16/06/2013

O poder da mão



Na semana passada, numa das aulas de Escrita Criativa, usei essa fotografia tirada na Cracolândia paulistana, horas antes da "Operação Sufoco". A intenção era despertar o olhar observador objetivo, distante dos processos de julgamento. Costuma ser um exercício poderoso e importante quando as pessoas se dispõem a escrever, "funciona" em qualquer grupo, de qualquer idade e constituição, seja homogêneo ou heterogêneo. E serve-me a mim, às vezes, para radiografar essa mesma constituição e pensar nos passos seguintes.

A escolha da fotografia, nesse dia, obedeceu ao reconhecimento do grupo que a veria: um grupo de policiais militares presos, uns julgados e condenados, outros aguardando os processos jurídicos. E um ou outro cumprindo pena pelos "excessos" cometidos na invasão da Cracolândia que a fotografia mostrava.

Usar imagens extáticas para exercitar o olhar observador foi inspiração que me chegou pelas mãos de Saramago, numa pequena crônica que escreveu sobre a sua relação com uma fotografia da Amnistia Internacional em defesa aos direitos dos presos políticos chineses. Um texto tocante e forte, sobre a necessidade de conseguir ver o que está nas coisas. E, depois, tomar posição. E, depois, não se deixar aniquilar pela sucessiva, anestesiante e contemporânea exposição maciça a imagens e mais imagens.

Nem todo grupo com quem trabalho consegue chegar a um patamar de observação objetiva com facilidade. Quanto mais próxima é a imagem do universo e do repertório dos alunos, mais difícil fica. As injunções, as deduções, as especulações, aparecem com muito mais facilidade quando se tem a impressão de que se sabe o que se vê. Por isso, normalmente, prefiro usar imagens que não sejam familiares ao grupo com quem trabalho. É mais fácil ser objetivo com o que não se reconhece.

Mas não neste caso. Porque, na realidade, quis tocá-los rapidamente. Levá-los à exposição de si próprios sem reflexão. Acessar os seus mecanismos automáticos nessas 12 horas que temos juntos ao longo de algumas semanas.

Fui bem sucedida. Todas as frases construídas, que se pretendiam e buscavam ser objetivas, foram subjetivas e emitiram julgamentos. Espantamo-nos, nós que observávamos os observadores, não tanto com a dificuldade em se afastar do motivo da observação e enxergar apenas o que é visível, mas  com a enorme insistência em querer referendar a sua visão pré-concebida como legítima. Demorou tempo para chegarmos a consensos do que era e do que não era visível.

As frases que usamos para esse processo são aquelas a que se chama comumente de "afirmativas". São afirmações e, por isso, verdades indiscutíveis. Para serem indiscutíveis, precisam ser referendadas por todos os olhos que as observam. É preciso que todos reconheçam aquilo que a frase afirmativa diz. Assim, "um grupo reunido em roda" é diferente de "um bando usando droga". Levou tempo até chegarmos ao consenso do "grupo reunido em roda", e mais ainda para percebermos "um homem de costas, sem camisa, de calça jeans, mãos na cintura e camiseta listrada enrolada na cabeça" em vez de "um cara querendo comprar bagulho". Levou mais tempo do que é costume com outros grupos.

Fiquei surpresa e assustada com o ter sido tão bem sucedida. Bem sucedida em conseguir acessar o que não gostaria de conseguir acessar tão facilmente. Porque tão fácil quanto ser manipulado é manipular. Conduzir o outro por onde você quer que ele vá. Seja o objetivo nobre (quero acreditar que o meu seja) ou não, é um tanto assustador ver a sua manipulação surtir efeito tão rápida e intensamente. O poder da "mão que sugere" é habilmente usado todos os dias, a todos os momentos, por todas as mídias e recursos que nos rodeiam. Manter-se imune é quase impossível, e não ser massa de manobra quase uma utopia.

Nesse dia, fui obrigada a olhar para esses homens à minha frente, policiais concursados agora sob o estatuto de presos condenados, de forma diferente. Ainda não se esfumaram todos os preconceitos que se abrigam em mim contra as forças policiais (forças que tenho dificuldade em entender outra coisa que não repressoras), mesmo com o trabalho que tenho desenvolvido dentro delas. Meu coração ainda dispara e os pés ainda gelam quando um guarda rodoviário me pára, mesmo eu com todos os documentos do carro em ordem. São reflexos arraigados, quase um atavismo; mas diminuem extraordinariamente quando entro em contato humano com esses policiais presos. Quando sei seus nomes e me espanto com os crimes que cometeram e a maneira como falam deles.  Quando ouço o que escrevem e sinto dores, aspirações, arrependimentos e desejo de ser melhor do que se é, como quase todos nós que vivemos do lado de cá das grades. Tanto faz que todos se declarem inocentes, ou com tantos atenuantes que seja quase a mesma coisa. Tão frágeis quanto qualquer um, tão expostos à cultura de manipulação quanto qualquer um.

Num segundo momento, migramos para o segundo tipo de frases, aquelas que desejam intensamente relacionar-se com o objeto que tão bem e tão desapaixonadamente se observou. São as frases que provocam o diálogo. São as perguntas. Assim, nesse mesmo dia e muito muito aos poucos, chegamos a um "estarão usando droga?" que transforma tão radicalmente a afirmação errônea por princípio de "um bando usando droga"; chegamos a "esse homem está procurando comprar droga?" em vez de "um cara querendo comprar bagulho". Aqueles mesmos policiais que vinte minutos antes não hesitaram em julgar o grupo que observavam, transformaram as suas afirmações apressadas em perguntas que transpiraram humanidade. A contra-gosto, a bem da verdade, e nem todos, que Escrita Criativa é bom, mas não é milagre.

Na pouca experiência que tenho com esses policiais, o que vejo são cérebros que observam coisas que eu não observo; que depreendem situações e realidades que mesmo podendo ser verdade, não o são objetivamente; que estão treinados para agir sem hesitação e com rapidez, quando chamados a isso; que sentem a ameaça ao redor o tempo todo e são instados a agir antes que o outro o faça. Corpos policiais, em países que suportaram sistemas ditatoriais, são perversos por natureza. A GNR portuguesa, ou a Guardia Civil espanhola, com quem tive mais contato do que com a PM, vêm-me à memória muitas vezes. Transformar a cultura interna desses sistemas, conferindo-lhes humanidade, sensatez e justiça, leva muito tempo, e demanda muita vontade e habilidade política. Um dos alunos desse presídio dizia-me outro dia que quando foi selecionado no concurso ficou muito orgulhoso, por ter conquistado uma das 1.000 vagas disputadas com 50.000 outros cidadãos. Apenas agora, que convivia dentro do presídio com o pior que existe dentro da "corporação" (ou não...), via que isso nada significava. Ser um desses 1.000 o deixava realmente deprimido, pela falta de qualidades que via em seus colegas.

Ao ler na internet tantos e tantos textos sobre a repressão policial às manifestações populares dos últimos dias, reparo na violência verbal contra os policiais. As ações truculentas e arbitrárias explodem diante dos nossos olhos, em tantas e tantas filmagens que são compartilhadas. A nossa capacidade de observação e reflexão é alterada pelas imagens que recebemos, e como consequência o nosso julgamento sobre elas. Não o imediato, que, é claro, vê a estupidez que reina. Mas no que se segue, e que precisa ajudar-nos a ver que é a polícia, e seu sistema de seleção e preparação, que cria a situação que vemos, e não as individualidades que se perdem disformes dentro dos uniformes e dn punho dos cassetetes. Como nós todos, sujeitos às arbitrariedades que nos ultrapassam.

Não sei se todas as manifestações em curso terão o poder de alterar o rumo de alguma coisa. Falta reflexão e direção e sobra furor. Como uma força da natureza, a multidão avança qual tsunami, comparação de Viviane Mosé antes de ser vaiada por quem normalmente gosta do que a filósofa escreve. Descontrolado e assustador. Justificado e compreensível, mas nem sempre justo, nem sempre equânime.



15/06/2013

Amigos de longe

Com a internet regularizada em casa, é momento de voltar ao contato de quem está longe. Passo a manhã nisso, janela do skype aberta.

Começo pelos filhos que moram do outro lado do mar, e que me oferecem meia hora de prosa como se estivéssemos aqui um ao lado do outro, como em outras épocas que quase parecem vidas passadas. Desligo e fica essa sensação de vazio tão grande. Quase era melhor não falar. E rio-me. Nada disso: amanhã ligo de novo.

Amigos que estão dispersos aqui e ali. Tão bom tê-los a todos assim, à distância de um clique. Prefiro sem câmera, para que a vontade do abraço fique onde está, dentro do coração, e não seja tentada a atravessar os olhos. A cada nova conversa, a vontade de escrever para dizer mais do que já foi dito, ou talvez para dizer a mesma coisa, mas dessa forma palpável a que se pode voltar uma e outra vez. E agora que os tenho tão perto, mais lhes sinto a falta. Talvez porque estes amigos me devolvam a justa medida de mim mesma, talvez porque ouça nas suas vozes o espanto por umas coisas e a anuência de outras. Como se me dissessem "nisso eu te reconheço" ou "pareces outra pessoa agora, por onde foi que andaste?". Guardo-lhes algumas frases, aqui no papel, para poder voltar-lhes depois. A essa forma tão exata que têm de perceberem aquilo que de nós se projeta.

Volto desses encontros cheia de novidades suculentas. Uns, oferecem-me novos poetas; vão até à prateleira rapidinho para me apresentarem aos versos de que mais gostam. Outros lembram-se depois de duas horas que ainda não almoçaram, e sinto que se despedem porque o relógio acusa o tempo e não porque a alma o solicite. E outros, que já almoçaram mas precisam lavar a louça, ficam contentes porque, enquanto a lavam vamos conversando, com o tilintar dos talheres ensaboados como música de fundo.

Passam-se meses, às vezes anos. Quase nunca nos vemos. Mas as nossas palavras são as mesmas, e reencontram-se sorridentes através desse mundo que nem de fios mais precisa para se comunicar. Rimo-nos das mesmas coisas a léguas de distância. Sabemos de que dores o outro fala. Sabemos que o embargo da voz é a lágrima presa. Que o silêncio compassado é a dor que não alivia. Que o riso que interrompe a frase é daquilo que já se sabe mas ainda não se assume, porque não é tempo.  E não dizemos nada, porque não é preciso. Sabemos do que os amigos falam, não porque sintamos o mesmo, mas porque sabemos de que tom de vermelho está constituído o coração de quem amamos. O coração desses de quem, talvez por pudor, dizemos sermos amigos em vez de dizermos que amamos. Porque reservamos o amor para aqueles seres raros que nos cortam a respiração. E talvez porque esqueçamos que amizade é amor. E que amor nunca é demais.


Foto: Pedro Ozório


09/06/2013

Albardar

Uma coisa leva à outra. Às vezes perdem-se os motivos pelo meio do caminho, mas de repente eis que surge uma ideia costurada com palavras, que se vão estendendo pelo papel afora sem se saber de onde surgem as coisas que as unem. Hoje, à procura do ditado que preencheria o meu dia e me faria escrever, longe que estou das ficções às quais decidi dar descanso, fui dar à palavra albarda.

Já se sabe que as palavras que começam com al são nossas parentes árabes. Muitas e muitas, algumas caindo em desuso porque aquilo de que falam também cai em desuso. Assim são as coisas: vão se acabando pela mão dos homens e as palavras retornam ao seu mundo extático de antes de nascidas. Dói-me a alma ver uma palavra que morre.

A esta, ressuscito-a. Li outro dia que uma pessoa só morre de fato quando o seu nome deixa de ser falado pelos vivos. Que só morre quando o último pronuncia o seu nome. Com as palavras deve acontecer o mesmo. 

Albarda. Do árabe albarda'a. Usa-se em burros ou mulas (que descubro responderem coletivamente pelo termo "muar"), e servem como selas, mas mais grosseiras que as usadas em cavalos. Basicamente, são feitas de serapilheira e enchidas de palha, normalmente de centeio. São costuradas com fio forte de sisal, e seus enfeites dependem do uso a que se destinem. A da foto, por exemplo, é uma albarda mais festiva.

Mestre Zé é como um hipopótamo pigmeu da Libéria. Quase extinto. Vive numa aldeia retirada ao norte do Algarve, de nome que me foge, mas que se parece com Alcoutim, vila onde o impiedoso avanço árabe ainda se cheira nas esquinas. Mestre Zé é albardeiro.

Antigamente, conta-me, era diferente. Chegavam os clientes aos magotes, que a fama dele corria a terra. Albardas? É com o Mestre Zé, lá de perto de Alcoutim. E chegavam os mais ricos e os mais pobres, aqueles montados em cavalos com a mula puxada atrás deles. O olho experiente de Zé media então a altura da cernelha do animal e a inclinação das espáduas, para mentalmente fazer as contas e saber qual o cepilho correto, a patilha exata, se um suador mais aberto ou fechado, dependendo da largura do tórax. A albarda perfeita para o animal à sua frente. A que se encaixa e alivia o animal das cargas que precisa carregar em seu lombo, inclusive as cangalhas que a vida aqui  e ali sempre impõe. Nisto tudo Mestre Zé não levava mais que alguns minutos.

Mas todo animal tem dono, e os muares não são exceção. E às vezes Mestre Zé precisou curvar-se à vontade do dono, àquilo que ele acha melhor e de melhor lucro para o animal que carrega consigo como se uma parte de si próprio fosse. Aliás, Mestre Zé gosta desses donos que olham para seu animal como quem olha para sua própria alma, ou seu próprio coração. Mesmo sendo pra esses que mais é difícil trabalhar, disse-me ele nesse dia de prosa algarvia, porque nada os convence de que precisem de uma albarda mais larga. Para esses clientes, Mestre Zé descansa do que vê e do que sabe, e faz a vontade ao dono - inclusive para não o perder, porque são mais raros os que nos dias de hoje procuram uma albarda. E é por isso, filha, conclui Mestre Zé, que o povo diz: albarda-se o burro à vontade do dono.


04/06/2013

Para os que arriscam

(Porque branco de página é o pavor de quem escreve nos dias em que não sabe o que escrever. Todos inventam artifícios. O meu hoje é este: ditados populares. Pode dar samba...)

Quem não arrisca não petisca.

Às vezes, é melhor. Petiscar tem um quê de superfície que profundidade gastronômica alguma altera. Assim é.

Comem-se pequenas quantidades de comida bem confeccionada, quando se petisca. São iguarias, das quais nos aproximamos sem nos aproximarmos realmente: sim, como-te, diz-se àquela porção fumegante que acabou de pousar na mesa posta. Mas um pouco, e só de vez em quando. Já pensou, se gosto tanto que não quero comer outra coisa? Já pensou, se de tudo o que tiver de comer daqui em diante me surgir a imagem fantasmagórica de uma delícia dessas? Já pensou, se for crescendo a vontade de te transformar, ó petisco, em refeição, e de te ter à minha mesa em todas as ocasiões? Pior: e se de repente me afundo numa espécie estranha de nostalgia do que eu poderia ter transformado em refeição e mantive na prateleira das distrações? Não, não: melhor não arriscar.

É que petisco não é alimento: é satisfação primária. Agrada-se o paladar e esquecem-se as entranhas. Elas que digiram como melhor puderem, depois. Para isso existem: digerir sem incomodar. O problema são as úlceras, um dia, talvez, quem sabe... essas feridas abertas na superfície do estômago, todos os petiscos do mundo convergindo para a fragilidade das paredes, abrindo frinchas que se convertem em chagas. Anti-ácido tampona, mas não resolve. O que é preciso é parar de petiscar e se alimentar de forma correta, diz o médico num meneio de cabeça. Que pode ser qualquer coisa, a rigor, para isso temos um supermercado de ideologias alimentares à escolha, e como somos seres da modernidade nem é preciso que nos formatemos em lugar algum. Coma tudo cru, ou tudo cozido, ou só proteína, ou nada de animal, ou só um pouco, ou tudo líquido, ou todas as cores no prato, ou jejue de vez em quando que é bom. Ou então inverta tudo e se alimente só de luz. Para a alma, deve ser o melhor. É capaz de ser bom para diminuir a extensão da sombra, ou dar-lhe um pouco de claridade. Não é preciso acabar com ela, e nem é aconselhável. Como diz Clarice, era capaz de que nos acostumássemos com a felicidade, e quando felizes somos egoístas. Eu gosto muito da minha sombra, não quero perder-me dela nem que ela vá atormentar outras criaturas.

Agora, bom mesmo é uma mesa de bar na Plaza Mayor de Madrid: começa-se pelos petiscos, que eles chamam de "tapas", e depois vai-se aos pratos principais. Entre tortillas e porções de jamon serrano, entre mejillones e angulas al ajillo, tecem-se os primórdios da refeição, o início do prazer de degustar. Como se fosse um ensaio. Como se se dessem os primeiros passos na direção daquilo que vale a pena ser vivido. Pode até demorar horas, que seres ibéricos gostam de demorar-se à mesa, e são horas de ordem e rigor, disposição e entrega. Raros são os que se ficam pelos petiscos: em algum momento, pedem-se as matérias que dão substância ao corpo e à alma. Num acordo tácito, os convivas tilintam os copos, esse som festivo que anuncia a existência e o reconhecimento do que não é matéria. Nessas mesas de amigos, nessas ocasiões tão únicas em que os olhos se encontram e a vida se divide, as travessas crescem, e as refeições se completam. Dessa forma, sem medo de errar, é bom de arriscar, é bom de petiscar, e é bom de se alimentar. E haja apetite!

Na foto, umas gambas al ajillo, coisa boa para esquentar o frio.

01/06/2013

O último dia

Aos que falavam de Heráclito e Parmênides

É uma paisagem de rugas, o centro da cidade. Nas esquinas, nas paredes das velhas casas decadentes que abrigam sem variar bordéis ou cortiços, cravam-se marcas do que nem se lembra mais de ter sido. A decrepitude está por todos os lados, colada ao barulho e ao movimento sem nexo de pessoas que vão sem irem e que chegam sem terem vindo. E eu gosto. Nessa impressão de fim há vidas no mesmo processo de perda. Olhos que viram, mãos que tocaram. Uma desesperança sem cor por todos os lados, e a vida de repente escorrendo pelas sarjetas sem que ninguém lhe dê atenção. Eu gosto de sentar-me nos bares desses centros. E de olhar em volta, em busca dessas rugas que não entendo nem me consolam de nada, mas me fazem pensar.

Nem sempre carrego os pensamentos corretos. Ou ordenados. Ontem, na mesma hora em que Helena tombou, ocupava-me com Heráclito. Não conhecia dona Helena, mas fiquei em meio à multidão que se foi juntando, ouvindo retalhos de verdade da boca de todos. Doze facadas.  Tentaram reanimar, mas não teve jeito. E o homem lavando com calma a faca assassina na pia de casa, como se não lhe pertencesse. Ali mesmo, a polícia pegou, o sujeito era vizinho. A faca foi aumentando nas bocas dos que nada viram mas tudo sabem, desenham-lhe o tamanho com as mãos estendidas. E o tamanho de Helena diminuindo nas lembranças que todos já confundem. Acendem-se cigarros nervosos nas bocas desdentadas dos velhos que vivem essas esquinas todos os dias. Mulheres com filhos a tiracolo olham de lado e atravessam rápido, antes das perguntas. Motoboys descansam as motos e discutem todas as hipóteses da traição. Um diz que foi o marido. O outro, que foi o amante. O terceiro investigou: foi um cliente. E eles se entreolham, perguntando-se com os olhos cliente de qual mercadoria. E riem-se, mas sem desaforo, porque há silêncio por entre os corpos, e todos se sentem um pouco estendidos ao lado da mulher morta. Está calor, são ainda cinco horas da tarde. Quem tinha pressa, esqueceu-se dela, guarda o que vê para contar à mesa do jantar. Deve ter sido causa de droga. Foi não: foi mulher mesmo. Ou dívida. Diz que não pagou a cerveja de de manhã, e Helena cobrou. Foi lá e buscou a faca. E gostou do som da lâmina entrando na carne macia da Helena, não conseguiu mais parar. Coitada da Helena. Arrastada pelos cabelos, não teve tempo de pegar a arma dela debaixo do balcão. Ali mesmo, na calçada, as doze facadas. O garoto de olho ressecado diz que o povo gritou, mas ele nem ligou. E foi pra casa lavar a faca, o malandro. Bandido. Drogado.

Dona Helena, dona do bar menos afamado do centro, não ouve mais nada. Está dentro do rio que a conduz ao outro lado da vida. Deixa escapar a mão por baixo do sudário prateado com que a polícia a embrulhou sem cuidado. Há um anel nessa mão, num dedo curto e gordo que acaricia inerte a pedra da sarjeta, e uma tira espessa de sangue coagulado que se agarra com determinação às pedrinhas da calçada. Para tornar-se marca, que nenhuma água consiga lavar ou esquecer.

Enquanto Helena era esfaqueada, eu pensava no nada que sei de Heráclito e por consequência em Parmênides. No rio que ambos atravessaram, cada um a seu tempo e com uma impressão diferente sobre a verdade da água, e ao qual Helena se congrega, nesta tarde de sexta feira. Uma senhora ao meu lado, com uma imagem grande de Nossa Senhora das Graças, diz-me que agora sim ela está livre. Livre do pecado e livre do sofrimento de seus 47 anos, que acabam hoje em meio a esse tumulto de interessados no fim das coisas. Coitada, diz um rapaz ao meu lado, ninguém a defendeu. A mulher que tropeça na falta de dentes deixa escorrer as piores palavras que conhece: teve o que mereceu, essa puta da Helena.

E eu penso em Heráclito e em Parmênides, e nessas oposições contraditórias que a vida oferece como forma de encontrarmos sentido, e penso mais ainda quando a multidão se embaralha em volta dos cordões de isolamento nessa esquina dessa rua desse centro decrépito, e a polícia quer desfazer o novelo, e liga as sirenes, e em seus olhos brilha a intenção de passar por cima de quem não respeite as luzes que giram e a buzina que não dá sossego, e a turba é um rebanho que obedece sem perceber e tudo isso é uma coisa só e agora faz parte de mim porque aqui estou. Insisto em retirar os véus que Maya persiste em sobrepor diante dos meus olhos. E de repente vejo as lágrimas de duas mulheres, e os braços amparadores de um homem que aparece como consolo. Um estalar de afeto sem ruído. Difícil sair desse cenário, esse reconhecimento coletivo de destino na mulher caída, o pescoço aberto na facada fatal, a roupa ensaguentada, o sapato que escorrega de seu pé e cai sem que o enfermeiro da ambulância possa fazer qualquer coisa, porque se esqueceu de olhar para trás e ver. Como às vezes se faz com a vida, que escorrega para fora do pé, e não se tem nada a receber a não ser o choque duro e cru do asfalto esburacado de um centro qualquer de cidade.


Imagem: recorte de "Hombres leyendo", uma das "Pinturas Negras", de Goya.

29/05/2013

Homeostase

Minha vida é uma homeostase entre o que eu quero, deixei de querer, e o que sei que nunca vou ter.
Moreno Ribeiro

Entre as várias bençãos que se anunciam e se estabelecem ao se terem filhos, algumas estão no campo do imponderável. Um dos que tenho a sorte de ter trazido ao mundo aponta-me, desde o outro lado do mar, uma porta de saída para a aflição do momento: homeostase. Demorei um tempo até conseguir acessar a vaga gaveta onde foram alojar-se as aulas de biofísica. E o que lá encontrei foi  algo relativo a equilíbrio, o que é bom e necessário, e eu diria até que urgente e inadiável.

Acontece em sistemas abertos, a homeostase, e dedica-se a regular o ambiente interno para manter uma condição estável. Quem anda por perto de mim nos últimos dias deve estar gargalhando da precariedade homeostática que vem observando...

Os sistemas homeostáticos, que são abertos, e por isso se deixam permear, às vezes até invadir, além de extremamente estáveis são, ao mesmo tempo, muito imprevisíveis. Tão imprevisíveis, coitados, que passam a vida imaginando e organizando formas de manterem sempre e a todo momento o próprio equilíbrio. Parecem gente. Nessa doidice de se manterem balanceados, usam duas formas de se estabilizarem. Uma positiva, outra negativa. Ou colocam em ação uma força contrária que discipline aquela que se descontrolou, ou dão o gás todo a essa descontrolada, até que ela se canse dela mesma e decida parar de causar (espero ter entendido direito...). E assim os incomodados se retiram e o belo do sistema mantém-se aberto e equilibrado. Parece um sonho. Um tanto paradoxal, já que essa coisa aberta é, ao mesmo tempo, estável e imprevisível...

É assim que anda meu coração, para quem se pergunta a troco do quê tudo isto. Como de praxe, aberto: quem quer um coração fechado?! E, como sistema que é, porque composto de tantas partes, busca tenazmente o equilíbrio e com a mesma tenacidade perde-o de vista a toda imprevisibilidade que se apresente. Costumava, nos tempos idos do antigamente de uns anos atrás, ocupar-me do retorno à estabilidade através da retroalimentação positiva. Mas de repente (dizem-me aqui no bate-papo que deve ser da idade, só não sei de quem) parece que me dedico com afinco a retroalimentar-me negativamente, dando o gás todo àquilo que me desnorteia e, pasme-se, fere!

Este meu filho, com poucos minutos de nascido, olhava para mim com olhos de não reconhecer o mundo a que chegava. Hoje, que não tenho seus olhos por perto, olho-o nas palavras que escreve e vislumbro dentro de mim o mundo que quis construir no dia em que ele chegou. Graças às suas palavras, e ao meu coração que teimosa quero manter aberto e pulsantemente amoroso, tenho as minhas de volta. Com alívio imenso, porque o silêncio dos dedos que escrevem é o pior de todos os silêncios, próprios e alheios.


(Para quem sentir falta de saber a que propósito essa página de um livro, fotografado há semanas em São Paulo, eu sugiro que leia de novo e crie o seu próprio propósito. Vacas são seres que ruminam, e que precisam digerir as coisas várias vezes até estas se tornarem  parte delas mesmas.

22/05/2013

Escavação de memória



Marisol desembarcou em Guarulhos hoje à tarde. Uma mistura de sentir-se perdida e haver-se encontrado. Está sozinha, tudo lhe parece grande e lhe é desconhecido, mas ainda assim consegue encontrar um espaço para si mesma numa cidade em que a memória está por todos os cantos. Com a mente cheia de imagens, começo da ação da memória, acaba de sentar-se na mesa ao meu lado no restaurante espanhol para onde me deslocaram nesta noite paulistana.

Marisol olha o escuro noturno pela janela, protegida pelo voil da meia cortina. Encolhe-se na cadeira em que se senta e está vestida de negro. Ninguém a seu lado. Balança a perna cruzada com o ritmo de quem espera algo que não acontece. Pediu, como eu, um triângulo alto de tortilla. Neste momento, ocupa-se em esmigalhá-lo com o garfo. Seus dedos lembram-me outros, distraídos e espanhois como os dela. São eles que meus olhos recortam, depois de recortá-la a ela, dentro deste espaço onde as pessoas se acotovelam e pedem, ao balcão, mais um tinto de verano. Apesar do frio.

Marisol abre-me este buraco côncavo escavado dentro dos ossos a que chamamos memória. Depende do osso a quantidade da dor. Os sólidos e espessos são os mais fortes. Ou talvez as memórias mais sólidas e espessas. Não sei. Difícil é andar os dias no trabalho de processar as memórias alheias - digestão lenta, incomum, gritando por enzimas que reduzam com mais rapidez essa amargura com gosto de término que leio nos papeis que me entregam. Cavam buracos convexos, absurdos paradoxos anatômicos que a razão não tem ferramentas para deglutir. E assim, do osso, migram ao coração, que em desespero as engole e faz passar de um a outro ventríloquo, uma e outra vez e outra e uma ainda.

Restaurantes, que são justamente lugares onde as memórias e as digestões confluem, são bons lugares nesses momentos de aperto. Este, em especial, e hoje com Marisol como testemunha, é um desses bons lugares - o tom certo do barulho que fazem as vozes na conversa, os copos ao serem lavados atrás do balcão, a porta da cozinha no entra-e-sai de pratos. Copos cheios, talheres ocupados, mente sossegada. Pode ser que não resolva, mas alivia, enquanto se espera pela próxima manhã.


O Maripili ("tasca española"), fica na Alexandre Dumas, 1152, zona sul de São Paulo. Vale a pena pelo acolhedor salão, nem pequeno nem grande, os garçons atenciosos na medida certa, os preços que não pedem fígados e, sobretudo, a variedade de pratos espanhois de fazer pedir por mais. A tortilla, essa que Marisol e eu comíamos, é das verdadeiras, como se nos sentássemos em Sevilha diante da Giralda e pedíssemos uma igual. Difícil é ficar no primeiro pedaço apenas...  Como de todas as vezes que lá cheguei estava lotada, vale a pena o telefone: 11-5181.4422)



26/04/2013

Liberdade

Era essa a sua escolha. Vago, vazio, ocioso e desocupado. A qualquer ameaça de transbordamento, embalava-se. Como uma caixa hermética. Não lhe interessava nenhuma ocupação de traçado compromisso, e por isso passeava entre aventuras, até o momento em que começasse a pensar que o "a" poderia transformar-se em "des". Não lhe ocorria que a palavra um dia prescindisse de prefixos, talvez porque entendesse que a sorte não é coisa que ande aos sorrisos pelas esquinas, e mesmo que o fizesse... Seus olhos embalavam-se tanto quanto, e nada via, assim todo embrulhado. Aos olhos, seguiam-se todos os sentidos. Apenas o maior de todos, a pele, lhe segredava outras coisas, mas ele estava tão bem treinado no olhar silencioso e vago e vazio, que a pele calava-se e sofria suas dores dentro dos poros.

Esses, às vezes, choravam. Ele diria aos amigos que no verão suava demais. Mas era choro incontido. Talvez ele sequer soubesse disso. Habituou-se a andar com uma toalha dentro do carro, e enxugava sobretudo a nuca. Depois, porque até a pele é daquelas coisas que perde a memória, as lágrimas paravam de suar e a vida parecia voltar ao normal. A tudo as pessoas se habituam. Essa coisa vaga e vazia e ociosa que ele chamava de normal.

Quando ela chegou, e a partir daí sempre que chegava, era a pele que dava o sinal. Não em forma de suor, porque não era choro, mas em forma de calor, porque era desejo. Os olhos não perceberam, estavam entretidos em outras coisas. O gosto ficou-se por ali mesmo: ainda não a havia provado. Mas de repente ela chegou, e chegou de fato, ela própria sem saber a que vinha e a que chegava. E com ela aquele calor que só parecia encontrar sossego e refresco na companhia.

Amoleceu. Abriu espaço, do tamanho possível. Todos os pequenos nadas deixando o que é vago com sabor de preenchido. Mesmo que ele não soubesse dizer, e nem se arriscasse a saber. O que era melhor, isso de tentar nem saber. Poderia acordar aquela necessidade aprendida de ser hermético.

Demorou muito. Mas a pele não tinha pressa, só a do desejo, e essa não é inimiga da perfeição. Abria as portas e ventilava a vida. Por tempo pouco, talvez, e durante um sempre misturado à sonoridade dos poucos instantes. Mas ainda assim era como correr em campo aberto, sob a luz do sol e com os braços desprotegidos de par em par. A pele permitia-se respirar, e penetrava a outra com ousadia e firmeza, como se nunca o medo houvesse feito casa por entre as suas cicatrizes. Então, e durante toda essa eternidade, a felicidade reinava plena, e ocupava.


Imagem: grafite no banheiro feminino do 1º andar da ECA/USP.




18/04/2013

Coisas sem peso

"Ó Ana" - diz-me uma amiga próxima ao coração - "é melhor que escrevas sobre coisas leves".

Gosto de conselhos, e gosto tanto da pessoa que me oferece este, que só por isso vou em busca de coisas leves. Dessas que têm o poder de deixar as pessoas numa espécie de estado de graça que, mesmo não sendo aquele da crônica da Clarice Lispector, dão a impressão de que sim. Apetece-me pesquisar sobre editoras, por exemplo. Estou mesmo à procura de conhecer algumas que há anos aprecio, este é um excelente momento. Vou começar pela Peirópolis.

Ora bem: antes de chegar à editora, descubro que Peirópolis é um bairro rural da muito mineira Uberaba (assim é o google: querendo uma coisa às vezes caímos em outra). Bonito, parece. Pela foto. Durante anos famoso pela extração de calcário. Chama-se assim por causa do espanhol que lá pelos idos de 1911 o explorou: Francisco Peiró. A ferrovia, que naquela época já atravessava o triângulo mineiro e levava os peiropolinenses pelos 21 km que os separam até hoje de Uberaba, passou quase 90 anos colorindo a paisagem com essa linha em movimento que são os trens. Depois, o mundo (essa coisa que nunca sossega, segundo Camões) precisou de energia elétrica, e lá se inundou um pedaço de chão para o lago de Jaguara nascer, hidrelétrica acoplada. Metade da ferrovia virou um ser subaquático.

Anos passados da morte de Francisco, Peirópolis recebe a visita do gaúcho Llewellyn Ivor Price. Nome nada comum a um gaúcho dos pampas. Mais precisamente, de Santa Maria. A mesma Santa Maria enlutada da boate Kiss.

Llewellyn foi estudar no país de seus pais. Em Harvard, USA. Tornou-se professor de lá mesmo, paleontologia. Quando voltou ao Brasil, porque nada lhe conseguia acalmar a saudade do cheiro das terras do sul (e se não sabe do que se trata leia Érico Veríssimo que descobrirá), lá passou as décadas de 40 e 50 em expedições por todo lado. Hospedou-se no Colégio Centenário, escola só para meninas, lá na sua cidade natal, chamado assim por ter sido fundado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, cem anos passada a Independência. Llewellyn devia gostar de ouvir as aliterantes Miss Louise e Miss Eunice, as missionárias americanas que fundaram o colégio, discorrer sobre a sua nobre e grandiosa tarefa, até chegarem à frase que conseguiu sintetizá-la: educar a mente a pensar, o corpo a agir e o coração a sentir. Se eu quisesse pensar em educação agorinha mesmo, escolheria essa frase, o ano em que foi dita e o tempo que nos separa dela para tecer algumas ideias. Mas como eu não quero, só reparo ainda que o Colégio Centenário mudou: na década de 70 (a mesma em que a ferrovia uberabense foi engolida pelas águas) passou a admitir meninos, e o pequeno chalé cresceu tanto que hoje chama-se também FAMES (Faculdade Metodista de Santa Maria). As bandeiras a meia haste ainda ressoam a consternação pelos alunos e pelas famílias soterradas pela dor do início do ano.

Mas eu estava em Peirópolis e para lá retorno, pela mão de Llewellyn. Literalmente. Eram seus os dedos nodosos que desencavaram de dentro das rochas e do calcário ossos e mais ossos, num destino arrastado que todos os palentólogos devem ter em comum. Pacientemente, organizou esse quebra cabeças de uma só cor. Dias e dias. Quando terminou, afastou-se alguns metros, coçou lentamente a orelha esquerda e segredou a seu assistente, um jovem de óculos de aro de tartaruga que mal lhe cabem no rosto estreito: 

- Lars, esse é o Uberabasuchus terrificus. 

Durante todo esse dia, que era de verão mas não de calor desmedido, Llewellyn ficou-se por ali, enamorado da própria recriação, imaginando os 300 quilos que um dia animaram aqueles ossos, os seus movimentos sinuosos de antepassado crocodílico. 

No dia do ano de 1980 em que Llewellyn descansou desta vida, o homem que escavou o país sentiu em si mesmo o peso dos anos e o peso dos ossos. E chegou à conclusão, antes do último expirar, que de nada adianta tentar fugir ao peso com que a vida nos persegue. E eu, que procurava coisas leves com as quais ir-me deitar descansada, acho-me agora com uma meia dúzia de sites que quero ler. Todos sobre dinossauros. E nem um que me dê notícias da editora que me apetecia.



(Para bem da verdade, não foi Llewellyn que nomeou o dinossauro uberabense. Desde as suas escavações em Peirópolis precisaram passar-se muitos anos. O Uberabasuchus terrificus nasceu para a posteridade perto do ano 2000.)