vou crescer mas quero ficar pequena" que a cidade me transmite. Habituei-me com as suas ruas, nunca vivi tanto tempo em nenhuma outra cidade. Criei raízes, parece. Aéreas, pode até ser, mas ainda assim raízes. Ou âncoras. Ou essa sensação que às vezes me desconcerta de ser acolhida e consolidada naquilo que quero ser em mim mesma. Em Botucatu e em qualquer cidade. É bom, no mínimo, voltar para cá de tempos em tempos, reencontrar-me espelhada aqui e ali, neste e naquele olhar, como uma garantia de ter, sim, um lugar próprio.

Parabéns, Botucatu!

10/04/2013

O ar rarefeito

Judite está sentada diante da janela da sala. Um dia cinza, como tantos outros. O aquecedor a óleo aceso dentro de casa para secar o ar úmido. O sol esgueirando-se por entre as sombras dos prédios.

Judite está de olhos fechados. Impossível captar-lhe a alma. Amanheceu de boca dormente, o coração à entrada da garganta, as palavras na dúvida de se manterem silêncio ou atravessarem o ar.  Atravessaram, e ficaram da cor do ar rarefeito. O problema, lembra-se de ter pensado, não é a falta do ar. O problema é a sua consistência rarefeita.

Agora, o corpo dói-lhe. Como se cada dor a invadisse feito ar de montanha. 

Talvez por isso se expanda quando ouve a palavra praia. Por causa do ar. Da densidade do ar. Da pressão maior que torna os contornos menos difusos e a vida mais concentrada. Menos neutra. Salgada e presente. Em vez dessa coisa passageira e transparente que lhe atravessa os pulmões e lhe liquefaz a alma.

A alma líquida. Por isso fecha os olhos, a Judite. As mãos não fazem nada, porque cada movimento lhe dói. Doem-lhe as marcas. E a cada dor o mesmo coração secando, entalado à entrada da garganta. O mesmo ar rarefeito. E doem-lhe os tempos. E sobretudo sobretudo a falta deles. 

O dia vem bater-lhe à porta, de mansinho mas insistente. Judite levanta-se do seu posto de observação. As palavras entram por baixo da porta antes mesmo dela a abrir. Enroscam-se em seus pés, lambem-lhe as solas, os dedos um a um. Como se tivessem olhos, vigiam-na enquanto se demoram em cada articulação. Judite sacode-as, como se fossem formigas pretas enterrando-lhe ferrões de açúcar na pele. E recolhe-as do chão, com uma ternura feita da dor que não a espanta, para colocá-las à mesa, a seu lado, enquanto agarra com as mãos desocupadas papel e tinta.

08/04/2013

De mãos dadas

Traduzo há anos. Com interrupções, às vezes mais às vezes menos, às vezes mais bem paga às vezes menos, mas há anos. Atividade solitária e silenciosa, há momentos em que fujo dela o quanto e mais longe posso. Porque é uma arte, e a arte às vezes dói, demora-se, frustra. Doem-me as costas. Demoro horas, meses (muitos), e ainda assim não consigo chegar às palavras de outras línguas que quero perfeitas na nossa. Poesia, então... dureza árdua. Se a descubro presente em todas as páginas (é o caso da tradução que tenho em mãos), preciso mover-me lentamente parágrafo a parágrafo, verso a verso, preciso desinquietar-me do mundo para estar à vontade entre as linhas. E preciso parar, de tempos em tempos, e ir em busca de inspiração nos bons tradutores dos bons poetas.

Começo pela língua original. Saboreio-lhe a riqueza diferente da minha terra mãe. Digo-a em voz alta, para que o ar em volta se compenetre dessa vida própria que preciso absorver para poder traduzir. Perco-me um tempo por entre as páginas. Como hoje, agora à noite, que decido ser tempo de Elisabeth Bishop. Paro muitos minutos diante das letras que formam o poema "One Art". Leio em voz baixa, leio em voz alta, corro ao espelho, saio à varanda, quase que chamo o vizinho para ouvir, e depois repito tudo outra vez. Preciso de apoio e de companhia, a vida tingiu-se de cores sem palavras.

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

De Bishop rumo ao seu tradutor - Paulo Mendes Britto. Encontro-me e aninho-me por entre o ritmo de austeridade mantido; por entre as imagens desconstruídas e reconstruídas com força e ímpeto tão iguais (de joking voice a riso etéreo, de hour badly spent a hora gasta bestamente, de losing farther, losing faster a perca mais rápido, com mais critério); diante do encontro que quase parece fortuito entre mistério/sério/austero/mistério colado em mesmo grau e intensidade a master/disaster/fluster/master. E outra vez leio em voz baixa, e em voz alta, e corro ao espelho, e saio à varanda e quase outra vez chamo o vizinho para que também ele possa ouvir. Apoio e companhia, e as cores tingindo-se de palavras diante do escuro da noite.


A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

E vou e volto entre uma e outra, até que de repente meus dedos se desentorpecem e deixam escorrer e escapar as palavras que trago contidas, retidas, como se usassem um escafandro nessa água toda que de repente me inunda e se recusa a sair. Talvez sejam lágrimas, mas do lado de dentro parecem rios caudalosos. Saem assim, numa dose de serenidade inaudita:

Perde-se de vista o olhar encontrado.
Perde-se da mão estendida aquela que a preenchia.
Perde-se o risco da perda na tentativa.
Perde-se o sentido.
Perde-se o perdido.

Perde-se o centro dentro do espelho.


Perde-se o reflexo no escuro da retina.
Perde-se o outro à entrada da alma.
E ganha-se tudo quando a vida é absolvida e o amor inalterado.


Agora, sim, posso virar-me para o lado e recomeçar a tradução que devo terminar. Mãos dadas com a desinquietação que chegou de presente, e varreu o medo e a dúvida para o lado de fora da porta.




06/04/2013

A cidade grande

Disseram-me ontem que quase-que-estou virando paulistana. Talvez porque, onde chego, falo do trânsito. Ou da reportagem da CBN, que aparentemente meus companheiros também ouviam no caminho. Ou porque me divirto avaliando a probabilidade concreta de chegar ou não na hora esperada, já desistida de me inquietar ou irritar com coisa tão elementar. Começo a descobrir com razoável facilidade se meu caminho é fluxo ou contra-fluxo. Já sei que trechos de pontes das marginais evitar às nove horas da manhã. E qual avenida eliminar do itinerário por causa das obras. Enquanto os pés dançam entre acelerador e freio, a mão escapa para tirar uma foto ao acaso. Querendo reter a beleza escondida por trás da água e do cinza, pendurada nos fios que enfeiam ou enobrecem a cidade. Como sempre e em todo lugar, o que faz as coisas mudarem é a perspectiva com que se observa.

O fato é que, não me sentindo quase-que-paulistana, gosto do que vejo quando cá/lá estou. Gosto da garoa, gosto do movimento, gosto de cada pedaço que preciso descobrir para ir de um lado ao outro. De Franco da Rocha ao Tremembé, do Parque Novo Mundo à Granja Julieta, de Taboão ao Morumbi, são quilômetros, braços dados com trabalho, oferecendo-me a cidade que ainda não conheço, longe da República, do Arouche, da São João, da Teodoro, de Pinheiros e da USP que me são familiares. Afasto-me dos espaços que já me foram casa e paixão e descubro novos recantos. Como essa casa de chá em meio à Chácara Santo Antônio, ruas e minutos antes do horário do filme de logo mais no Lumiére.

A Teakettle, chama-se a casa de chá, já fechou. Fica na rua Alexandre Dumas, 1049. Não quero, e nem minha companhia quer, perder a viagem que nos trouxe - tocamos a campainha e mesmo fechada a casa abre-se, a água ferve e o chá aparece. Friozinho de começo de noite em São Paulo e um bule de chá na mesa redonda. Paredes forradas de simpatia e à vontade, um oásis repentino assim, de mãos dadas com o burburinho lá de fora. "Ainda bem que vocês vieram, assim sei que tenho uma companhia" - dona Silvia, a proprietária, diz-se feliz de lhe interrompermos o descanso. Não há como não sorrir e encher as xícaras e recostar-se na cadeira de palhinha. Ao longe há um eco de poema, mas o longe é dentro, aqui guardado onde decidiu construir-se, nítido e forte como cada milímetro desta cidade tão grande e que, num instante, cabe dentro de um bule de chá. Ou de uma gota de chuva com sabor de saudade imensa.


A casa de chá tem um site!