12/07/2015

12.07


dentro do mar
anzol de pescador
na beira d'areia
coração rebrotou







06/07/2015

Manipulações, escrita e Dom Quixote

De todas as lições de escrita que recebi, aquela que me disse que o enredo e a trama vivem dentro da personagem, foi a que mais me modificou. Porque a vida imita a arte, e foi fácil ir registrando, em papéis aqui e ali: seja ficção, seja realidade, são as ações que determinam o caráter da personagem. As palavras que pronuncia, infelizmente, arriscam-se a ser ilusão bem (ou mal) tecida.

Aquilo que sabemos de cada personagem pode estar recheado de detalhes vívidos, que nos mostram quem e o que são, ou podemos receber apenas alguns traços gerais, um tanto abstratos, que nos sirvam para delinear um perfil - um perfil sem necessidade de interior. Como um saco vazio.

Tanto na vida quanto na ficção, é preciso criar uns e outros tipos, porque afinal não precisamos saber sobre todos tudo. É preciso, muitas vezes, que o seu Joaquim seja apenas o dono da padaria da esquina, que desconfiemos da sua nacionalidade portuguesa, e que saibamos que se levanta muito cedo para garantir o pão fresco à mesa do desjejum. Não afetará a nossa vida não saber nada além disso - mas certamente apenas esse conhecimento nos rouba a experiência do que é o seu Fernando, de fato e ao completo. Para fins de narrativa, não sendo seu Joaquim personagem relevante, nada a mais se faz necessário.

É isso que distingue personagens centrais de personagens secundárias. A questão é saber quem são umas e quem são as outras. E perceber que a maneira como as tratamos precisa, sim, ser diferente. Às ficcionais, nada acontece quando, ao fechar o romance, ainda temos algumas dúvidas. Quincas Borba, antes de ganhar um romance só seu, foi personagem secundária em outro romance machadiano. Nenhum problema até aqui - se o nosso domínio for a escrita. Se nosso campo for a realidade, pode iludir-nos a vida sermos conduzidos pela conversa vazia de quem se diz profundidade. 

As personagens secundárias precisam de poucos traços, porque a sua existência enquanto tipos nos basta - podemos chamá-las de planas, porque é aquilo: só têm perfil. As que têm relevância para a trama, ao contrário, demandam um preenchimento consistente, quente, pulsante, cheio de nuances psicológicas que nos permitam conhecê-las melhor do que a nós mesmos, ou quase. São as personagens redondas, cheias de conteúdos.

Sancho Pança e Dom Quixote podem ser nossos exemplos. Cervantes não escreveu apenas uma paródia humorosa aos romances de cavalaria medievais. Cervantes está atualíssimo, porque escreve uma paródia à importância que damos às coisas, às pessoas e àquilo que elas nos mostram de si mesmas.

Sancho Pança é a personagem da qual Quixote depende para estar encarnado. Raramente nos lembramos disso. Dom Quixote nos encanta: o sonhador, o visionário... Mas é Sancho quem lava, passa, cozinha e se preocupa com seriedade e constância das coisas "pequenas" da vida de seu amo. Amiúde não percebe a sua real importância, e mesmo exasperando-se com a testarudez de seu senhor, permanece junto a ele, fiel e amoroso como um cão perdigueiro. Conhecemos, de Sancho, não só o seu exterior baixo, gordinho e montado num burrico, mas também e sobretudo o seu interior - a sua bondade, a sua perspicácia um tanto tosca, a sua lealdade, a sua falta de senso de humor, a sua capacidade de enxergar as coisas da forma reta e lisa que são. Acreditamos em Sancho. E acreditamos porque a pena de Cervantes, lá nos idos do século XVII, nos faz acreditar. Acreditamos porque dele sabemos as coisas importantes que precisamos saber das pessoas nas quais acreditamos.

Também o que sabemos de Quixote é o que o autor espanhol escolhe oferecer-nos - e ele escolhe conduzir-nos engenhosamente a leitura e dar-nos apenas traços vagos de seu "herói". A visão descontrolada, as alucinações, a valentia questionável: não há traços internos reais onde possamos nos agarrar, porque tudo em Quixote é egocêntrico, desmesurado, ambíguo e abstrato. Somos jogados nos moinhos de vento e, embora não acreditemos, como Quixote, que combatamos monstros, aceitamos a sua megalomania. Não acreditamos em Quixote, até porque ele não nos dá nenhum motivo para isso, mas aceitamos, e gostamos da sua companhia, sentimos uma suave condescendência e solidariedade para com a sua "mansa" loucura, sem perceber o buraco para onde nos arrastam as alucinações mentirosas de quem se acredita acima da verdade do mundo.

Quixote é o império da ilusão. Nada do que diz e pensa é verdade, e pouco do que faz tem impacto real e duradouro sobre o mundo. Ainda assim, é a ele que voltamos os olhos e pensamos "ainda bem que existem sonhadores!". Porém, Quixote não é um sonhador, mas um ilusionista de si mesmo, um ser que de si pouco revela porque toda a sua parafernália delirante e entusiasmada é criação doentia de sua própria mente. Acredita ter o valor que não tem, ver o que não existe, lutar pelo que não tem validade. E nós aceitamos e meneamos a cabeça, entra século, sai século, granjeando a esse tipo de construção de pessoa (perdão, de personagem) o espaço e a importância que ela não tem. E, enquanto isso, os Sanchos permanecem sob luz secundária, elogiados de forma tímida pela sua dissolução no sonho alheio, ainda que nos incomode silenciosamente a sua dedicação canina e sua inamovível sensação de serem indispensáveis à manutenção da vida dos Quixotes. Por muito que saibam que Dulcineia não é dama e nem Rocinante maravilhoso alazão, é quase que uma condena que levem seus Quixotes a bom porto - ou seja, de volta ao lugar de onde saíram.




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03/07/2015

No prelo 1

Ao levantar-se da mesa, Joice apoiou-se na quina. Fechou os olhos com força e a tontura foi-se. Olhou para o lado para ver se ele reparara, mas ele estava absorto, aquela cena tão lugar comum de quem está ao lado perdido em distâncias pessoais. Deu quatro passos na direção da porta e virou-se para entrar no quarto.

Agarrou a maleta guardada debaixo da cama, pronta para caso necessário de fuga à meia noite. Pena afinal ser de dia, pensou. Deslizou os olhos pela cama, pelas venezianas semiabertas, pela luminosidade a escorrer pelas frestas. A brisa fazendo tremer a beirada da cortina branca. A colcha de flores cada vez mais miúdas. Em pouco tempo só restaria o branco.

Voltou à sala e olhou-o ainda uma vez. A expressão igual à de sempre, zombeteira no canto suspenso das sobrancelhas, a frase feita não seja boba, sente-se aqui ao meu lado, vamos, porque não pode dar-me o que quero e parar de fazer cena? Paira no espaço, essa coisa que se espalha pelo pescoço de Joice como grade. Pensa nas meias penduradas pelo fio. Nas plantas em volta das foices no quintal. No reflexo do espelho na claustrofobia do amanhecer. E a atmosfera densa abate-se do teto ao chão, madeira descascando verniz velho. Joice abriu a porta e saiu, antes que caísse sobre ela.

Susteve o último passo, ainda a ocupação com o outro. Mas o teto está no mesmo lugar, como ele à mesa, alheio, porque nada daquilo é dele. E Joice respira do fundo das vísceras e dentro da maleta os cadernos chacoalham como pedras do caminho. 

Uma a uma, meses depois, Joice retirou-as de dentro da maleta, as páginas parecendo pétalas desfolhadas e secas, pálidas e trêmulas no início da leitura, descarnadas em pouco tempo. É assim, o seu relato, entre o pálido, o trêmulo e o descarnado. E é a ela que este livro dá forma, na primeira pessoa. É ela, Joice, a mulher que escreve do fundo.

continua...






Imagem: Prensa de Gutenberg, o que legou a multiplicação.





02/06/2015

Dois apontamentos sobre Africa Africans

1) Tenho um amigo pintor, talentoso que só, com quem aprendo muitas coisas. Dia desses, disse-me que, considerando-se a ignorância, a mediocridade pode ser um grande avanço. Ontem mesmo, ofereceu-me mais uma afirmação: só há duas coisas pelas quais somos responsáveis, a atitude e a quantidade. A qualidade não nos pertence. Ora bem.

À entrada da exposição Africa Africans, que ocupa um espaço amplíssimo do Museu AfroBrasil, há uma sala de "artes primeiras". Esse é o termo que o curador Emanoel Araújo muito bem usou, numa forma de arrastá-las para longe dessa mania que temos de chamá-las de primitivas, e assim relegá-las a um confortável pano de fundo sem contornos atuais.

As "artes primeiras" são aquelas que, na minha prática pedagógica, por vezes intimidam, por vezes assustam, tem aqueles a quem repugnam, como que são repelidas pelo nosso senso "ocidental" de olhar o mundo. Deixar-se entrar nos domínios dessas "artes primeiras" é sair da ignorância. E, enquanto não se chega a outro lado, estaciona-se na mediocridade. Que é aquele estado em que começa a saber-se que o saber é infinito, incomensurável, plural, irrestrito, livre e dinâmico. E, assim que se começa a entrar nesse outro domínio, não há como: algo transforma e modifica a nossa atitude. E, assim, dá-se um passo adiante da mediocridade - e que passo!

Já a quantidade vem com o tempo, seu aliado. A seguir a essa sala das artes primeiras, começam as obras dos artistas contemporâneos. Prefiro assim, sem o epíteto "africanos", que eu não atino a saber qual relevo signifique. Basta-me o contemporâneo. Mesmo que me aflore uma dúvida se estaremos, mesmo, ocupando um mesmo tempo, ainda que variados espaços.

Passo pelas fotografias impressionantes de Alfred Weidinger, retratos de reis de olhos únicos. Ando devagar e sem rumo definido - um ar de caos muito particular que tem este museu, e que me encanta sempre, porque ser único e múltiplo ao mesmo tempo. Paro diante dos corpos que se interpenetram, um por dentro do outro, outro por fora do um, do daomeano Rémi Samuz. Não há ruídos, são muitas falas, neste seres sem rosto e nem carne. E elas são minhas. E suas.

2) Caminho pelas ruas desta cidade grande. A África está em todo lado. Dentro e fora do museu. Por dentro das pessoas. Por baixo delas. Em volta, acima e embaixo. Entrar no museu ajuda a ver a vida. Ajuda a perceber-se vida. A encantar-se com o poder de leitura, digestão, substanciação e alimento que um ser humano oferece a outro ser humano.

Caminho pelas ruas e vejo a África em cada pedaço de chão. Porque ela é, mais do que está. Assim como esses artistas, de lugares tão distantes quanto Gana ou Madagascar, me estão, nos lugares da alma que reservo com ardor àqueles que, saindo a passos largos da mediocridade, entram nesse lugar para onde gosto de olhar, e que se chama verdade humana.

São eles que nos afastam da mediocridade. São eles que nos agarram as mãos e nos transformam os horrores em sonhos. Porque os sonhos engravidam-se e essas mãos que se precisam surgem de onde menos se espera. Talvez seja para isso que a arte existe - porque nos torna mais humanos, como bem disse Antonio Candido, mas também porque nos torna menos medíocres, menos ignorantes e mais capazes de afeto.




Africa Africans
Museu Afro Brasil/Parque do Ibirapuera/Portão 10
Visitação até 30/8/2015 Patrocínio Companhia Paulista de Parcerias – CPP, Odebrecht, Itaú Realização Museu Afro Brasil, Governo do Estado de São Paulo – Secretaria da Cultura, Ministério da Cultura – Lei de Incentivo à Cultura

Imagens
Painel de Hector Sonon, do Benim, à entrada da exposição Africa Africans.
Rémi Samuz, do Benim
Bruce Clarke, da Inglaterra/África do Sul
Fotografias de Cândido Ribeiro







25/05/2015

Segunda feira

Plena manhã de segunda feira. Acordo com uma estranha e inquietante vontade de rotina. De que o dia se organize sem a minha particular intervenção. Que não precise exercitar essas dádivas que hoje me cansam só de lembrar, pensar no que é preciso fazer, quero-ou-não-quero, devo-ou-não-devo. Só uma coisa, e depois outra, e depois mais uma, cada uma com tempos e lugares e formas estabelecidas em algum tempo que não seja hoje. Uma rotina, por favor.

E eu não sei acordar desse jeito. Não sei dialogar com essa urgência. E parece-me melhor descobrir de onde vem, e quem sabe acalmar o espírito.

Pois rotina, na realidade, é muito o contrário do que pensamos.

Só há rotina quando algo é rompido - por isso seu ancestral linguístico é rupta - um caminho aberto à força. Não nos é natural a rotina, porque não nos é natural querer romper. (Começo a gostar do que encontro.) E o princípio da rotina exige que abramos caminhos à força, que nossos braços se ocupem em rumpere - em quebrar, em romper.

E lá estamos nós com o tal caminho aberto à força. E começamos a trilhá-lo uma e outra vez. Os franceses ocuparam-se em transformar aquela rupta em route, ou seja, rota. Em pouco tempo, de tanto trilhá-lo, porque deve ter sido mais fácil do que andar pelos lados intransitáveis, nova metamorfose: de route, routine - uma trilha batida, um curso costumeiro de ação. Agora, sim, a velha conhecida rotina.

Essa vontade que nos dá, muito repentinamente, de querermos uma rotina, é no fundo uma vontade enganosa. Parece que o que queremos é o encontro de um trilho, e de por ele seguir com ilusório conforto, sem precisar pensar muito a respeito. Mas não.

É outra coisa.

É querermos abrir caminhos novos com a força da nossa vontade. Esteja essa vontade nos braços, nos pés, nas mentes ou dentro do nosso coração. Algo em nós clama por rotina: algo em nós clama por transformação e possibilidade. 

E assim se começa uma segunda feira, descobrindo que por trás do que se quer há muito mais do que se pensa.

07/05/2015

Anatomia da metade

Tem gente com horror a metades. Metades de frutas. Metades de chocolates. Metades de pães na chapa. Se me pedem "me dá uma metade" a minha tendência é dar tudo. Ou não dar nada. Ninguém merece metades.

E nem eu. Por isso insisto em viver inteiros. Os inteiros me atraem. E as metades me espantam. Passei muitos anos sem saber que existiam aqueles que se conformam com metades. Esses, também me espantam.

Quem procura metades, deixa outras metades abandonadas do lado de lá. Quem queira a vida do lado do inteiro, que venha e bata à porta: abrir-se-á automaticamente, será um susto talvez, mas é que inteiros querem-se inteiros e querem inteiros ao seu redor. Doam-se todos, ou não se doam nada. Abrem-se todos, ou não se abrem nada. É uma via de mão dupla, aliás - a doação precisa de dois lados, a abertura a mesma coisa. E deve ser assunto importante, porque de Pessoa a Gullar, e ainda Clarice e também Montenegro, cada um por inteiro e a seu próprio modo, disseram coisas sobre o assunto. 

Não há receitas para ser inteiro. Em compensação, há uma porção de desculpas para se ser metade. Voilá.

O pior talvez é quando a metade não é a do lado esquerdo ou direito, mas a metade de cima. A que boia à superfície, ponta de iceberg à espera do mergulho que constate a enormidade do que vive por baixo. A metade da superfície é coisa pouca, bobagem, veja bem. Tem quem se contente com ela, e mesmo sentindo no estômago a ânsia do mergulho, respira como ser educado para não ser inteiro, e carrega seus todos pedaços de um lado ao outro, de um mar ao outro, de uma mesa à outra. Pedaços são como farrapos, e farrapos são espécimes em estado de esgarçamento. Merecem nossa compreensão, mas raramente a nossa presença. O risco é de contágio.

Pior ainda são as metades que nos arranca a vida. As que perdemos pelo caminho e precisamos voltar, e recolher, tratar, cuidar, alimentar e fazer reviver. As que se furtaram às armadilhas e ficaram combalidas, como velhos voltados da guerra, alucinando nas madrugadas com medo das bombas prestes a explodir aos seus pés. Os pés dessas velhas metades precisam de afeto. De paciência, de ouvido, de afago. E de quem os ajude a andar sobre seus próprios passos, e reencontrar as partes que faltam, as metades tão importantes que as velhas senhoras em carruagens de ouro levaram à sua passagem prometendo o que jamais cumpririam.

Mas ainda as há piores. Há as metades que ficaram à espera. Ficar à espera, para uma metade, é um estado sombrio. Porque a metade que está à espera não sabe que a sua espera é inútil. Que aquilo que a outra metade alcançou, ela jamais alcançará. Essa metade torna-se invisível - e a tal ponto, ao fim de um tempo, que a metade visível se convence ela mesma de que a outra não existe. E, aí sim, é o fim. Porque as metades precisam da visita da luz do sol e do olhar do outro, que são na verdade a mesma coisa, parecendo serem coisas diferentes.

Com a passagem das horas, não há dia que não nasça. Não há semente que não cresça - a não ser aquelas caídas por engano em meio às pedras, e mesmo essas podem recuperar-se, se forem valiosas a ponto de valerem o tempo de voltar e recolhê-las. Porque as coisas inteiras, quando as suas metades se reencontram, espalham calor e conforto ao seu redor, e é de muito conforto e calor que os corações de todos nós precisam.


28/04/2015

Um pouco de inutilidade

L. anda cansada. Caem-lhe as pálpebras por cima dos olhos ao tentar ler um parágrafo daquele livro que jura estar amando ler. A boca escancara-se em bocejo assim que se senta para assistir qualquer coisa em uma tela, e o corpo amalgama-se ao sofá com uma velocidade surpreendente. A culpa é tua, diz, esse documentário lento, em preto e branco... Andamos todos cansados, digo-lhe. E calo-me. Há pouco a dizer agora.

Eu ando cansada das notícias, internas e externas, e da sensação de incapacidade de realizar qualquer coisa que faça algum sentido. Que ponha fim a alguma dor. Vulcões no Chile e terremotos em Katmandu imobilizam-se dentro de uma gruta fechada - essas são palavras de L., não minhas. As minhas chegam na sequência: O que posso, e faço, é voltar-me para o legado das palavras. Às vezes as coisas inúteis são as que nos salvam da crueldade à solta pelo mundo. (Mas dizes que os vulcões são cruéis?! Não, L. Na verdade já estava falando de outras coisas. Acho que te perdeste entre os teus pensamentos e os meus. Sim, tens razão, somos um emaranhado e às vezes é difícil saber quem pensamos o que. Ou quando. Ou por que. Ou... L. por favor cala-te um pouco, deixa-me sozinha com o que penso. Sim, desculpa.)

Mas então eu falava das coisas inúteis. Como a toponímia. A toponímia é um ramo da onomástica, aquela ciência que a tudo dá nome, de mim a você, à sua rua, à maternidade onde você nasceu e ao cemitério onde será depositado. A toponímia dá nome a lugares, e estuda-lhes a origem e a evolução. Tem um pezinho na etimologia, e também se relaciona com a geografia, a história, a arqueologia. Essas coisas que se ligam a outras até se embrenharem a ponto de nunca mais se desvencilharem são muito entusiasmantes, L. 

Pois precisei hoje desta palavra (não me interrompas) para dar a um texto encomendado um ar mais culto e sério. Em vez de "o nome dos rios", fui à procura de algo mais exato. Pensei que topônimo seria já bastante preciso. Mas não. E isso porque a precisão é algo que nos foge dos dedos como água misturada a areia fina. É difícil ser preciso. É uma conquista conseguir ser preciso. Accurate, como dizem os ingleses, diz L. Sim, accurate.

Descubro uma sequência de nomes que com certeza vai povoar a minha noite. Hidrônimos. Limnônimos. Talassonônimos. Orônimos. Corônimos. Uns dão nomes aos rios, outros aos lagos, os terceiros aos mares e oceanos, os seguintes aos montes e outros relevos e os últimos às subdivisões administrativas e de estradas.

Levo para dentro de mim os limnônimos. Digo a palavra em voz alta, enquanto L. fecha os olhos para absorvê-la melhor. De limne, o lago, os nomes dos lagos. Esses lugares que decantam, essa atividade precisa quando as coisas do mundo param de cantar. Esses lugares a quem acudimos em busca de auxílio, porque dentro deles, e ao seu redor, vive o que há de mais antigo. O lugar para onde nos voltamos em busca de silêncio e quietude - as águas paradas do fundo do lago, que deixam de ser armadilha para serem suave contorno. Raramente as palavras que encontras são inúteis, diz L. de dentro de seus olhos fechados. Porque as coisas inúteis estão entre as mais úteis da nossa vida, respondo-lhe. E desejo-lhe boa noite, e eu também fecho os olhos e mergulho para dentro do sono.




08/04/2015

A verdade

Sabemos, todos nós, que a verdade é um bem a ser preservado e garantido. Que, em qualquer circunstância, e mesmo que doa, sempre a dor da verdade é melhor que a da mentira. Sabemos, mas nem sempre praticamos; raramente nos damos conta de que um tanto daquilo que fazemos, não só mas também em nosso papel de educadores, mais mente sobre a realidade do que a apresenta e encara tal qual ela é.

Lembrei-me disso hoje ao ler um parágrafo de The bad seed, um romance da década 50, de autoria de William March: “um botão de rosa de cera ou um pêssego de plástico parecem mais perfeitos, aproximam-se mais daquilo que a mente imagina ser um botão de rosa ou um pêssego, do que o imperfeito original a partir do qual foram modelados”.

A nossa tendência a querer transformar o mundo em um mar de rosas para as crianças, para que elas não se machuquem, onde as coisas não são o que realmente são, cresce a olhos vistos. Impacta-nos de maneiras para as quais ainda não estamos conscientes. Andamos sobre plásticos que imitam madeira, comemos sanduíches que imitam comida, ouvimos músicas eletrônicas que imitam instrumentos de verdade, vemos reproduções de obras de arte como se estivéssemos diante de originais, temos amigos virtuais como se fossem reais, e fazemos um esforço tremendo em parecermos fortes onde somos frágeis.

Um mundo “de verdade” é indispensável à criação de seres humanos sadios. Se são crianças que estão sob o nosso cuidado, o grau de responsabilidade aumenta. As nossas escolhas são as escolhas delas, porque nós somos a referência, e é a partir das janelas que abrimos que elas reconhecerão o mundo habitável. Ou não. Se o que oferecemos não é “verdade”, a vida terá grandes chances de ser uma mentira. E esses futuros adultos terão grandes chances de não reconhecer e distinguir a verdade da mentira. Terão grandes chances de não reconhecer perigos e armadilhas em pessoas, em situações, nas prateleiras dos supermercados, no boteco da esquina. Crianças que não vivenciaram a verdade poderão não reconhecer a mentira mais adiante. Sim, eu sei: você está pensando que essa coisa de verdade é muito relativo. Não é. Uma rosa de verdade não é uma rosa de cera. Um pêssego de plástico não é um pêssego de verdade. Não se faz com ele o que se faz com um pêssego real. Assim como não se faz com pessoas reais o que se faz com simulacros de pessoas num jogo qualquer de computador.

As crianças precisam de verdade. Precisam senti-la, quando pequenas, correndo por entre os seus dedos. Precisam reconhecer a madeira, o algodão, esses elementos que estão à nossa volta de forma natural, e que encontramos e reconhecemos facilmente, em suas várias manifestações. Essas são as coisas verdadeiras na primeira infância – aquelas que existem ao redor, e que podemos reconhecer no seu próprio processo. Um carrinho de madeira, uma boneca de pano.

Crianças pequenas não precisam de andadores que imitem o seu esforço em erguer-se, assumir a humana posição ereta e caminhar pela vida. Precisam da verdade de suas próprias pernas no movimento de profundo equilíbrio que é o andar. Elas vão cair, e vão se levantar, e vão voltar a cair, e joelho esfolado é aprendizado saudável. Crianças não precisam de uma alimentação artificial e cheia de produtos químicos, que além de maltratarem o seu ser físico em formação, lhe alteram a capacidade de perceberem o que é uma cenoura, uma batata, arroz, as beterrabas de verdade.

Parece bobagem? Mas não é. Já sabemos que é de pequenino que se torce o pepino. O aprendizado das escolhas de uma criança começa com aquilo que escolhemos para ela. Quanto mais consciência do que fazemos, e por que fazemos, melhor. O nosso conforto, a nossa “necessidade” não pode tranquilamente sobrepor-se àquilo que é fundamental à criança. A nossa “necessidade” de, recém-paridas, nos reintegrarmos à vida social não pode impactar a criança que acabou de chegar. O show de rock pode esperar para mais tarde, o sambão também, a saída à noite pra festa dos amigos idem. Às vezes, não paramos pra pensar. E às vezes as escolhas têm desdobramentos tristes.

Crianças que se habituam ao mundo virtual desde cedo vão perder a noção do que é relacionar-se com o mundo real. Aliás, com adultos é a mesma coisa. Aprenderão a deslizar seus dedinhos pelas telas dos tablets e dos smartphones antes de terem percebido a textura da areia da praia. É bom ter diversidade? As várias experiências? Certamente um pai ou uma mãe de um dependente químico lhe dirá que não: há experiências que é melhor não ter. E agora, se já teve, é preciso cuidar. É preciso refazer o caminho, passo a passo, redescobrindo o que é mesmo “de verdade” neste mundo. Rodear-se de coisas de verdade. De pessoas de verdade. De sentimentos de verdade. Tirar da frente e dos lados e de dentro tudo o que é mentira, como é mentira o caminho que as drogas oferecem de encontro de si mesmo. Como é mentira decidirmos que nosso filho de 16 ou 17 anos pode sair com o carro porque “ele dirige melhor do que eu!”, ou com ele tomar uma cerveja, e iniciá-lo nesse mundo em que se ganham forças, autonomia, coragem e graça com a ajuda de um ou dois copos.


“De verdade” é o mundo cheio de imperfeições. São amores que não reluzem como ouro, e é assim que nos fazem bem. São situações em que estamos frágeis e nos sentimos à deriva, e firmamos os pés dentro delas lidando com o medo que nos sobrevém. São empregos que desanimam um dia e outro, e nos satisfazem dessa forma. São escolhas erradas que precisam ser refeitas, e dói, e é bom, porque é na dor também que crescemos. São refeições salgadas, a carne que cozinhou demais... e quando nos levantamos da mesa estamos preenchidos. Porque houve mãos de verdade que cortaram as cebolas, houve olhares de verdade que se cruzaram risonhos ao perceber o desastre, houve o riso sincero que todo mal desarma, e que é de verdade, e por isso é bom, e nos faz crescer e ser pessoas melhores no encontro conosco mesmos e com o outro.

01/04/2015

Mentiras e universidades

Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos.

Entre os muitos escritores e pensadores que o caminho da história esquece, há alguns que, de repente, voltam com força ao nosso pensamento. Ellen Key, a autora da frase que serve de inspiração a este texto, nasceu e viveu na Suécia, na segunda metade do século XIX. Feminista nos tempos em que era preciso ainda lutar por igualdade de sufrágio, Ellen tem importantes textos sobre educação, a liberdade pessoal e o desenvolvimento independente do indivíduo.

E por que Ellen Key a essa hora do dia? Porque a cada vez que se evidencia a falha colossal e coletiva dos nossos sistemas escolares eu corro a ler alguma coisa que me alivie. Dias como estes, em que lemos estarrecidos as notícias sobre a última festa do curso de Medicina da Unesp de Botucatu. As denúncias de abusos e arbitrariedades na recepção aos calouros viraram rotina, em tudo quanto é universidade. As apurações idem. E a defesa também.  

Desta vez, acusam-se os alunos do 6º ano de escolherem recepcionar seus novos colegas vestidos a la Ku Klux Klan. As fotos circulam, e os alunos defendem-se, dizendo que é um erro de interpretação e que não houve preconceito nem intenção de denegrir ninguém. No fundo, não importa muito o que digam, porque as fotos falam por si, contra fatos não há argumentos. A referência a certos personagens está ali, presente, tenha ela sido explicitada com todas as letras ou não, tenha havido ou não consciência por parte de quem usou as fantasias e segurou as tochas. Além do que, como nos ensina a análise do discurso, o fato de se recepcionarem novos integrantes de um curso com uma festa sob o tema "Carrasco" já devia ser suficiente. Tanto os fatos quanto a sua defesa, como se pudessem ser defensáveis, é de espantar. Um pedido de desculpas, geral e irrestrito, seria mais pertinente. Até porque erros fazem parte e o duro é quando não se reconhecem - e, sobretudo, reparam.

Agora, aqui para nós que nem na festa estávamos. Surpreendente mesmo é pensar que esses jovens passaram no mínimo 18 anos sentados em bancos escolares. Foram alfabetizados. Leram. Tiveram horas e horas de aulas de História. Produziram textos, e muito provavelmente algum sobre racismo, sobre preconceito, sobre violência. Prepararam-se para apresentar as suas ideias e justificá-las. Muitos deles possivelmente estudaram em escolas com a preocupação de formar "cidadãos críticos e atuantes". Passaram numa das mais difíceis seleções universitárias do país. Estudaram por já seis anos para se tornarem médicos, e é capaz que, em assustador pouco tempo, muitos de nós depositemos neles confiança, esperança e a própria vida.

Enquanto isso, a sua percepção de acolhimento e diversão é o reencenar um dos mais macabros momentos da história mundial. Não sabiam disso? Não conseguiram ver a similaridade entre as suas fantasias e aquela dos que perseguiam, queimavam e enforcavam negros americanos até há bem pouco tempo? Como assim?! É essa a capacidade que têm de olhar em volta, ler a realidade e propor movimento e interferência?

O trote repete-se ano a ano. Choram-se ano a ano os que morrem, lamentam-se ano a ano os que são assediados e violentados, repudiam-se ano a ano os estupros. E relativiza-se tudo, porque tudo isso são "excessos apenas". Os movimentos para conter essa onda que se aproxima da barbárie são mínimos. Porque atitudes enérgicas são impopulares, e de três opções, duas são mais fáceis: ou se culpam professores do ensino básico, famílias desestruturadas e esse longo etc. que pertence ao passado, ou se encolhem os ombros e se pensa que "no meu tempo também era assim e eu sobrevivi...". 

Uma universidade não é um lugar qualquer. "A história das universidades", diz Otto Maria Carpeaux em um de seus bonitos ensaios, "é a história espiritual das nações". Parece que nos esquecemos, absortos que estamos em decidir se universidades são lugares onde o conhecimento se transmite ou se pesquisa. Deixamos o barco à deriva, esquecendo-nos da responsabilidade que ultrapassa os nossos pequenos gabinetes. E o resultado, a cada trote, nos atropela.





Imagem: Alto-relevo de Hipócrates praticando a sua ciência
O Projeto Gutenberg tem algumas das obras de Ellen Key disponíveis, para quem se interessar. Acesse http://www.gutenberg.org/ebooks/author/502
O ensaio de Otto Maria Carpeaux chama-se "A ideia da universidade" e está disponível em